Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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1 de junho de 2012

Mais eleições





Figuras no Adro da Igreja, José Júlio de Sousa Pinto (1856-1939)



« [...]
Assim, pois, todas as probabilidades eram a favor do candidato do Governo, homem desconhecido deste povo, o qual também era desconhecido para ele, um empregado de secretaria, que nunca saíra de Lisboa e que era o primeiro a rir-se do campanário obscuro de que se propunha a ser representante ; criatura dos ministros, que o desejavam eleger a todo o custo, por terem nele um voto complacente e um parlamentar de boa feição.

Logo pela manhã do domingo, marcado para a grande solenidade civil, o adro da igreja paroquial apresentava uma animação fora do costume. Grupos formados aqui e ali conferenciavam, entreolhando-se com desconfiança, ou correspondendo-se por sinais de inteligência, conforme pertenciam à mesma ou a oposta parcialidade. Os agentes eleitorais, os influentes dos dois campos, acercavam-se deste, apertavam a mão àquele, segredavam com um, batiam no ombro a outro, discutiam com um terceiro, e, sempre que era possível, distribuíam listas ao maior número.
O brasileiro era a alma do partido governamental. O Tapadas capitaneava a falange do conselheiro. Pertunhas falava com todos, esfregando as mãos e sorrindo. O regedor passeava com importância por entre os grupos, recomendava ordem e respeito às autoridades, e dava de olho aos cabos, seus subordinados, para que se não esquecessem de cumprir as instruções recebidas, votando no candidato ministerial.
Aproximava-se a hora, e principiavam os trabalhos para a constituição da mesa. O pároco, o administrador e o regedor foram ocupar o seu lugar. Ficou presidente o brasileiro, e o resto da mesa formou-se de entre as duas parcialidades.
Enquanto se organizavam assim os trabalhos, eram discutidas no adro as probabilidades da vitória. A mesa eleitoral, instituída no meio da igreja, com grande escândalo do beaterío, que pela voz dos padres chamava àquilo artes do Demónio, ia principiar a funcionar. O conselheiro, que viera mais tarde, de propósito para não formar parte da mesa, requereu, com o relógio na mão, que se abrisse a urna aos eleitores, visto ser a hora marcada no edital.
Este requerimento, simples e justo como era, suscitou discussão.
O brasileiro alegou que, sendo os de Pinchões os primeiros a votar, em virtude do artigo 62.° do decreto eleitoral, que manda votar primeiro a freguesia mais distante, e não estando na assembleia ninguém daquela freguesia, convinha esperar.
O conselheiro insistiu, dizendo que a lei não mandava esperar por os eleitores, mas apenas indicava a ordem da chamada, e que portanto votassem os presentes, e que na segunda chamada, ou nas duas horas de espera, votariam os ausentes que depois viessem.
Esta questão não se resolveu de pronto. Trocados alguns alvitres, lida a lei, discutidos os artigos dela, consultados os recenseamentos e mapas, pedidos esclarecimentos ao regedor, ao administrador, e ao pároco, é que se aprovou a proposta do conselheiro e principiou a chamada.
A freguesia de Pinchões faltou em peso.
O brasileiro estava perturbado; olhava para a porta, olhava para os primeiros votos recolhidos mal os pôde introduzir na urna, de trémulo e sobressaltado que estava.
O homem supunha que lhe tinha sido roubada à última hora uma freguesia inteira. Não estava muito longe de acreditar que os agentes do conselheiro a haviam arrasado completamente.
A freguesia que se seguia na votação era uma das que se conservavam fiéis ao conselheiro, circunstância que aumentava a indisposição do Seabra.
A votação ia, porém, correndo, interrompida apenas por algumas questiúnculas sobre a identidade de um ou de outro eleitor e sobre a regularidade desta ou daquela lista, graças aos fúteis pretextos de que os contendores lançavam mão para disputarem, voto a voto, o sufrágio popular.
Ia adiantada a votação, quando correu na igreja uma voz, que veio infundir alento no ânimo desfalecido do brasileiro.
— Vêm aí os de Pinchões!... Aí estão os de Pinchões... Ai vem o Sr. Joãozinho e toda a sua gente ! — dizia-se de toda a parte.
Esta nova passou de boca em boca, a ponto de produzir um sussurro na assembleia.
Muitos saíram para ir receber ao adro os anunciados. Chegara de facto ali o Sr. Joãozinho das Perdizes, à frente da sua freguesia.


Entre o Milheiral Henrique Pinto (1853-1912)


Leitor, se tens, como eu, esperança e sincera fé no sistema representativo, perdoa-me o obrigar-te a assistir a uma cena que faz subir a cor ao rosto de quem, como nós, abençoa os sacrifícios por cujo preço nossos pais nos compraram a nobre regalia de intervir, como povo, na governação do Estado, as franquias que nos emanciparam da caprichosa tutela de um homem, revestido de direitos impiamente chamados divinos, contra os quais o instinto e a razão igualmente se revoltam. A cena, porém, humilhante como é, não envolve a mínima censura à excelência do sistema; mas apenas aos que nos quarenta anos que ele quase tem de vida entre nós, não souberam ou não quiseram ainda fazer compreender ao povo toda a grandeza da augusta missão que lhe cabe executar.
Depois das nossas lutas civis, já muitas crianças se fizeram homens; se a escola fosse entre nós o que devia ser, já haveria sobra de eleitores com perfeita consciência dos seus direitos civis.
O atraso e ignorância deles, contristando, somente devem impelir os homens de intenções sinceras e puras a aplicar os esforços de inteligência e de acção para ministrar com a educação a moralidade, e para acordar a consciência desta entidade social.
Era o Sr. Joãozinho das Perdizes à frente da sua freguesia, disse eu.


Festa na Aldeia, Leonel Marques Pereira (1828-1892)


E é justamente este o espectáculo humilhante de que falava. Tendes visto um guardador de cabras à frente do seu rebanho, conduzindo com acenos e assobios todas as barbudas cabeças daquele regimento quadrúpede? Pois vistes o mais perfeito simile da cena que se presenciava agora no adro da igreja matriz.
O povo, o povo soberano, que naquele dia tinha nas mãos o ceptro da sua soberania, não era menos dócil do que os irracionais que recordamos.
O dia em que devia mostrar-se orgulhoso, era quando mais se humilhava ; quando podia dispor dos destinos doa seus senhores, era quando mais vergava a cabeça sob o peso que estes lhe assentavam.
Não é semelhante esta força inconsciente do povo à do boi robusto e válido, que uma criança dirige e subjuga? Forte come ele, como ele dócil, como ele laborioso, como ele útil, não vê que a mesma força que emprega no trabalho lhe poderia servir para repelir o jugo. Ou quando o vê, é quando o desespero e a fúria o cegam e o impelem a revoltas tremendas.


Desfolhada no Minho, Alfredo Morais, 1873-1972

Mas o povo de Pinchões, o povo do Sr. Joãozinho, estava muito longe desses excessos.
O morgado vinha, como já disse, à frente. A barba por fazer, as melenas despenteadas, o lenço do pescoço solto, sem botões o colarinho da camisa, com as mãos metidas no cós das ceroulas, o chicote no bolso da jaqueta de peles, as botas enlameadas até ao joelho, a ponta do cigarro ao canto da boca, o palito atrás da orelha, o chapéu sobre o occipício, dois galgos adiante de si, e o inseparável Cosme quase a latere. Entrou no adro com ares triunfantes, sorrindo e piscando os olhos para os seus amigos e partidários, como para lhes fazer notar a numerosa procissão que o seguia e a docilidade dos membros dela.
Atrás vinham os eleitores de Pinchões, velhos e moços, ricos e pobres, mas todos com o olhar tímido e estúpido, todos com movimentos enleados, todos com os olhos no caudilho, para saber o que deviam fazer. Se ele parava a cumprimentar um amigo, paravam todos comele ; a direcção que tomava, tomavam-na todos a um tempo ; apressavam ou demoravam o passo, segundo a velocidade que ele dava aos seus ; se ria, sorriam ; se praguejava, tudo ficava sério. O cortejo parou à porta da igreja.
O morgado passou revista à sua tropa, à qual deu instruções.
Os homens, com os cabelos para diante dos olhos, os braços estendidos e a cabeça baixa, não ousavam fazer um movimento, e conservavam-se enfileirados até nova ordem do Sr.Joãozinho.




Pareciam envergonhados de serem precisos a alguém.
No bolso de cada um destes homens havia um oitavo de papel almaço dobrado, no qual estava escrito um nome; o nome de um homem que eles nem sabiam se existia no mundo. No momento devido, cada um deles, chamado pela voz do escrutinador eleitoral, responderia: «presente» ; aproximar-se-ia da urna, entregaria ao presidente da mesa aquele papel, e retirar-se-ia satisfeito, como se descarregado de um peso que o oprimia.
Se lhes perguntassem o que tinham feito, qual o alcance daquele acto que acabavam de executar, não saberiam dizê-lo ; se lhes perguntassem o nome do eleito para advogado dos seus interesses e defensor das suas liberdades, a mesma ignorância; se lhes propusessem a resignação do direito de votar, aceitariam com júbilo ; se, finalmente, lhes dissessem que naquele dia estavam nas suas mãos e dos seus pares os destinos do País, abririam os olhos de espantados, ou sorririam com a desconfiança própria dos ignorantes.
Inocente povo!
Querem-te assim os ambiciosos, a quem serves de cómodo degrau.



Depois da Trovoada, Carlos Reis, (1863-1940)

Quando disseram ao Sr. Joãozinho que já tinha passado a sua vez de votar, o homem rompeu pela igreja dentro, berrando, bracejando, ameaçando Céus e Terra, sem atender a quantos lhe clamavam que tinha de se proceder a nova chamada, e que portanto sossegasse, o Cosme seguia-o, pronto a ser executor das suas justiças. Custou a serenar o morgado, e não o fez senão depois de duas pragas contra as pessoas dos senhores da mesa, pragas que razões políticas fizeram engolir ao brasileiro, sem nem sequer lhe tirarem dos lábios o sorriso com que saudara a vinda do morgado.
Caindo em si, o Sr. Joãozinho deu ordem à sua gente para que entrasse para a igreja, e aí a enfileirou a um dos lados dela, prontos à primeira voz.
A chamada prosseguia, e a votação não ia já muito favorável ao conselheiro, a julgar pelos indícios, que não escapam aos olhos amestrados dos mirones.
O brasileiro exultava consigo mesmo, principalmente quando, por sobre as cabeças dos que se agrupavam em volta da urna, divisava as falanges do morgado, compactas e decididas.
O conselheiro ainda tentou uma investida com o Sr. Joãozinho, indo cumprimentá-lo afavelmente; este, porém, grunhiu-lhe um monossílabo seco, e voltou-lhe as costas, envolvido numa nuvem de parciais do brasileiro.
Era caso desesperado.
Passara já a votar a última freguesia, que era justamente aquela onde estava constituída a única assembleia de que se compunha o círculo eleitoral, e onde o leitor tem passado comigo todo o tempo que dura a nossa narração.
Foi então que votou o conselheiro e os outros conhecidos nossos, entre os quais o Zé-Pereira, com este deu-se um episódio cómico, que merece menção.
O brasileiro, ao receber a lista que ele lhe oferecia, sabendo-o parcial do conselheiro, recusou-a, alegando que estava marcada, o que era contra a expressa determinação do artigo 61.°, § único, da lei eleitoral.
Sabidas as contas, a suposta marca era de natureza de que seria quase impossível isentar papel ou objecto qualquer saído das mãos do Zé-Pereira. Era uma nódoa de vinho.
Discutiu-se, ainda assim, se a nódoa era marca ou não era marca, e se lhe deviam ser aplicadas as disposições do § único do artigo 61.°
A discussão intrincada foi cortada por o Zé-Pereira, que disse com a maior candura:
— Se essa está suja, Sr. Tapadas, eu tenho aqui mais daquelas que vossemecê me deu.
O próprio conselheiro desatou a rir.
O brasileiro resmungou:
— Então há suborno aos eleitores? Como se entende isso?
— Ora, não bula na chaga, senão temos muito que ouvir — disse o Tapadas, e acrescentou: — ande para diante; deite a sua lista, Sr. Zé.
Os governamentais, que iam de cima, mostraram-se tolerantes, e a lista caiu na urna.
Estava a findar a primeira chamada. Já se liam os últimos nomes, segundo a ordem alfabética.
A gente de Pinchões, à voz do Sr. Joãozinho, aprontava-se para breve entrar em acção na segunda chamada, que ia principiar.
[...]     »
A Morgadinha dos Canaviais, 1868, Júlio Diniz
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....e mais observações sobre o povo.




                           

«Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas;
Um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai;
Um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta

[...] Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.

Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.'»

Guerra Junqueiro, 1896