Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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31 de janeiro de 2013

Memórias paroquiais de Assentiz e Cem Soldos

....Continuação ....
Não pretendendo que esta seja a transcrição exacta em ortografia actual, das memórias, agradecendo a quem me ajudou a fazê-lo e assumindo toda a responsabilidade pelos erros, aqui vai:

Assentiz

«Esta Freguesia de Assentis está na província da Estremadura e do Patriarcado de Lisboa comarca de Santarém termo da vila de Torres Novas e sujeita as suas justiças e do ducado de Aveiro que dizem é ao presente o excelentíssimo marquês de Gouveia, tem esta freguesia duzentos e setenta e quatro vizinhos e oitocentas e noventa e sete pessoas, a paróquia está situada em um vale junto da serra de Aire fora do povoado, a igreja é de uma só nave tem sua capela mor com sua tribuna de talha sobre o trono da qual está a titular desta igreja, que é Nossa Senhora da Purificação, estão mais no dito trono o Menino Deus e São José que tem duas irmandades, tem mais a dita tribuna duas peanhas, em que estão Santa Luzia e Santa Margarida, tem mais esta Igreja quatro altares, dois colaterais e duas capelas, o colateral da parte do Evangelho é do Espírito Santo, tem sua irmandade de enterro [?] da parte dos Outeiros e tem seu Capelão que diz missa todos os domingos e dias santos pelos irmãos da dita irmandade, estão mais no dito altar São Miguel, e São Sebastião está da mesma parte duma capela da Nossa Senhora do Rosário junta com a irmandade das almas que tem seu capelão que diz missa pelas almas todos os domingos e dias santos. O colateral da parte da epistola é de Santo António que tem seus confrades, e são mais no dito altar São Braz, e São Francisco está do mesmo passe [?] Numa capela de Nossa Senhora da Graça que é da Irmandade de enterro [?] da parte de Fungalvaz, tem seu capelão que diz missa todos os domingos e dias santos pelos irmãos da dita irmandade. A mesma confraria é uma casa no lugar de Fungalvaz a que chamam Albergaria e onde se acomodam os pobres passageiros e se lhe dá o que é necessário à custa da dita confraria. Esta igreja dizem ser das mais antigas que há por estes sítios, não se sabe da sua fundação porquanto se queimou o seu cartório há muitos anos. Dizem que foi sagrada por alguns indícios que nela se vêm como sejam algumas cruzes que estão Esculpidas nas paredes. O Pároco ……….Cura é apresentado todos os anos pelo reverendo Prior da Igreja do Salvador da vila de Torres Novas donde é anexa esta igreja, tem da venda o dito pároco um moio de trigo, uma pipa de vinho e seis mil reis que dá o dito reverendo prior [co-que??? Tende???] O pé do altar, tem essa freguesia os lugares seguintes: para a parte do norte o lugar de Assentiz e o de Fungalvaz tem esse uma ermida de Nossa Senhora da Graça que é do Povo, tem seu capelão que diz missa todos os domingos e dias santos pelo dito povo, e da parte do nascente tem o lugar de Beselga e das Moreiras pequenas e o das Moreiras grandes, tem este uma ermida de Nossa Senhora da Conceição  e de que é Administradora Anna Maria dos Vargos tem seu capelão de obrigação que diz missa na dita ermida  todos os domingos e dias santos e sábados pelo instituidor da dita capela que foi o Capitão António Gonçalves do dito lugar, tem da parte do sul o lugar de Outeiro pequeno que tem sua ermida que é do povo com a imagem de São João com seu capelão que diz missa todos os domingos e dias santos ao povo e está do [mesmo passe???] O lugar de Outeiro grande com sua ermida de Santo Estevão que é do povo também com seu capelão, da mesma sorte e da parte do poente está o lugar de Carvalhal do Pombo  com sua ermida de Nossa Senhora da Luz que é do povo com seu capelão, do mesmo modo e da mesma parte está o lugar de Alveirão, [estas???] Mais perto da freguesia vários casais que todos se habitam. Os frutos que os moradores desta freguesia colhem com mais abundância são pão, vinho e azeite. Dista esta freguesia da cidade de Lisboa vinte e duas léguas, é da parte do Norte a ultima do Patriarcado de Lisboa, confina com o Bispado de Leiria e a Prelazia de Tomar. Tem esta freguesia uma légua de comprido com outra de largo, da parte do Norte está a serra de Aire à distância de uma légua que continua para cima e para baixo em muita distancia, pelo meio da dita serra vem uma ribeira que tem seu principio no termo de Ourém por um vale que chamam o Furadouro e onde tem sua ponte de cantaria por onde passa a estrada de Torres Novas para Ourém, e outras mais terras, é de Inverno de curso muito arrebatado pelos penhascos que tem a dita ribeira, passa pelo lugar de Beselga aonde tem dois moinhos e um lugar de azeite e vai findar na ribeira de São Silvestre junto ao porto da Lage, esta serra se cultiva em algumas partes no limite desta freguesia e os frutos que dela se colhem são pão e azeite, criam-se nela alguns animais ferozes como são lobos e raposas e tem alguma caça de coelho e perdizes. Junto do lugar do Outeiro pequeno está uma fonte com bastante abundância de água a que chamam a Fonte de A…… aonde tem principio a ribeira do mesmo nome, e vai continuando seu curso em distancia de duas léguas até findar no Tejo junto à Quinta da Cardiga que é dos freires de Cristo, tem esta ribeira muitos moinhos e lagares, porém nenhum nesta freguesia, todos usam de suas águas sem impedimento algum. Não sei que haja mais coisa alguma digna de memória, de que possa dar meças. E por me ser mandado passei a presente que assinei aos cinco dias do mês de Abril de mil setecentos e cinquenta e oito anos. O.P.Cura Francisco dos Santos…. »                                                                        



 Cem Soldos

 


O que se procura saber dessa terra é o seguinte:                               
1. Como se chama a Terra?                    
2.Qual é o orago da freguesia?                
3.Que título tem o pároco, se é abade,
prior, reitor, vigário ou cura?
4.Quem apresenta a Igreja?                    
5.Quantorendeao pároco?                  
6.Quantas léguas dista de Lisboa e quantas da vila de Thomar?
7.Quantos fogos tem toda a freguesia? 
Esta terra se chama – Cem soldos – o orago é S.Maria Madalena – os párocos se chamam um vigário e outro coadjutor. El- Rei Nosso senhor é o que apresenta [?] o supremo tribunal da mesa da consciência. Rende cada ano cem mil reis para o vigário e outros cem para o coadjutor. Dista de Lisboa 21 léguas e de Tomar meia légua. Tem 300 fogos. 1762 o Vigário João Alves Ribeiro.             
Na outra folha:
 –fogos são 300 mais ou menos [?] 5 conforme os óbitos ou noivados que ocorram, Cem Soldos … junho de 1762 o vigário [parece ser a rubrica de João Alves Ribeiro]

30 de janeiro de 2013

Porto da Lage nas Memórias Paroquiais


Padre Luís Cardoso [entre 1700 e 1750?]. -Colecção de
 Pintura da BNP. Galeria dos Padres Oratorianos

O Padre Luís Cardoso é o precursor no sec.VXIII (c.1732) de estudos de caracterização do território português, fundamentadas em inquérito, que dão origem à publicação entre 1747 e 1751 de dois volumes do seu Dicionário Geográfico, o qual ficou incompleto.

Após o Terramoto de Lisboa, o seu projecto é retomado em 1758, agora com iniciativa estatal, e o questionário de base (destinado a ser respondido pelos párocos) ampliado e dividido em três grandes partes: a paróquia, a serra e o rio.
Sobre a primeira gizaram-se 27 perguntas. Queria-se saber, por exemplo, onde ficava situada, de quem era a jurisdição da localidade, qual a sua população, que título tinha o pároco e que rendas tinha a igreja; se havia conventos, hospitais, misericórdias, ermidas e romarias; se tinha alguma feira, privilégios e antiguidades, fontes ou lagoas, ou muralhas e castelo, bem como personagens ilustres. Perguntava-se também pelos serviços de correio, pelas produções da terra e pelos danos do sismo de 1755.
No respeitante às serras, o objectivo seria conhecer o nome, dimensões, cursos de água ou minas que ali nascessem,   plantas, tipo de clima, gado ou caça que ali existissem.
                                                                                                                                                                   
Sobre os rios apurava-se o nome, o fluxo e volume das águas, a navegabilidade, bem como as pescarias, o cultivo das margens e o aproveitamento e propriedades das águas. Inquiria-se também sobre a existência de pontes e se em algum tempo se retirou ouro de aluvião das suas areias.De notar que qualquer uma das partes encerrava com a recomendação: “E qualquer outra coisa notável que não vá neste interrogatório”.
Ao todo, a Torre do Tombo guarda 44 volumes de Memórias Paroquiais, todos manuscritos e disponíveis online  http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4241804 . As paróquias apresentam-se, de modo geral, ordenadas alfabeticamente, embora algumas vezes apareçam na letra do actual concelho, ou antiga comarca, como é o caso das de Tomar, que aparecem em T(a quem interessar, as paróquias de Tomar fazem parte do n.º52, constante do tomo 36).


 A forma da resposta dada pelos párocos varia,  podendo constituir um excelente repositório sobre a zona, dependendo da prolixidade do pároco. Enquanto uns copiaram de novo as questões, outros limitaram-se a responder de forma ordenada, mantendo o número da pergunta no seu texto. Outros redigiram um texto compacto sobre o inquérito sem assinalar as perguntas.

Três exemplos desta circunstância estão muito próximos de Porto da Lage – os párocos de Assentis, Cem Soldos e Beselga (imagens dos manuscritos representadas abaixo). Este último colocado aqui apenas a título de exemplo (cópia da pergunta seguida da resposta) pois infelizmente pouco mais se pode concluir dado que só esta página se encontra legível.
Os dois primeiros, duas almas desconhecidas que nos deixaram há muito mas sobre as quais não nos será difícil, sem inventar muito, dizer que não devem ter tido muito em comum, salvo os respectivos cargos. Enquanto num ressalta o empenho, a vontade de mostrar o que se passa na sua jurisdição, o outro dá a impressão que despachou (despachou é como quem diz) a obrigação mal e porcamente e depois de muito instado.Basta olhar para as datas, enquanto um escrupulosamente respondeu logo no ano em que recebeu as perguntas, quiçá no próprio mês, o outro esperou por...1762, só quatro anos depois.  Feitios. Dou de barato que o primeiro seria um manga de alpaca “avant la lettre”, um coca-bichinhos chato, sempre a cumprir e a querer agradar aos superiores e o segundo um rebelde que "se estava nas tintas" para as modernices iluminadas vindas da capital. Talvez no seu tempo este suscitasse mais simpatias que aquele, mas, duzentos anos depois, como dá jeito aquele padre ... certinho e cumpridor.
Só mais uma achega (especulativa)  para ajudar a compreender o comportamento dos dois párocos. O de Assentiz, sendo esta uma paróquia de Torres Novas, estava na dependência do patriarca de Lisboa, poder da capital e portanto mais próximo da tutela do poder central. Por outro lado, o da Madalena pertencia à Prelazia de Tomar, território canonicamente independente dos bispados portugueses, cujo Prior era frei da Ordem de Cristo e só respondia perante o Papa. Talvez em 1758 a Ordem ainda estrebuchasse perante as ordens do Marquês de Pombal!

Esta "arrogância" dos freis de Cristo continuará talvez ainda, nos dias de hoje, nos responsáveis tomarenses. As "memórias paroquiais" são verdadeiras fontes históricas populares em quase todos os concelhos portuguesas. Remotas freguesias conhecem a sua história de há duzentos anos graças às "memórias" que as suas Câmaras Municipais em boa hora editaram, exemplo disso é Assentiz que popularizou as suas "memórias". Em Tomar nada disto sucede. Nem digitalizadas existem na Biblioteca Municipal! É um facto que são, a maioria delas, a de Santa Maria dos Olivais incluida, pouco informativas, mas sempre dizem alguma coisa sobre a terra de cada um e as pessoas ligam mais importância a isso do que, à primeira vista, se julgará. mas outras há, como Asseiceira e Paialvo que mereceriam publicação! 








Assentiz







Madalena (documentos aparentemente misturados com Casais)

Beselga 





27 de janeiro de 2013

Valha-nos Nossa Senhora da Piedade


Altar da Capela de Nossa Senhora da Piedade, Tomar



Quando entendi que devia tomar aqui posição sobre esta coisa repulsiva que Henrique Monteiro descreve de forma que subscrevo totalmente, lembrei-me da Pieta de Miguel Angelo, para a ilustrar.
Porque nunca a dor resignada de uma mãe foi tão bem representada como nesta estátua do artista renascentista e porque resignação para uma mãe não é aceitação, é a revolta contida que eu  compartilho inteiramente com esta mulher a quem o Estado se arroga o direito de determinar o que ela deve fazer com um direito natural e humano (e, no caso dela, até divino, segundo a sua fé)  que só a si diz respeito: o de dar à luz. Primeiro, "contratualizando" a sua esterilização e, de seguida,   retirando-lhe os filhos.
Mas depois, por associação de ideias, ao analisar as razões que técnicos e juízes pronunciaram para justificar tão peregrinas ideias, lembrei-me, como sempre me  sucede perante a emergência dos recentes valores que levianamente mandam às ortigas principios estruturantes da nossa civilização,lembrei-me, dizia,   da velha história da humanidade,  e do que pensariam sobre isto  gerações de mulheres que pariram mais de uma dezena de filhos cada uma, sabe-se lá em que condições, para dar origem a esta qualidade de gente actual que desempoeiradamente  produz decisões destas! Pena não terem[aquelas decisões] efeitos retroactivos!
Dessas mulheres, lembrei-me particularmente das que me são próximas, gerações de avós com verdadeiras ninhadas que iam exibir à Senhora na primeira saída que faziam após o parto, lá ao alto do monte, em Tomar. As minhas avós, as mães delas, a minha e eu própria, fomos à Senhora da Piedade pedir a benção para os nossos filhos!
E graças a esta cadeia de lembranças, a humilde e tosca imagem da Pietá da minha terra ocupa o lugar da do grande génio, e, na presença Dela, em memória das minhas duas avós tomarenses, eu repito o que tantas vezes ouvi da boca delas e rogo, perante os desvarios deste perigoso mundo - Valha-nos Nossa Senhora da Piedade.



Pietà, Michelangelo, Vaticano


21 de janeiro de 2013

A tia Conceiçãosinha

[Redacção onde se conta a assombrosa história da assombrada relação de uma miúda de dez anos com a sua especialissima tia-avó portalagense, mais uns apontamentos posteriores que nem interessam nem se percebem mas que a autora não quis cortar porque a redacção já é antiga e ela (a autora) também e tem destas coisas (de velha) de não querer mexer no que já está.]
John Everett Millais-1829, 1896 “Ophelia”   retirado daqui





A tia Conceiçãosinha exercia em mim um fascínio avassalador. Não conseguia deixar de a procurar, de a espreitar. Mas aterrava-me. A tremer, procurava todas as vezes fazer-me encontrada com ela para, logo de seguida, fugir apavorada.

Vi-a, a primeira vez, quando desfolhava o álbum de fotografias de família. Mesmo no fim, preso à contracapa, ocupando-a quase toda, um envelope fechado, grande, azul, de cartolina.

Quando o abri saltaram-me prontamente aos olhos os sapatos de saltos, brancos. Estranhei - era pouco habitual aquele primeiro plano. Vendo melhor, verifiquei tratar-se de uma mulher, de branco, rodeada de flores. Mas os sapatos continuavam a ressaltar, pior, as suas solas viam-se bem demais. A senhora só podia estar deitada! Algo me intuía a ficar pouco tranquila.

Fui perguntar. Resposta – é a tia Conceiçãozinha! E se eu ainda não a conhecia era pelo motivo aparentemente simples de estar morta. Ora, o estado de morta não era inédito naquele álbum, muito poucos dos presentes ainda pertenciam a este mundo. Mas porque estava ela naquela posição? Porquê tanta cerimónia, porquê dentro do envelope azul fechado?

Era o respeito e a saudade filha, a tia Conceiçãosinha estava realmente morta ali, repousada, onde eu a estava a ver. Não era, portanto, como os outros que tinham ido pelo seu pé, ao colo, de burro, sei lá, pelo menos respiravam, quando se tinham posto em frente à câmara fotográfica, julguei perceber eu.

A tia Conceiçãosinha já tinha fa-le-ci-do quando lhe tiraram o retrato!!!!???? E o que estava à minha frente era um ca-dá-ver, vó? – Não se diz assim filha, este é o corpo da tia Conceiçãosinha, coitadinha quando faleceu nunca tinha tirado um retrato, antigamente era assim, e a mãe para ficar com uma recordação mandou tirar-lhe o retrato, o fotógrafo até foi lá a casa. Vês como está linda, vestida de branco, dizem que as feições eram assim mesmo, que está tal e qual ….

O facto de a tia Conceiçãosinha não se ter incomodado a andar em bolandas, depois de morta, a caminho do fotógrafo, o qual tinha feito o favor de se deslocar, coisa a que a minha avó parecia dar tanta importância, não me comoveu. Também não me convenceu a ideia bizarra ditada pela dor da pobre mãe. Mas aquilo que me levou ao estado de completo agastamento foi o de ter de se considerar a tia Conceiçãosinha linda!

Linda, aquela coisa a preto e branco, reparando bem, morta e esticada, de olhos fechados, era aquilo belo em qualquer momento, fosse onde fosse? Mesmo antigamente, mesmo dando o desconto que tudo se passara antigamente, aquilo sítio longínquo justificativo para onde me remetiam e que devia ficar ao lado do “quando fores crescida” quando a explicação não estava ao meu alcance!

E mantive-me irredutível! Aquela tia era feia e tudo o que a rodeava horrível e medonho. Se eu conhecesse a palavra teria dito macabro. Era o que eu sentia perante aquela cena gótica, que transpira funebridade por todos os lados, o vestido, as flores nos cabelos, as mãos postas com o bouquet de noiva entre as mãos, tudo envolto em mesclas de cinzas sombrios! Não deixa a desejar nenhum quadro pré-rafaelita, digo eu agora, pelo contrário, a falta de cor fá-lo ganhar em autenticidade mórbida.

Não posso negar qualidade ao retratista, fosse lá quem fosse, que se dignou, por compaixão ou interesse, pôr-se em viagem com toda a sua parafernália até uma aldeia, tirar um retrato para minorar as mágoas de uma mãe. Conseguira captar de tal modo a atmosfera sepulcral que eu, mal grado a minha bravata ao chamar, alto e bom som, feia à tia, tinha tanto medo dela que nunca mais peguei no álbum da sua morada sem me tremerem as mãos.

Mas tinha uma compulsão em fazê-lo. Sonhava com isso e com a oportunidade de o levar a cabo. A oportunidade residia em estar sol, as janelas bem abertas e eu saber que estava alguém em casa suficientemente distraído para não ver a minha triste figura.

Dadas estas condições a cena passava-se assim: eu entrava na saleta onde estava o álbum, de preferência à hora de entrarem a jorros os raios do sol, de uma das janelas, punha-o no chão no local onde a luz batia no soalho encerado, abria-o na contracapa e olhava para o envelope azul. Levantava-me e ia certificar-me se a avó ou a tia Alice estavam cá em cima (nunca eu abriria o malfadado álbum sozinha em casa) e estariam a coser ou a fazer qualquer outra coisa que as impedisse de me aparecerem de repente. Confirmado isto, abria a porta da rua e deixava-a escancarada. Voltava ao álbum e abria o envelope de mãos frias e garganta seca. Procurava abarcar mais uma vez toda aquela teatralidade funéria, enquanto sustinha a respiração. Aguentava esta visão até o pavor e os pulmões mo permitirem. Quando não podia mais, fechava o envelope, atirava com o álbum para o lugar dele e corria espavorida escada abaixo. Eu sabia que o atropelo causado por este meu ímpeto causaria um – mas o que é que se passa menina, o que é que te deu? que me traria à realidade e me acalmaria sem ninguém adivinhar nunca a causa.
E esta aventura não se repetiu só uma ou duas vezes. A tia Conceiçãosinha esteve muito presente na minha vida enquanto morei naquela casa. Aliás, como era seu direito, pois não era ela responsável pela minha existência?






[A tia Conceiçãosinha, não sendo minha ascendente directa (era minha tia-avó, morrera em 1918 ou 19, vítima da gripe espanhola), contribuiu necessariamente para o meu passeio por este mundo,  pois foi por causa do seu luto que o seu irmão, o meu avô, conheceu a minha avó.]


Eu devia-lhe, portanto, a vida. Coisa, ao que parece, bem valiosa, a julgar pela dívida  pesada que tive de pagar. O que eu sofri.

Mas depois da infância nunca mais a vi.

Mais tarde, tornámo-nos a encontrar, pela última vez, espero, em circunstâncias que tornaram a tia Conceiçãosinha célebre.

Estava eu na faculdade quando, um dia, entrei apressada numa aula. Tinha-me atrasado a tirar fotografias numa máquina, para entregar na secretaria. Sentada na sala, impunha-se, de imediato, olhar para as fotos, nem as tinha visto devido à pressa. E reparei. Era uma fila de quatro rostos iguais, brancos marmóreos, emoldurados por sombras de várias tonalidades de cores acinzentadas que tornavam a trunfa esguedelhada completamente desagarrada da cabeça, fazendo-a parecer uma coroa. Dei um salto - irra, mas é a tia Conceiçãosinha! Ao silêncio imediato do professor, seguiu-se-lhe o – como minha senhora? (era a Universidade doutras eras, os professores tratavam-nos assim), o meu sorriso amarelo, o burburinho dos colegas.

Mas a imprecação do professor foi o que menos me ralou (interrompido, com razão, na prelecção da sua ciência certa de política económica, a que, infelizmente, não pude dar o devido valor, quando foi ministro, possivelmente dada a minha desatenção àquela aula) pôs-me doente, isso sim, ver-me igual à tia Conceiçãosinha. Fiquei chocada, todo o tremor antigo me  reentrou no corpo. E, para o esconjurar, tive que, imediatamente dar conta desse receio ao vizinho do lado. Toda a turma se inteirou, interessada, logo ali. Estou em crer que foi então, por causa da tia Conceiçãosinha, que toda a minha geração perdeu a oportunidade de gerir o país em condições, não fui a única a perder a aula. O que nos valeu foram os outros, os que não tiveram a tia Conceiçãosinha presente nas suas aulas, tomarem conta deste nosso lindo Portugal da forma que sabemos

Pois a partir daí, até ao fim do curso, todo o elemento feminino se dizia ficar uma tia Conceiçãosinha quando se não gostava de ver nas fotografias e pior, o masculino (a grande maioria, sim, que eu ainda pertenço a parte de um século em que a gente vivia rodeada deles por todo o lado) passou a classificar de tia Conceiçãosinha todas as infelizes que não lhes caíam em graça, diziam eles, mas que não passavam de grandessíssimas dores de cotovelo.

Foi na boca deles que a tia Conceiçãosinha, impoluta menina cujo único pecado fora, depois de morta, ter sido dada a conhecer por esta desbocada e desleal sobrinha neta, passou a ser sinónimo de megeras fantasmagóricas que encantavam os pobres rapazes e os deixavam para sempre convertidos em tristes sapos à espera do beijo da próxima. E muitos ainda hoje se encontram nesse estado.

Andam por aí errantes, professores catedráticos de borla e capelo a desfilar nas solenes cerimónias académicas, executivos de camisas de riscas e punhos brancos, mais recentemente, brilhantes comentadores de televisão, que tiveram ao longo das suas arriscadas e voláteis vidas sentimentais muita tia Conceiçãosinha que lhes assombrou o coração e devido às quais, não fugindo a tempo, choraram depois no ombro da seguinte.

É o que dá não se terem precavido a tempo, não se terem colocado debaixo de um protector raio de sol quando olhavam para ela e, depois, fugido a sete pés. (MFM)

Nota final: se a tia Conceiçãosinha fosse bonita e a cores como a "Ophelia", parece-me que a nossa relação não teria sido diferente. A "coisa" continua lá, apesar dos olhos arremelgados e dos nenúfares. 

13 de janeiro de 2013

Vida de cão Tuga

Vida de cão I

A doidice colectiva que anda a varrer este país nos últimos dias (que só pode ser  explicada como uma manobra de evasão para fugir da realidade, os psicólogos dirão) em que, por motivos absolutamente trágicos que nem me atrevo a repeti-los, tal o horror que sinto, é protagonista um cão em processo de abate, não tem melhor descrição que a de Daniel de Oliveira.

Além de concordar inteiramente com ele (o que é quase inédito) acrescento mais: nasci, cresci, vivo e espero viver sempre com a companhia daqueles fiéis e queridos amigos, alguns dos quais vi partir para lhes quebrar o sofrimento, outros porque a sua vida era incompatível com a nossa (para prevenir situações como a da notícia), e não me considero menos sensível do que as vozes histéricas que conseguiram arrastar atrás de si milhares de generosos impulsivos que se comoveram com esta particular  vida de cão. Mas isto da sensibilidade é coisa discutível. O que não se discute é que eu tenho, e felizmente a maioria sensata também tem,  uma coisa que lhes falta: humanidade.
 
 
Vida de cão II
 
Outra maluqueira de massas, esta sim já a posso classificar de rídicula (se tenho que explicar porque é que a outra não é rídicula, meu caro leitor, decididamente não nos entendemos) é aquela de sacrificar uma pobre coitada só porque ela fala com os dentes cerrados e quer juntar dinheiro para comprar uma mala Chanel, o seu desejo de 2013!
As pensantes almas nacionais, as modernas, as que andam nas redes sociais, indignaram-se, acharam uma afronta! Queriam que ela, qual miss universo, pugnasse pela paz no mundo ou, mais  patrioticamente, pelo fim da troika?
Nada a fazer, isto está-nos no sangue, quem não vive "com o credo na boca" de acordo com a religião do momento, fogueira com ele!
A desgraçada lá se arrastou ao santo ofício, perdão, à TV, ajoelhou, fez a sua contrição, jurou e trejurou que sabia que havia pobrezinhos, que a família dela tinha baixado muito de nível de vida, que só ganhava 700€, que a chanel pronto, tá bem, era uma fantasia, enfim, perdoável, não concretizável, que tudo estava descontextualizado. Prometeu que ia ajudar toda a gente que lhe pedisse,  no mundo da moda (vou aproveitar e vou-lhe pedir/exigir  umas dicas, toma que tavas a pedi-las, já que pecaste, agora pagas) e finalmente (como se esperava, abjurou a sua fé, que a rapariga é fraca e a tortura horrível)  contextualizando, desejou para 2013 uma vida melhor para os portugueses, que os jovens arranjem emprego, etc, etc (a oração toda).
 
E agora, estão satisfeitos? Tudo hipocritamente consertadinho, à vontade do tuga? 
 

As idades do mar





Retirado de http://www.gulbenkian.pt/object160article_id3787langId1.h 
Sou uma planta de sequeiro, de longínquas planícies douradas que aspiram, sequiosas, por água, para frutificar e  crescer.
Por isso o mar, aquela mole imensa de água inútil, sempre me foi um corpo estranho. Quando o procurei conhecer, e tentei, tirando o prazer físico do mergulho nas suas ondas,  reconheço que não ficámos amigos.
Não me transmite tranquilidade nem acalma, não me faz rir nem sequer companhia e, quando conversamos, só me consegue angustiar.
E no entanto, sendo-me estranho, não me é indiferente pois provoca-me emoções, desagradáveis, mas emoções. Penso que não será indiferente a ninguém.
A exposição que está a acabar na Gulbenkian  mostra-nos, de um modo peculiar, como estes 7/10 do nosso globo terrestre agem sobre a humanidade, sob o olhar de pintores de várias correntes estéticas.
E, mais uma vez, perante a mestria da pintura, nalguns quadros e pintores mais do que noutros, naturalmente, senti a voracidade daquele espaço enigmático que oprime, sufoca e pode levar à vertigem os nossos pobres seres insignificantes. Mas não foi só isso que senti. E fiquei com esperança.
Talvez, um dia, eu consiga sentir, através dos meus próprios olhos, o que vi através dos de outros, a bonança libertadora das águas luminosas do mar.


12 de janeiro de 2013

Por falar em Paciência



Ex.mo sr. Presidente da
Junta de Freguesia da Madalena


 




 


Serve a presente para manifestar junto de V.Exa o gosto de tive em ver V.Exa,  lamentavelmente apenas deste modo, e apresentar-lhe os meus cordiais e muito sinceros cumprimentos.
Não tenho o prazer de conhecer pessoalmente V.Exa , penitencio-me por nem o nome de V.Exa conhecer, bem como, igualmente, desconhecer a obra que V.Exa , estou certa, leva a cabo, com todo o empenho, na edilidade que os eleitores, muito sabiamente, confiaram à superior direcção de V.Exa.

Estará V.Exa estranhando que eu, desconhecendo-o embora, tenha começado por afirmar o gosto que tive em vê-lo. Pois reitero o prazer que senti, não só em ver, mas, mais do que isso, em ouvir V.Exa.

V.Exa, surpreendentemente, declarou, hélas, num arrebatador minuto, em palavras entendíveis, sãs, escorreitas e, inesperadamente portuguesas (o som não lhe fez justiça mas eu percebi), tudo o que era preciso ser dito. V.Exa é extraordinário!

Bem haja V.Exa não só porque diz o necessário mas também pela seriedade patenteada.

Deslumbrou-se Vexa pelo microfone? Não deslumbrou. Imitou o sr. Presidente da Câmara com palavras irrepetíveis por qualquer ser pensante? Não imitou. Tem V.Exa aspirações a maiores voos políticos? Não tem.
Atrevo-me a responder por V.Exa por estar certa de não estar longe do pensamento de V.Exa . Quisesse V.Exa outro futuro e outro comportamento seria o de V.Exa , mestres e exemplos não escasseiam.


Imploro a compreensão de V.Exa para a feição desusada do estilo desta missiva, mas saberá V.Exa que se apossa de mim, em certas ocasiões, um espírito (de contradição), contra o qual luto ingloriamente desde tenra idade, que me obriga sempre, sempre, a correr contra a corrente. No caso presente, a correnteza leviana da moda das palavras,  que me faz preferir a gongorice rebuscada (que sempre dá uso ao dicionário) ao resmungo (não digo rosnar por respeito a V.Exa ) afectado, soluçante, palavroso mas de léxico pobrissimo e repetitivo, muito popular na linguagem de hoje em dia, sobretudo entre  os colegas de V.Exa (refiro-me aos do governo e de outros poderes desta desditosa pátria, não aos da honrada profissão que V.Exa exercerá e que ignoro qual seja).

Patenteio junto de V.Exa a minha gratidão pela benevolência demonstrada por V.Exa, ao dignar-se ler estas pobres linhas nas quais exorbito destacando este meu malfadado feitio no qual O Senhor, na sua infinita misericórdia, permitiu que o inimigo exercesse o seu demoníaco império, pois já minha querida avó, outrora freguesa da distinta autarquia de V.Exa, me augurava que, se um dia eu caísse  à ribeira, haveria de ir  por ela “acima".

Termino reiterando os meus cumprimentos a V.Exa, almejando que  V.Exa consiga todos os sucessos pessoais e políticos, para o último dos quais, com muito pesar, ao contrário do que seria o meu desejo, não poderei contribuir com o meu voto. Porém, fique V.Exa ciente, que não terá consigo, espiritualmente, mais entusiasta eleitora.



Uma admiradora incondicional






 
Fotografia da Radio Hertz
                http://blip.tv/tv_show/tomar-porto-da-lage-já-conta-com-a-farmácia-ideal-6184662


                                                                                              


10 de janeiro de 2013

Marco da Paciência



Marco da Paciência




Em Porto da Lage chamam-lhe Marco da Paciência. Contam os portalegenses que era usado quando "não tinhamos nada que fazer".



Foto
O Marco Quilométrico da Rua Silva Bueno está em processo de tombamento.


Em outras partes, marcos destes são tombados. O de Porto da Lage estará "tombado" um dia, quando, literalmente, cair para o lado, for removido para parte incerta ou mesmo destruído porque marcos há muitos, sua palerma ....


6 de janeiro de 2013

A Tigela de romã


Era uma casa feia, cinzenta, de dois pisos, com uma porta ao meio e duas janelas de cada lado*. Não me lembro como fui lá parar, sei que fui sozinha e que entrei. Da porta da rua para dentro, na porta do lado direito do patamar, era ali, tinham-me ensinado. Terei batido à porta, haveria campainha? Sei que ma abriram, sem surpresas, me mandaram sentar numa cadeira da sala de jantar e ali fiquei, de pernas a bambar, em frente à mesa, a reparar nos dois aparadores de cor castanha reluzente com vidrinhos, donde transpareciam chávenas com passarinhos e copos azulados. A mãe da Clarisse entrou, vinda da porta da esquerda, com uma grande tigela, também com passarinhos, assente nas duas mãos aconchegadas, cheia de uma matéria translúcida encarnada, atravessada por uma colher. Pôs-ma à frente, sobre a mesa. Eu olhava para aquilo e a Clarisse perguntava - não gostas de romã?

Eu não sabia o que era uma romã, nunca tinha ouvido falar em romã, era aquilo uma romã? Gotas de vidro rosadas cobertas de açúcar? Pelos vistos era de comer, peguei na colher cheia daquelas partículas e levei-a à boca.

À hora da minha morte, se comer romã, e hei-de comer se tiver pelo menos um amigo e partir no Outono como espero, a ultima colherada há-de saber-me aquela primeira da minha vida que comi em casa da professora Clarisse. Hei-de sentir as pequenas sementes a desfazerem-se entre a língua e o céu-da-boca enquanto o sumo (o molho, como mentalmente lhe chamei então), me há-de deixar toda lambuzada e cheia de prazer por ter degustado a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas aí já saberei o que hei-de fazer às sementes chupadas, e não as empurro, hesitante, de um lado para o outro dentro das bochechas. Pois a Clarisse já não irá estar lá para me dizer - se não quiseres engolir, podes deitar fora. Ai era para engolir? E toda a vida engoli as sementes das romãs. E em Outubro, pela feira, começava a comer romãs até as haver na romãzeira da horta ou alguém as oferecer lá para casa.

Agora compro-as, espanholas, às vezes durante o Outono, mas compro, sempre, sempre, no DIA DE REIS. Parece que garante dinheiro para todo o ano comer romã neste dia. São espanholas, também, estas que garantem o dinheiro.

Aquela primeira, da casa da Clarisse, asseverou-me não o dinheiro, mas o amor para toda a vida da fruta mais saborosa do mundo, a mais bela de todas.

A  Clarisse ou a mãe, uma delas, apontou para cima do aparador onde repousava por cima do naperon de renda, um prato de vidro amarelo com cinco criaturas lindas, bojudas, de coroa, coloridas na sua paleta entre o verde amarelado e o vermelhão, e eu ouvi que tinham sido duas iguais aquelas, cheias de vida antes de serem sacrificadas, que, depois de esventradas, se tinham tornado o objecto da minha gula.

E saímos daquela casa cinzenta, feia, a Clarisse e eu depois da romã comida. Era Outubro e o céu estava pequeno, ouvia-se o toque da passagem de nível fechada, quase ao lado da casa feia, depois a passagem afogueada do comboio enquanto continuávamos a nossa caminhada pelo meio da aldeia.

Os meus sentidos parece que ainda experimentam aquele primeiro dia do primeiro Outono da minha vida: a tarde quente, o embrulho dos cheiros das últimas uvas com o dos figos destilados e dos abrasadores carris de ferro; mas, mais do que tudo, o supremo deleite da primeira romã. (M.F.M)

*Já não existem estas casas, filas cinzentas, de dois pisos, onde se alojavam as famílias dos ferroviários. A REFER demoliu-as para alargar o cais, que se exibe ostensiva e desnecessariamente grande, e um parque de estacionamento. Ficavam à esquerda, na imagem