Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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9 de agosto de 2012

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Baía de Luanda, 1972
Mãe não tem limite,                                        
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade, 1902, 1987

À minha mãe que se foi embora faz hoje doze anos.

7 de agosto de 2012

O Jardim

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa,n.1924

6 de agosto de 2012

Poema Quotidiano

É tão depressa noite neste bairro                             
Nenhum outro porém senhor administrador     
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
                                                                      



                                                                      


                                                                      

                                                                       Nunca em tantos pés
                                                                       assim humildemente brilhou
                                                                       Orientou diz-se até os olhos das crianças
                                                                       para a escola e pôs reflexos novos
                                                                       nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

Ruy Belo, 1933, 1978

5 de agosto de 2012

Quando o Amor



Quando o amor morrer dentro de ti,                        
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
                                                               



 E se ninguém vier, ergue o sudário
                                                                Que mil saudosas lágrimas velaram;
                                                                Desfralda na tua alma o inventário
                                                                Do templo onde a vida ora de bruços
                                                               A Deus e aos sonhos que gelaram.

                                                               Ruy Cinatti, 1915, 1986

4 de agosto de 2012

Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,                  
como sereis cruéis, como sereis injustas?              
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso           
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.

Jorge de Sena,1919, 1978

3 de agosto de 2012

Escada sem corrimão




                                                    É uma escada em caracol
                                                    E que não tem corrimão.
                                                    Vai a caminho do Sol
                                                    Mas nunca passa do chão.

                                                    Os degraus, quanto mais altos,
                                                    Mais estragados estão,
                                                    Nem sustos nem sobressaltos
                                                    servem sequer de lição.

                                                   Quem tem medo não a sobe
                                                   Quem tem sonhos também não.
                                                   Há quem chegue a deitar fora
                                                   O lastro do coração.

                                                   Sobe-se numa corrida.
                                                   Corre-se p'rigos em vão.
                                                   Adivinhaste: é a vida
                                                   A escada sem corrimão.


                                                   David Mourão-Ferreira (1927,1996)

2 de agosto de 2012

Questão de Pontuação

Todo mundo aceita que ao homem
Cabe pontuar a própria vida:                   
Que viva em ponto de exclamação                       
(Dizem: tem alma dionisíaca);                            

Viva em ponto de interrogação
(Foi filosofia, ora é poesia);
Viva equilibrando-se entre vírgulas
E sem pontuação (na política):

O homem só não aceita do homem
Que use a só pontuação fatal:
Que use, na frase que ele vive
O  inevitável ponto final.


João Cabral de Melo Neto, 1920, 1999

1 de agosto de 2012

Realidade


Fomos longe demais, para voltar
Aos antigos canteiros onde há rosas.              
Em nós, o ouvido, quase e, quase, o olhar   
Buscam nas cores vozes misteriosas...

Mas o mistério é flor da juventude.
Não rima com poemas desumanos.
A idade — a nossa idade! — nunca ilude.
Só uma vez é que se tem vinte anos.

Quebrámos todos, todos os espelhos
E o sol que, neles, está hoje posto
Já não reflecte os lábios tão vermelhos
Que nos iluminam, sempre, o rosto.

Realidade? Há uma: apenas esta!
— Somos espectros na cidade em festa.

Pedro Homem de Mello, 1904, 1984