Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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30 de maio de 2012

Eleições na Madalena e outras mais.

Na sessão  de 21 de Janeiro  de 1876, a Vereação, tendo o Governo Civil informado que fora anulada a eleição da Junta da Paróquia da Madalena, resolveu marcar novas eleições para 23 do corrente, nomeando para presidente  da Assembleia Henrique Maria de Sousa, do Porto da Lage.

A.M.T. 1870-1900, pag. 101



O nosso Hino entre 1826 e 1910*(com algumas interrupções)


«….estava pois o mestre escola , de parceria com o boticário, a castigar a perversidade dos imperadores romanos, por amor do mártir S.Sebastião, que, segunda vez, acabava de ser frechado no panegírio. Neste comenos, abeirou-se deles Calisto Elói, e para logo se calarem as duas capacidades, em deferência ao Salomão da terra.
- Que dizem vossemecês?- perguntou Calisto benignamente – Continuem … Parece que falavam do santo.
- É verdade, Sr. Morgado – acudiu o boticário, ajustando os colarinhos percucientes do verniz da goma – Falávamos na malvadez dos imperadores pagãos.
- Sim! – disse Calisto, com proeminência declamatória – sim! Horrorosos tempos  aqueles foram! Mas os tempos actuais não se diferençam tanto dos antigos que possamos, em consciência e ciência, esclarecer o presente e praguejar o passado. Diocleciano era pagão, cego à luz da graça: os crimes dele hão-de ser contrapesados e descontados na balança divina, com a ignorância do delinquente. Ai porém, dos que prevaricaram fechando os olhos à luz da notória verdade, a fim de se fingirem cegos! Ai dos ímpios, cujas entranhas estão afistuladas de herpes! No grande dia, funestíssima há-de ser a sentença deles, novos Calígulas, novos Tibérios, e Dioclecianos Novos!
Relanceou o farmacêutico uma olhadela esguelhada ao professor, o qual, abanando três vezes e de compasso a cabeça, dava assim a perceber que abundava na admiração do seu amigo e consócio erudito de história romana.
Obrigado às orelhas do auditório atento, Calisto, em toada de Ezequiel, continuou:
- Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma imperial! Os costumes dos nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas, que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantes moderno que já não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais sete séculos, se emancipou da tutela das leis …..



S.Bento: Câmara dos deputados, meados sec.XIX




....
Ficaram o boticário e o professor de primeiras letras, e mais os lavradores, ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas ilustrativas, ao alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos entremezes do Entrudo, exclamou:
- Aquilo é que dava um deputado às direitas! Um homem assim, se fosse a Lisboa falar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
- Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro – observou o mestre-escola – os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos não haveria rei, nem professores de instrução primária (observem a modéstia da gradação), nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido repetidas vezes, no Periódico dos Pobres, as palavras autonomia nacional. Falhou-lhe desta feita a memória, lapso que não destoou em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticário, que resmungou:
-Anatomia nacional!
- Que é?!- perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.
- Parece-me que é asneira! – Respondeu o outro com certa indecisão.
Prosseguiu, concluindo, o mestre-escola:
-E portanto, os tributos, tio José do Cruzeiro, são necessários ao Estado como a água aos milhos – Ora agora, que há muito quem bebe o suor do povo, isso há: e aqueles que deviam ser bem pagos são os que menos comem da Fazenda Nacional. Aqui estou eu que sou um funcionário indispensável à Pátria, e receberia cento e noventa mil réis por dia, se não trouxesse rebatidos seis recibos a trinta e seis por cento, de modo que venho a receber seis e cinco! Que país!… O sr. Morgado disse bem: estamos chegados aos tempos dos Dioclecianos e Calígulas!
O auditório já vacilava em decidir qual dos dois era mais talhado para ir falar ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre-escola.
.....

 
Gravura: Les elections municipales au Pas-de-Calais, 1884


Fermentou na mente dos principais lavradores e párocos das freguesias do círculo eleitoral a ideia de levar ao Parlamento o morgado de Agra de Freitas.
Os deputados eleitos até àquele ano, no círculo de Calisto Elói, eram coisas que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso legislativo. Pela maior parte, os representantes dos Mirandeses tinham sido uns rapazes bem falantes, aeropagitas do Café Marrare, gente conhecida pela figura desde o botequim até ao S.Carlos, e afeita a beber na Castália, quando, para encher a veia, não preferia antes beber da garrafeira da Mata, ou outro que tal ecónomo dos apolíneos dons.
Em geral, aquela mocidade esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões lusitanos, não sabia topograficamente em que parte demoravam os povos seus comitentes, nem entendia que os aborígenes das serranias tivessem mais necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regime da Constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as delícias do hábito de Cristo, obrigara a urna e o senso comum a gemer nos apertos do doloroso parto do peralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever ao deputado, incumbindo-lhe trabalhar na nomeação dum vigário chamorro, ou outra coisa, que foi denominação de bando político, em tempo que a política não sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado não respondia à carta do influente,  nem o requerente sabia onde procurá-lo fora do Marrare.


Theatro de S. Carlos.Gravura, Pastor/R. Cristino, 1884



 


Por muitos factos desta natureza conspiraram os influentes do círculo de Miranda contra os delegados do Governo; e a ideia de eleger o morgado foi recebida entusiasticamente por todos aqueles que o ouviram falar no adro da igreja e por quantos houveram notícias da sua parlenda.

O partido, que o mestre-escola ganhara de eloquente assalto, cedeu ao império das razoávei conveniências, e centralizou-se na maioria. A verbosidade, porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado secretário da junta da paróquia.

Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente às solicitações dos lavradores, que o procuraram com o mestre-escola à frente, facto que muito honra este desinteresseiro e reportado funcionário. Neste encontro, o professor excedeu o juízo avantajado que ele propriamente fazia de sua vocação oratória. Mostrou as fauces do abismo escancaradas para tragarem Portugal, se os sábios e virtuosos não acudissem a salvar a Pátria moribunda. Calisto Elói, enternecido até às lágrimas pela sorte da terra de D. João I, voltou-se para a esposa e disse, como o agricultor Cincinato:

- Aceito o jugo! Assaz receio, mulher, que os nossos campos sejam mal cultivados este ano …

António Maria, Janeiro 1880


Estavam próximas as eleições, a autoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o Governo da inutilidade da luta. Não obstante, o ministro do Reino redobrou instâncias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escrito revistas de espectáculos, e recitava versos dele ao piano, cuja falta ou demasia de sílabas a bulha dos sonoros martelos disfarçava. Redarguiu o administrador do concelho ao governador civil que pedia a sua demissão para não sofrer a inevitável e desairosa derrota.

Quis assim mesmo o Governo aliciar no circulo algum proprietário, que contraminasse a influência do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns lavradores, menos aferrados à candidatura de Calisto, lembraram à autoridade o professor de instrução primária, estropeando frases dos discursos dele, proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como parvajolas que eram.

Por derradeiro, o governador civil fez saber ao Ministério que os povos de Vimioso, Alcanissas e Miranda se haviam levantado com selvagem independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas serras.

Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que, beliscado na sua vaidade, assanhou-se contra o governo, escrevendo umas feras objuratórias, as quais, se tivessem gramática à proporção do fel, o Governo havia de pôr as mãos na cabeça e demitir-se.

À excepção de uma lista, o morgado de Agra de Freimas teve-as todas. A que não tinha o nome simpático aos eleitores votava em Brás Lobato, professor de instrução primária, secretário da paróquia e ex-sargento das milícias de Mirandela. Afinal, maculou a alvura do nobilíssimo desprendimento com que perorara em pró da eleição de Calisto. Fragilidade humana!»


A Queda de Um Anjo (1866), Camilo Castelo Branco





* AQUI para quem quiser ver e ouvir letra e música.

































28 de maio de 2012

Casamento em Porto da Lage e outras cenas

                                           


Por volta de 1780, Raimundo José de Sousa Henriques, desembargador, proprietário em Porto da Lage, indo já pelos seus cinquenta anos,casa com a jovem Anna Theresa Dorotheia de Sequeira e Silva natural da vila de Paialvo. O casal terá uma dúzia de filhos, pouco mais ou menos, durante os vinte anos do casamento que terminará com a morte do cônjuge no inicio do sec.XIX. Ela ainda permanecerá nesta vida até depois de 1830.
Da felicidade da dupla nada se sabe, pelo menos a autora destas linhas não sabe, mas como tem essa liberdade imagina que se terão aturado na saúde e na doença, na alegria e na tristeza e na riqueza (a pobreza prevista no latinório não se aplicaria neste caso),no sossego e na Graça de Deus, ela mais do que ele, naturalmente. Naturalmente, porque é da natureza das mulheres a propensão para "aturar" e, no caso de marido velho e daquele tempo, devia mesmo de ter que se "aturar muito", a gota, o catarro, a surdez, a capacidade para fazer filhos anualmente e a incapacidade de compreender os trabalhos acrescidos pelo facto, tudo acrescentado com a embirrice, a caturrice da rotina, a prisão a hábitos velhos e as correntes de ar, ah pois, importantíssimo, as correntes de ar! A pobre devia estar tão farta de janelas rachadas, portas empenadas, tectos gotejantes e de andar sempre enrolada em mantas que ainda o defunto não tinha arrefecido já ela tinha mudado de casa. Sim, que não há como um homem para se agarrar a quatro paredes nem que estas ameacem desabar há quatro gerações, só para não ter que fazer mudanças! Mas enfim, o saldo acabou por ser positivo. Ela teve, pelo menos, o último terço da sua vida para recuperar!

Mas, não foi este o único  casamento exemplar que vos trouxe, outros o foram senão tão felizes, pelo menos mais, muito mais, emotivos. Quiçá, mesmo capazes das mais extremas paixões.

É o caso daquele, está bem, é estrangeiro, mas cá também os terá havido (não desesperemos com a nostalgia do "lá fora" que neste aspecto não ficamos a dever nada a povo nenhum), daquele, dizia, retratado pelo pintor e gravador inglês William Hogarth (1697-1764).

William Hogarth que se celebrizou (postumamente) por fazer das suas pinturas uma crítica social à sua época, satiriza em vários quadros um casamento por interesse celebrado na upper class britânica.

        Le Marriage à la mode.

Em 1743 o pintor fez seis quadros,  cujo conjunto intitulou  Le Marriage à la mode  (anos depois passado a gravura), que retratam a tragédia (o drama, o horror, acrescentaria um conhecido comentador dos nossos dias se isto se passasse em vídeo) de um casamento combinado entre os pais dos noivos. A sequência dos quadros conta-nos a história da vida de um casal da alta sociedade, desde o dia em que foi efectuado o contrato de casamento até à sua revogação, no caso, pela morte de ambos. Pelo meio é-nos revelada a vida depravada dos noivos, que quando não se ignoram ou agridem, se divertem com os respectivos amantes. 


1- No primeiro quadro o Conde de Squanderfield, aristocrata arruinado, e um  comerciante abastado, pai de uma bela e casadoira menina, combinam o casamento dos dois filhos. De reparar que estes, já aqui, se encontram de costas voltadas um para o outro, enquanto ela é confortada pelo advogado, o qual responde pelo sugestivo nome de Silvertongue e virá a  desempenhar papel principal no desenrolar, e no finalizar, de toda a novela.
Ajuste de casamento

2- Dias depois do casamento, realça o entusiasmo conjugal e a arrumação do lar, no segundo quadro.


Poucos dias depois



3- A relação entre os dois é de tal qualidade, que o visconde, a dada altura, acompanhado de uma jovem prostituta, procura a cura para a sífilis junto de um pseudo-médico que lhe prescreve as pílulas que tem na mão.



A visita ao charlatão

4- O velho conde morre, o título passa para o jovem casal, que vive como compete à sua estirpe e é moda ao tempo. Logo ao acordar a condessa recebe visitas corteses nos seus aposentos, entre elas o que se adivinha seu amante, o tal advogado Silvertongue.


Pela manhã

5- À dissoluta vida segue-se o moralizante castigo: O conde encontra a condessa com o tal da "língua de prata", que acaba por o matar e fugir (lá vai ele pela janela fora em belos trajes) enquanto a condessa pede perdão ao marido esvaído em sangue...


Morte do conde

6- ...e se suicida depois.

Suicídio da condessa

E digam lá se, apesar de tudo se passar na fleumática Inglaterra,  isto não pede letra de fado?

[Ai credo, até a criancinha agarrada à mãe, minha rica filha!]

Para quem quiser saber mais, ver este blog e  este

25 de maio de 2012

Antepassados


 Eu, que faço parte daquele grupo de homens e mulheres que, segundo ele “ experimenta o fascínio pelo passado que carrega no seu próprio corpo e pela memória simbólica que também vive”, presto, ao  professor José Mattoso, a minha homenagem e apresento-lhe a minha grande admiração
Apodero-me das suas palavras, porque ainda não encontrei outras que definam melhor o que penso e o que procuro fazer:
«Outrora praticava-se a genealogia principalmente para demonstrar glórias familiares. Fazia parte dos processos de preservação do património simbólico e da defesa do status alcançado. Exaltavam-se os grandes e ocultavam-se as “ovelhas ranhosas”, cantavam-se os feitos gloriosos e escondiam-se as bastardias e opróbios, acentuavam-se os cargos e honrarias e omitiam-se os ofícios subalternos. Ainda há quem, ingenuamente, continue a praticá-la assim. Mas a opinião pública não perdoa. Não acusa a ingenuidade mas o ridículo. Hoje não se pode ocultar nada. Sabe-se que nem a honra nem a vergonha se herdam, e que só o mérito próprio tem algum valor no mercado social. E para quem pensa um pouco e não está obcecado pelo sucesso, depressa descobre que a luta pela vida, mesmo quando reprovada pela sociedade, tem sempre alguma coisa de admirável. Demonstra sempre o mistério do seu indomável recomeço. Demonstra também que, se a transmissão da posse e do poder é ilusória, não o é de todo a transmissão do ser. Devemos sempre alguma coisa aos nossos antepassados. Devemos o que começámos a ser, por muito que seja nosso aquilo que nos tornámos.
Reconstituir a cadeia dos antepassados é, portanto, ao mesmo tempo, fazer o reconhecimento ou tomar consciência da nossa herança genética e cultural, e prestar homenagem àqueles a quem a devemos. É uma forma de reconhecer a vida que os mortos não deixaram nunca de semear à sua maneira. É o modo moderno de venerar os mortos, na esperança de que eles nos tragam a prosperidade, como faziam, com os seus milenários rituais, as sociedades antigas».

In prefácio de “Dos Leais de Sintra a Colares aos da Região Oeste” de Luís Filipe Marques da Gama, edição da Câmara Municipal de Óbidos.












24 de maio de 2012

Manuel da Silva




* "Na sessão de 6 de Março de 1747 foi dada licença a Manuel da Silva, de Porto da Laje, para usar da sua estalagem no forma do seu Regimento, e poder vender cevada a 240 réis o alqueire, e palha a 20 réis a joeira".








As Ordenações Filipinas de 1603, baseadas nas anteriores, Manuelinas, foram mandadas fazer pelo primeiro Filipe mas apenas proclamadas pelo segundo; embora muito alteradas, constituíram a base do direito português até à entrada em vigor dos primeiros códigos liberais do século XIX. Mantiveram-se, porém, muitas das suas disposições no Brasil até ao advento do código Civil naquele país em 1916.
Em 22 de Setembro de 1607, sustentadas naquelas ordenações, foram aprovadas as Posturas Camarárias, pela Câmara de Tomar, Nobreza, Homens de Governança e «Os doze dos Misteres» que fixam as normas juridicas aplicadas em Tomar e seu termo, isto é, a agora cidade mais sensivelmente as freguesias rurais actuais do concelho de Tomar. O livro das Posturas foi destruído pelos franceses em 1810 e depois refeito, conforme certifica, no final da cópia que redige, o escrivão da Câmara João E. de Almeida Xavier em 10 de Novembro de 1811«e dou de tudo fé de ter lido o referido naquele livro, e achar na fuga do inimigo a falta dele e de outros da Câmara; e para que conste para o futuro passei o presente que assino.»
Tomar no sec.XVII
As Ordenações aplicam-se a um tempo em que a vida de cada um era  regulamentada até ao ínfimo pormenor. Deus seja louvado, parecia que tudo estava previsto e nada era deixado ao acaso. Não era esquecido mandar cortar uma asa aos perus "por se ter experiência que voam e comem a fruta das árvores", de proibir a lavagem de tripas no rio da Vila do Açude para cima ou da Levada, sob pena de pagar cem réis, de não se permitir que ninguém" dê ou alugue jogo de bola" ao domingo ou dia santo antes de se dizerem as missas em todas as igrejas e conventos, etc.

Jean-Baptiste Chardin , O jogo de Bilhar, 1725
Fácil seria, ao ler as Posturas, saber como corria a vida de todos os cristãos daquele tempo, quando acordavam, iam dormir e com quem, o que comiam, vestiam, em que ocasiões podiam usar chapéu ou manto,"e de modo nenhum haverá manto com chapéu, salvo as parteiras que andarem de mula" quando saiam à rua, com quem e quando conversavam as mulheres e com que intensidade "toda a mulher que for achada a descompor outra pagará 500 reis", quanto custavam os géneros e quem exactamente vendia o quê, que não havia lá grandes superfícies com tudo ao molho, não senhor, todos tinham a sua função e cada função os seus usos, mais regras e juízes. Tudo estava parametrizada a régua e esquadro.

                                                 Fragonard, As lavadeiras, 1777-1779

E digo seria pois não me esqueço que falo dos nossos antepassados, aqueles onde corria o sangue que ainda nos trespassa as veias, e duvido. Duvido porque acredito na ciência, considero que não descendemos das tristes ervas e que não é por acaso que somos como somos no presente.  Há que respeitar as determinações da genética e assim considerar os nossos antepassados nossos iguais. Onde se vê agora um português não procurar um interstício da lei para dela fugir? Quem tem leis mais bem feitas, precursoras, e, agora, fracturantes, do que os actuais tugas, que só servem para decorar os bonitos códigos? Tenho para mim que teria sido sempre assim desde que D.Diniz teve a inédita ideia de promover uma língua nativa, um crioulo do latim, falado por autóctones mais arabisados do que romanizados, como língua oficial. Em poucas palavras: custa-me a acreditar que toda aquela "normalogia" fosse cumprida.

                                               Johannes Vermeer, A Leiteira, 1658-1660
                                                        


                                            Diego Velasquez, As Tecedeiras, 1657



                                                Quiringh van Brekelenk, O Alfaiate, 1663


                                                 Nicolas Maes, A Guarda-Livros, 1656 


                                                Jan Steen (1626-1679), O médico e a paciente, data  desconhecida. 



                                                     Francisco Goya (1746 - 1828),  A Forja, data desconhecida.

Mas voltando aquilo a que hoje chamamos profissões, todas eram normalisadissimas (de norma), desde a autorização pelo rei para cada um "exercer o mister", o que passava muitas vezes pela feitura de exames (caso dos meio-cirurgião - podiam curar de cirurgião nos casos de feridas e simples chagas, dos barbeiros sangradores e parteiras examinados por dois cirurgiões que os deveriam considerar aprovados, nestes termos - o Dr cirurgião mor destes reinos deu licença a Sebastião António da Mota, filho de Francisco Antunes do termo de Tomar, para poder sangrar, sarrafar, deitar ventosas e sanguessugas e arrancar dentes, em todo o tempo e lugares do reino, porquanto foi examinado e ficou aprovado), até à licença camarária para ter ofício e até para deixar de o ter, pois mesmo para se desistir de trabalhar era necessária ordem superior!
   
Jean Baptiste Greuze,  Ovos Partidos, 1756
                                       
Também os estalajadeiros, incluídos nas classes mecânicas, tinham um regulamento e elegiam entre os seus,  um juiz dos ofícios.
Eis algumas normas a que estavam obrigados:
-Pessoa alguma não será vendedeiro nem estalajadeiro sem fiança da Câmara, sob pena de 1$000 reis e venderão todas as coisas necessárias à estalagem; e terão camas e estarão sempre providos de tudo, sob a dita pena.,
- Quem tiver vinho para vender e tirar o ramo e denegar a venda dele a qualquer pessoa da Vila ou de fora dela, pagará 200 reis, e esta Postura se entenderá com os vendeiros e taberneiros;
- E se for vendeiro ou estalajadeiro ou taberneiro, será privado do dito mister, além da pena;
- Os estalajadeiros que tiverem agasalho para cavalgaduras terão boas manjedoiras e bem vedadas, com suas argolas, e não haverá nelas rotura nem quebradura; nas ditas estrebarias não terão animal solto seu nem alheio e as manjedoiras que não tiverem bem vedadas como dito é, por cada vez que lhe forem achadas mal reparadas, pagarão 200 reis; e não tendo aonde se possam prender as cavalgaduras, 100 réis, e achando-se besta solta ou outro animal pagará o vendeiro 500 reis, posto que a besta não seja sua,
- e os almotacés e rendeiros os visitarão, e se alguma pessoa denegar a vista, pagará 1$000 reis, constando que foi malícia; a metade para o Concelho e a outra metade para o acusador.
- terão o vinho e cevada na casa dianteira com as medidas dela e tudo medirão perante os compradores e na mesma casa medirão na dita forma a palha, sob pena de 500 reis.

Seriam estas, entre outras, as normas a que esteve sujeito Manuel da Silva?  Será que as cumpria e faria cumprir?
 Seria muito visitado pelos almotacés e seriam estes «asae's» de l'ancien regime íntegros ou corrompíveis/corruptores?


     


                                             
       



Theobald Michau, A caminho da Feira, c.1745



Fontes:Posturas Camarárias :Livro dos Acórdãos Camarários, in A.M.T 1581-1700, pags-49 a 102.

* Manuel da Silva : Anais do Município de Tomar (A.M.T.), 1700-1770, pag. 117  

Figuras 12 e 13: Jean Baptiste Chardin: Mulher Descascando Legumes e Mulher pondo água numa vazilha, 1737

20 de maio de 2012

Ridicularias

Hieronymus Bosch -A nave dos Loucos


                                                      Ó mar alto, ó mar alto,

                                                      Ó mar alto sem ter fundo!

                                                      Mais vale andar no mar alto

                                                      Que andar nas bocas do mundo!


                                                       Está d’anil o céu sereno,
                                                        Vai ao campo, colhe flores;

                                                        Não m’importa o céu sereno,

                                                        Que o céu muda as suas cores

                                                    (quadras populares)


                                                 "Coitado de quem as ouve, que quem as diz desabafa"
                                                      (ditado preferido de J.A.P.M- meu pai)




Este blog tem uma pessoa por trás, responsável por colocar o que por aqui aparece! Surpresos? Pois tem!  É assunto que interessa pouco,  quase nada, o quase fica por conta de ridicularias.
Como aquela  ironia, que se julga fina, e que se lança pretendendo sobressaltar consciências e reivindicar éticas. Toda a calúnia é repugnante, quando é insinuada acresce  cobardia, pois não permite resposta directa. O ridiculo do pretexto, reflecte necessidade de afirmação. Merece respeito?  Não! Lamento.

19 de maio de 2012

Outros rendimentos



O exercicio da medicina não seria muito lucrativo, para já não falar da investigação histórica ....



Publicado no semanario «A Verdade», 1-º Jornal de Tomar, em 2 de Janeiro de 1898

17 de maio de 2012

Dia da espiga






                                        Levantei-me de madrugada
                                        Para varrer meu balcão
                                        Apareceu-me Nossa Senhora
                                        Com o cordão d’oiro na mão

                                        Pedi-lhe uma folhinha
                                        Ela me disse que não
                                        Eu lha tornei a pedir
                                        Ela me deu seu cordão

                                        As pontas que cresciam
                                        Chegavam até ao chão
                                        Nossa Senhora mo deu
                                        Em Quinta-Feira de Ascensão

                                            (Oração Popular de Quinta-Feira da Ascensão)


Compensações



Hoje, quinta-feira da Ascensão é dia feriado (municipal) por quase todo o Ribatejo e Litoral Oeste, a velha região saloia. Os locais, abandonando tradições, rumam à capital tratar de assuntos aproveitando aqui ser dia útil, juntando mais trânsito ao já caótico proveniente da greve do metro.

Em cada esquina da velha Lisboa, coloridos alguidares e baldes de plástico, transbordantes de malmequeres e encarnadas papoilas, atraem multidões que correm a “comprar a espiga” por dois e três euros, ao som de “é para dar dinheiro e sorte” e transportam-na todo o dia, nos escritórios e nas lojas, para, chegados a casa, a colocarem na cozinha, “de cabeça para baixo” a substituir a já seca, do ano anterior.







16 de maio de 2012

Paixões Funestas em Porto da Lage

Casa onde morava Maria da Purificação, com a mãe e o irmão Francisco
                                                                                                    


- Amanhã vais à missa?
- Vou, porquê? – respondeu Maria da Purificação a  Francisco, estranhando a pergunta. Há dias já que não se falavam, desde que ela terminara o namoro.
- Por nada!

Foi a última vez nesta vida que cruzaram palavras aquelas duas almas. Tinham-se entendido, trocado promessas e feito projectos. Tudo até que o irmão dela se inteirara, dissera à mãe e os dois tinham acabado com o sonho dos namorados. Ele não estava à altura da soberba da mãe nem da ambição do irmão, disseram as gentes depois da tragédia, um pobre funileiro, estabelecido na pequena loja arrendada à família dela. A herança que herdara do pai não era para ser repartida com um pobre diabo, antes para ser acrescentada com os bens de alguém, pelo menos, igual a ela.

No dia seguinte, domingo, pela manhã, Francisco Silva esperava, na estrada à saída do Paço, para consumar o que tinha andado a congeminar desde a hora fatídica em que ela o procurara “não vale a pena, a mãe e o Francisco são contra, não posso ser ingrata e fazer a infelicidade de quem tem vivido só para nós, os filhos”. Não a conseguira demover, a vontade da mãe ou, cria agora, o pouco poder do amor, que ele imaginara um dia igualar a força do seu, tinham desfeito a mais linda quimera que alguma vez nascera no seu coração triste e na sua vida solitária. Ela fora implacável, não quisera saber da sua dor, embora pugnasse também sofrer, e cortara cerce todo o alento que ele ainda suplicara.

A dureza dela e o malogro de tantas ilusões perdidas tinham feito nascer naquele dia o funesto propósito que concretizava agora. Lá vinham todos, observava ele de onde se encontrava, ela acompanhada da família, corja de gente arrogante, vinham da missa em S.Silvestre. Aproximavam-se, parecia contente ela, destacava-se dos outros, sorriu-se quando o viu. Agora! Viu-a cair, surpresa, o peito empapado em sangue. Chegavam duas vidas ao fim, pensou quando se sentiu manietado. No final o mesmo destino! Como ambos tinham planeado em dias felizes.

E  assim Maria da Purificação, nascida em Porto da Lage em 11 de Junho de 1902, perdeu a vida com um tiro de espingarda, às onze horas do dia 5 de Dezembro de 1926. Era filha de Ana de Jesus Sousa Rosa e de Manuel Escudeiro. No dia seguinte, o primo António Motta vai a Tomar fazer a competente declaração ao registo civil para que possa ser sepultada no cemitério de Cem Soldos. No assento de óbito é dada como Purificação de Jesus Rosa, a causa da morte está em branco.

Consta que, no velório, a mãe chorosa murmurava - antes assim.

Francisco Silva fora imediatamente agarrado pelos homens presentes e preso na loja da casa de Manuel Augusto Motta, em Porto da Lage, aguardando a vinda das autoridades. Depois de julgado foi condenado a degredo em Africa.(MFM*)


A capa do semanário "O Domingo Ilustrado" do domingo  seguinte 12 de Dezembro,
reproduz fantasiosamente o crime, com a seguinte legenda Em Tomar, um tresloucado, Francisco
Silva assassina sem mais nem mais, à saída da missa, a sua ex-namorada, Maria da Purificação.
Tragédia passional  intensa, apaixonou a opinião pública, pela sem razão do crime
que arrebatou uma mulher honesta, na plena força da vida.



     No local em que caiu o corpo de Maria da Purificação, erigiu a população uma cruz de ferro sobre uma base de pedra. Já só resta a base.

                                          Casa em cujo r/c esteve preso Francisco Silva,  antes de ser
                                                       levado pelas autoridades.






*- À memória da minha avó Maria José, testemunha presencial dos acontecimentos, que condenava, sem conseguir esconder a simpatia que lhe inspirara o “pobre infeliz”, que fora visitar e ouvir depois da tragédia, o qual considerava "vítima de paixões funestas e das tentações do inimigo". Livrai-nos Senhor de ambas, Amen.
*-Com os meus agradecimentos à Dulcinda Teixeira, que me recontou a história e “escarafunchou” testemunhas para conseguir arranjar datas aproximadas (1927), e também ao Registo Civil de Tomar que depois de muitas tentativas próprias, goradas, permitiu que eu procurasse directamente a data do óbito.





14 de maio de 2012

Outra vez a Estrada de Paialvo

                                                        Manifestação nos Restauradores de repúdio pelo Ultimatum inglês.
                                                         Revista “O Occidente”, nº 399 de 21 de Janeiro de 1890

1894-na sessão de 12 de Julho da Câmara de Tomar, deliberou-se pedir ao director das obras públicas do distrito para mandar continuar a reconstrução do pavimento da estrada real que liga esta cidade com a estação de caminhos de ferro de Paialvo.

                                       
                                           Boers no porto de Lourenço Marques a aguardar barco para a Europa, 1902

1902- na sessão de 27 de Fevereiro a Câmara pediu ao Governo a reparação da estrada de Tomar a Paialvo «que se acha em tal estado de derioração que se torna por ela quase impossível transitar».


                                        Entre 1900 e 1903 perto de 300.000 portugueses emigraram sobretudo para a 
                                        Brasil. Segundo o censo populacional 1901 Portugal tinha cerca de 5,5 milhões
                                        de habitantes.

1903- estrada de Tomar a Paialvo- A Câmara solicitou do Governo de Sua Majestade a reparação desta estrada pois se encontra intransitável.

                                                 

                                   

                                                             Desfile 1.º Maio 1903, Lisboa.
1904- 4 de Agosto- estrada de Tomar a Paialvo- a Câmara pediu para que esta estrada seja totalmente reparada, a qual se acha toda em péssimo estado.

1914- 15 de Fevereiro – a direcção das obras públicas do distrito de Santarém oficiou neste dia dizendo que está autorizado a reparar o troço da estrada nacional n.º15 Paialvo-Tomar, devendo esse serviço começar logo que o tempo permita.

1914 – 22 de Fevereiro- O presidente da comissão executiva da Câmara informa ter sido procurado pelo Director da companhia de viação Tomarense e pelo administrador da Fábrica de Fiação, os quais lhe falaram no deplorável estado em que se encontram as estradas que ligam esta cidade ás estações de caminho de ferro de Paialvo e de Chão de Maçãs, e ainda ter recebido da associação comercial e industrial um ofício tratando do mesmo assunto, que foi lido. A comissão atendendo a que se não forem feitas imediatas reparações nestas estradas o Concelho ficará em breves dias completamente isolado do resto do país por falta de comunicações, resolveu ir na sua maioria a Lisboa tratar com o Ministério do Fomento de tão importante assunto …..




1914- 16 de Abril – o vereador Duarte Faustino alvitrou a reparação da estrada de Paialvo, visto encontrar-se intransitável.


                           
                                       Assassinato do Arquiduque Francisco Fernando da Áustria,
                                           Sarajevo, 28.6.1914


Nov.1914,Capa da Ilustração Portuguesa n.º450 ,
Partida do Batalhão de Marinha Expedicionario
 para Angola


O Vagabundo, Charlie Chaplin, 1915
1915-18 de Janeiro- os directores da Companhia Papel do Prado oficiaram tratando do desgraçadíssimo estado em que se encontra a estrada de Paialvo, pedindo para que se pondere ao Governo a absoluta necessidade de fazer desde já algumas reparações mais urgentes, embora provisórias. E de providenciar para que a reparação definitiva se comece o mais tardar dentro de 2 meses.Foi resolvido comunicar-lhes que esta câmara, mais de uma vez, no ano findo, pediu ao director das obras publicas do distrito de Santarém a reparação da estrada de Paialvo, e que em sessão plenária da Câmara Municipal deste concelho foi deliberado solicitar do Ministério do Fomento que a referida reparação se fizesse com a maior urgência.
 1915- a 1 de Março realizou-se em Lisboa uma conferencia com o ministro do Fomento, a qual assistiram o presidente e vereadores, um delegado da Associação Comercial e Industrial, os directores da Companhia Papel do Prado e Companhia de Tecidos de Tomar, acerca das reparações de que carecem as estradas de Paialvo e de Chão de Maçãs. O ministro disse que ia dar ordens para que na estrada de Chão de Maçãs fossem feitas imediatamente as reparações necessárias, para se assegurar por ela o trânsito enquanto não fosse devidamente reparada a de Paialvo.
Mais tarde a Câmara recebe um telegrama em que se informa da transferência de verbas para aquele arranjo.




                     A  Formiga Branca desfilando, após a revolta de
14 de Maio de 1915
1915- 8 de Abril- o vereador Lopes Quintas,
acerca da estrada que liga esta cidade com a
 estação de caminho de ferro de Paialvo, diz 
constar-lhe que só há verba para a reparação,
do ponto em diante que ela se acha muito des
truída, até Marco da Légua (Algarvias) e sendo assim pede para que a comissão executiva envide os seus esforços no sentido de a referida estrada ser reparada por completo.





                                                                                                  
1915 – em 12 de Agosto, Manuel Mendes Godinho refere-se à proibição de carros de carga transitarem pela estrada de Paialvo, com fundamento na reparação da mesma, alegando que estando as suas máquinas, que accionam os dínamos produtores de energia eléctrica para funcionamento da Fábrica de Moagem, Moinhos e Fábrica de Luz a ser alimentados pelas lenhas provenientes dum pinhal que comprou na Quinta da Anunciada Velha, cuja serventia é a estrada em questão, com a qual liga no sitio da Azinhaga ou Choupal, será em breve trecho obrigado a cessar a laboração em virtude da falta de combustível que fica impossibilitado de para ali conduzir; que se se vir impossibilitado de fazer modificar a referida determinação, a fim de lhe ser concedido fazer o transporte das referidas lenhas, muito agradeceria, porque a dificuldade e talvez perturbações que possa produzir a falta de farinhas no nosso concelho que quase exclusivamente se abastece da sua Fábrica, e bem assim a deficiência da iluminação que terá de passar a ser de petróleo; que em caso contrário será forçado a declinar as responsabilidades de que tais factos possam advir.Foi resolvido oficiar ao Ministro do Fomento, protestando energicamente contra semelhante ordem.


A.M.T. 1901-1925 fls.37,77, 183, 348, 350, 355, 373, 374, 375, 378, 388