Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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20 de junho de 2012

Chamavamos-lhe um figo ...

Estudo para uma figueira, John Singer Sargent (1856, 1925)

Quando tiraste da cesta
Os figos que prometeste
Foi em mim dia de festa
Mas foi a todos que os deste

 Fernando Pessoa


Acerca da origem da figueira não costuma haver dúvidas - a gente lembra-se do Adão e da Eva e da maçã (ora aí está outra arvore coeva - a macieira) e tal e tal, e lá aparecem as folhas da dita agregadas à grande transgressão original e às consequentes agruras desta vida.  
Mais tarde, não lhe bastando ser velhinha como o pecado, a pobre figueira foi amaldiçoada,  só porque outro infeliz   não conseguiu, também, fugir ao seu destino e à tentação e se lembrou, depois,  de pôr termo à vida pendurado num dos seus braços.
Pobre figueira que, sem ter culpa nenhuma, anda tão mal falada e, sobretudo, tão mal associada às maldades e aos fados destes pobres mortais que, parece, também não têm culpa nenhuma do que os deuses e os seus caprichos querem fazer com eles! 
Pois a figueira é velha, era isto que eu queria dizer, terá vindo das ásias há milhares de anos, fixou-se no Mediterrâneo (estão a ver os posts turisticos, com tâmaras, e mar azul e Capri, e o Tibério, etc, etc, e estão também a ver no cinema a família do imperador a matar-se toda entre si, com figos envenenados?, pois é esse Mediterrâneo!). Por essa época já haveria figueiras no território que é hoje Portugal. Mas não há muitas notícias disso. As caravelas transportavam frutos secos, entre eles os figos, e os frescos deviam ser de causar inveja, como anuncia o personagem de Gil Vicente em 1519:

Olhade mulher de bem
Dizem qu’em tempo de figos
Não há hi nenhuns amigos
Nem os busque então ninguém
E diz o exemplo dioso,
Que bem passa de guloso
O que come o que não tem
Muita água há em Boratem
E no poço do tinhoso



E em Porto da Lage, quando começaram as figueiras? Não sei, mas gostaria de saber. Alguém sabe?

No sec.XVIII, data em que há documentos referentes às culturas existentes na zona, o figo não teria valor comestível significativo, pois não figura como doce ou fruta de eleição, como a romã e o marmelo, por exemplo. Muito menos seria um bem capaz de produzir rendimento, pois não era taxado como o eram as vinhas, as oliveiras ou o trigo.

No sec.XIX há muitas referências à existência de alambiques no concelho de Tomar, a freguesia da Madalena é a que apresenta maior número, logo a seguir à sede de concelho. Estará isso relacionado com a produção de figos?
É claro que  a produção de figos vindimos destinados ao mercado do figo passado, para consumo humano, animal e para a industria, teve o seu auge durante quase todo o século XX e Porto da Lage esteve no centro de toda aquela produção,


Esta pintura de uma artista contemporânea Trudi Doyle, intitula-se "Figueiras e
 Oliveiras num jardim da Toscânea". Onde está a diferença com os campos de
Torres Novas, os que se avistam da A1, por exemplo?


No fim dos anos sessenta a figueira ainda ocupava lugar considerável na sua economia agrícola. E, há falta de dados, correctos e rigorosos sobre esta produção, socorro-me da memória, fugidia e, se calhar, fantasiosa, tanto mais que se trata de lembranças de criança. Não peço desculpa por isso, só ajuda, se acharem importante corrigir-me e acrescentar o que aqui vai.
Lembro-me de se fazerem os terreiros, círculos quase perfeitos de terreno limpo, com o tronco da figueira ao centro, destinados a facilitar a apanha dos figos.
Apanhar as passas [de figo] era trabalho duro, não tão duro quanto o apanhar da azeitona por fugir aos rigores do frio e da chuva, dizia quem o fazia, mas que a mim me parecia igual pois o dobrar da espinha nos calores ferozes de Agosto para apanhar do chão as pequenas passas pretas não era castigo que se desejasse a ninguém.
Os figos caídos no chão eram assim apanhados e colocados em cestas de vime, por vezes já em modernos baldes de plástico, e depois transferidos para os tabuleiros de madeira para secarem. Os tabuleiros com os figos expostos circulavam de forma a apanharem luz, de feição que nunca percebi, talvez se evitasse o sol directo, não sei.
As passas eram regularmente mexidas, retiradas as melhores e as piores. Foi este o único trabalho agrícola que alguma vez vi a minha avó fazer – escolher as passas. As com mais bom aspecto, lisas, secas e gordas eram postas em sacos de pano, destinadas ao consumo de casa ou para vender. As muito más iam para os porcos, as restantes eram o grosso, o negócio. Vendiam-se à arroba. Os preços eram tabelados de cima, todos os anos se esperava por saber “a como estariam este ano” e se discutia depois se tinha “dado” ou “não dado” atendendo “ao preço do pessoal” e a "estar tudo muito caro".


Jornal  Cidade de Tomar, 19.10.1947

Da época do figo  "ir para a fábrica" e do seu transporte, está registado no meu cérebro um cheiro intenso a um caldo fumegante, que atravessava a povoação e desaguava na ribeira em torrentes pastosas, castanhas, que se perdiam por entre os canaviais e impediam que a roupa continuasse a ser lavada nas margens baixas relvadas  do seu leito, onde um fio transparente tinha corrido durante todo o Verão.

Depois, seguia-se a corrida "ao destilado". Tractores, camionetas, carroças com velhas dornas de madeira ou  recipientes mais modernos, burros de albardas com baldes dentro (como o da minha invejada colega de escola Teresa - como eu gostaria de ir de burro, como a Teresa) transportavam em sentido inverso os despojos da destilação do figo, destinados à  alimentação dos animais.
Vivia-se ainda o tempo do contínuo e ininterrupto circulo alimentar. Nada se perdia! 

Em Outubro, passava-se pela feira "das passas" na Rua dos Arcos, pela Feira de Sta Iria. Só se passava mesmo! Nunca se comprava nada, acho que só se cirandava  por lá para os adultos se inteirarem dos preços, e para nos encurtarem o tempo da estada na feira propriamente dita, a que interessava, pois então (acreditávamos nós, aborrecidos, as crianças)!

Mas não era por isso que nos faltavam durante o resto do Outono, e no Inverno, as deliciosas "sanduiches" das passas de figo recheadas de nozes, as minhas preferidas, e de amêndoas. Tudo acompanhado de passas de uva.
Não havia preocupações calóricas, havia caloroso mimo de avó.
  Onde quer que esteja, a avó desculpa este trocadilho pindérico, não desculpa? Não herdei aquele talento fabuloso de dizer graças e fazer quadras, como a avó!