Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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24 de março de 2014

Ai senhor doutor!

José Malhoa, Cócegas, 1904, Museu Nacional das Belas Artes, Rio de Janeiro


Primas e primos; aí vai mais uma estória das gentes, que ouvi contar em Porto da Lage.

A Angélica, não era este o seu nome, mulher de quarenta e poucos anos, muito crente em Deus e nos santos, arrenegadora convicta do diabo, sentia-se adoentada. O acontecimento mensal tardava a acontecer, alguma indisposição, uns enjoos e mais outros sintomas que não sabia explicar. Crente nos serviços médicos, há que utilizá-los e, pela manhã de um dia, cuida o melhor possível da sua higiene, não vá o médico notar qualquer descuido que a deixe envergonhada, veste-se com a melhor roupa lavada, uns dinheiros e um lencinho do nariz dentro do saquinho de mão, albarda a burrinha branca revestindo-a com um cobertor de lã com riscas azuis onde se senta. Para se proteger do sol, se for necessário, um pequeno guarda-chuva muito bem cuidado. Assim preparada, aí vai ela estrada abaixo na direcção da estação (Porto da Lage era assim referenciada pelas gentes das cercanias) consultar o nosso ilustre, querido e saudoso primo Pantaleão, de boa-memória.
Prendida a burrinha à grade de tijolo que encima o muro defronte do consultório, entra na sala de espera, aguardando a sua vez; ainda não é tempo das marcações prévias. Realiza-se a consulta. A nossa visada vai relatando ao clínico o que sente e, feitas as devidas observações, vem o diagnostico:
 - Quando completar os nove meses fica boa!
 - Ai! Sr. Doutor, só se foi o Espírito Santo!
- Tenho ouvido chamar-lhe muitos nomes, observa-lhe o médico em tom de graça.(Ilídio Mota Teixeira)


José Malhoa, Vou ser mãe, 1923, CMFC, Porto

17 de março de 2014

O Cinza e o Rosa


Um leitor, e comentador habitual deste blog,  lança um repto aos amigos do seu tempo, a partir do excerto de uma crónica de Vasco Pulido Valente (em baixo). 
"Porto da Lage" está à disposição para colorirem como entenderem:

Amigos do meu tempo
Seria assim? Recordem-me que não lembro disso; se é um historiador que o diz, devo ser eu que estou a perder a memória antiga. Uns tendem a cor-de-rosar o “nosso tempo”, outros acinzentam-no. 
Henrique Carmona da Mota.


12 de março de 2014

Recordar é Matar Saudades 9

                                                    

                                                 Doce



A Dulcinda foi uma modesta rapariga mais conhecida por “Doce”. Porquê? Porque quando o pai a registou uma pessoa empregada doméstica em Lisboa tinha uma patroa que se chamava Dulcinda mas a quem o marido chamava Doce. Devo a essa Alice que já partiu há largos anos o nome familiar “Doce”. Eu, para a família e alguns conterrâneos era a Doce. Hoje só os meus netos e alguns sobrinhos me tratam docemente por avó Doce e tia Doce. Quando eu era garota ou adolescente havia pessoas que, para me arreliar, me chamavam amarga ou azeda.
Quando se chega aos oitenta anos e olhamos para trás passaram-se dias felizes da infância e da juventude, lágrimas, desilusões, sonhos, dias amargos, outros com um pouco de doce. Muitos castelos ficaram por construir e outros foram destruídos ao longo da vida. Ainda sonho com a saudosa África onde vivi dez anos (não felizes). Viagem de barco através do Atlântico, cheia de aventuras. Já lá vão 46 anos! O regresso de avião sob um mar de lágrimas.
Cá vou vivendo os últimos dias da minha “agenda”. Dores, limitações, solidão. Tenho família, Graças a Deus, mas ganharam asas e foram para longe.
Quando fiquei só escolhi ficar no local onde nasci e cresci. Não me arrependo e dou graças por ter a sorte de poder aqui viver. Tudo me é familiar. Algumas árvores que eu conhecia também foram sacrificadas. A ribeira alterou o seu leito; o açude já não tem a mesma beleza, a nossa escola desapareceu, deu lugar a outro edifício. A aldeia está muito desertificada, faltam crianças e jovens.
Dou o meu passeio no meu triciclo para idosos, acompanhada pela fiel amiga “Tuka”. Já caí duas vezes mas não foi grave. Quase que conheço os buracos todos da estrada. Quando os meus vizinhos deixarem de ver o triciclo e a cadela, rezem por mim –“a Doce não vive mais”.
Agradeço à minha prima Filomena Mota (é trineta do meu bisavô Sousa Rosa) que apertou comigo para eu escrever estórias da nossa terra e da nossa gente que já partiu. (Dulcinda Mota Teixeira)



... árvores que eu conhecia também foram sacrificadas ...
  Eu, sim, tenho que agradecer, muito, à Dulcinda a honra que me deu em me fazer a vontade, escrevendo, e a  felicidade de ter sido o veículo da sua divulgação. Obrigada prima. (MFM)


11 de março de 2014

Privilégios de Desembargador



Painel do Salão Nobre do Museu dos Biscainhos, Braga.


« Em 3 de Agosto de 1795, a Rainha D. Maria I, fez saber por Carta de Privilégio de Desembargador, que Raimundo José de Sousa Henriques, Desembargador Aposentado no lugar ordinário da Relação e Casa do Porto, lhe representou que, com o dito lugar, lhe competiam os Privilégios de Desembargador, e por os haver de gozar, lhe pedia mandar passar Carta deles.
E visto o seu requerimento e documento junto, e por lhe fazer mercê, lhe mandei passar a presente Carta de Privilégios, conforme a Ordenação, cujo teor é o seguinte:
«O Regedor da Casa da Suplicação o Governador da Casa do Porto, o Escrivão da Puridade e a pessoa que servir de Presidente do Desembargo do Paço, o Chanceler-Mor do Desembargo do Paço, os Vedores da Nossa Fazenda e Desembargadores das ditas Casas, e a pessoa que connosco despacha as petições do Estado, Presidente e Deputados da Mesa da Consciência e Ordens, Escrivão da Chancelaria das Cortes que se intitula Vedor delas, Escrivão da Fazenda, não paguem em serviços pedidos, empréstimos fintas, talhas, nem outros quaisquer encargos que paguem os moradores dos lugares onde seus bens e fazendas estiverem, assim para Nós, como para as necessidades de Guerra, de servir nos Concelhos onde são moradores, não sendo ofícios de juiz, Vereadores, Procurador do Concelho, Almotacés, Depositário do Cofre dos Órfãos porque, nestes ofícios não haveria Privilégio algum».
«Que todos estes Privilégios, e especialmente pelos Decretos de 1681 e 24 de Abril de 1741 e outros quaisquer que por mim se acharem declarados os cumpram e guardem e os façam inteiramente cumprir e guardar ao dito Raimundo José de Sousa Henriques, aos seus criados, mordomos, amos e apaniguados e lavradores, como é declarado neste Privilégio, sem lhe ser posta dúvida ou embargo algum, porque assim o hei por bem e firmeza de tudo, e mandei dar esta Carta, passada pela Minha Chancelaria, com o selo pendente dela. Dada na Cidade de Lisboa, aos 7 dias do Mês de Setembro. A Rainha, Nossa Senhora, o mandou pelo Dr. José Alberto Leitão, do Conselho de Sua Magestade António Joaquim Serrão o fez no Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1795».

Registada nos Arquivos da Câmara Municipal de Tomar a 9 de Junho de 1797. Livro dos Registos Camarários de 1784 a 1802


Execução de Robespierre - Estampa de autor desconhecido, existente na Biblioteca Nacional de França.


Enquanto em Portugal decorria a vida pachorrenta e galante de painel de azulejo, em França acabava o Terror e a cabeça do chefe ia juntar-se às milhares que a guilhotina já tinha separado dos respectivos corpos.
Enquanto o Desembargador aposentado da Relação do Porto Raimundo José de Sousa, morador na sua quinta de Porto da Lage, pede à rainha Privilégio de Desembargador, a fim de ficar isento de impostos, juros e outros encargos, ele e todos os seus apaniguados, em França decorria uma revolução já lá iam seis anos. Tinham sido instituídos direitos sociais igualitários, direito de voto, organizados sindicatos e confiscadas terras à nobreza e ao clero, ideais jacobinos que tinham sido impostos em ambiente de violência e perseguição, pelo que este período foi sugestivamente denominado de O Terror. Porém, à data da concessão do Privilégio já governa O Directório, que pretende uma República moderada que acabe com as instituições do Antigo Regime mas limite a participação política. Mas não irá durar muito, instabilidade interna e ameaças externas levarão ao 18 do Brumário (9.11.1799). Napoleão aproxima-se.
 Indiferente a estas mudanças, a vida em Portugal e em Porto da Lage  continua a correr em azul, como os azulejos. Só a rainha se apercebe que o mundo está mesmo a transformar-se, e com ele o seu doce Reino, e endoidece.(MFM)



4 de março de 2014

Brueghel e a Belida

Brueghel "o Velho",  Boda campestre,  1621 - 1623 (Galeria online do Museu do Prado, Madrid) 


O Cortejo nupcial segue para a igreja. Os homens à frente, encabeçados pelo noivo, vestido de preto com farta gola branca, de flor em punho. Atrás a noiva, também de preto, no grupo das mulheres. Ao longe já se ensaiam as danças da boda.

Passa-se a cena numa alegre e garrida aldeia da Flandres onde a prosperidade  transparece nos trajes ricos dos camponeses, nas altas casas bem edificadas e na geral boa disposição dos presentes. Tudo brilhantemente reproduzido na nova temática da pintura "nórdica" (como lhe chamavam os italianos) que se inicia nos fins do sec.XVI: a paisagem e os momentos do quotidiano.

[Estas e outras obras-primas de grandes mestres do sec.XVII, provenientes do Museu do Prado, podem ser vistas até ao final de Março no Museu de Arte Antiga.]

Não nos costumamos lembrar disto, mas, a partir de 1580, Portugal , os Países Baixos e a Flandres faziam todos parte do "Império onde o sol nunca se punha" que fora o Grande Império de Carlos V, imperador do Sacro Império Romano-Germânico, na época já herdado por seu filho Filipe II (I de Portugal filho de Isabel de Portugal, filha de D. Manuel).  
Fazendo embora parte do mesmo "império" penso que pouco teriam em comum as nossas aldeias com as industriosas das províncias neerlandesas que, não obstante a guerra incessante contra Espanha - "Guerra dos 80 anos ou Revolta Holandesa" decorrente de 1568 a 1648 - eram prósperas e dinâmicas de tal forma que, após a independência, conseguiram criar uma Holanda que se transformou numa potência mundial, ameaçadora dos interesses portugueses e herdeira daqueles em muitos casos.
Pois neste período, em 1609 mais precisamente,  a vida também corria, mais pobre e não tão colorida, digo eu, no "nosso território" ao norte da freguesia da Madalena, no "canto" entre Beselga e Assentis. Tanto quanto se pode observar nos movimentos registados em casamentos, era esta zona muito pouco habitada, ao contrário da restante onde pontificavam o Marmeleiro, Machial, Carvalhal grande e pequeno, etc. De Cem Soldos (lugar pequeníssimo)  para cá, Porto Mendo seria o único "lugar", com pouco mais de meia dúzia de vizinhos, sendo o restante território ocupado por "casais", casal do Negro, casal dos Galegos, casal dos Gaios, casal da Velida, casal de Nicolau Dias, cada um deles ocupado por uma família ou gente ligada à família, aparecendo também a menção a "casais da ribeira" de modo genérico, às vezes mencionando gente já designada anteriormente como moradora num dos outros casais, outras vezes designando pela primeira vez, outras pessoas. O Paço, ou Paço da ribeira é mencionado duas vezes entre 1597 e 1625, com dois casamentos lá ocorridos, em que os quatro noivos não têm, aparentemente, nada a ver uns com os outros, isto é, não seriam família, ao contrário do que é habitual nos "casais". Ao todo, Porto Mendo incluído, contei 44 casamentos ocorridos no período de tempo que referi atrás nesta zona da freguesia, enquanto em toda a Madalena se realizaram 232 no mesmo período. 
Porque Porto da Lage só aparece muito mais tarde em  1697, em registos desta natureza, os noivos, neste caso a noiva, mais perto que consegui arranjar, foi no já inexistente Casal da Belida. 
Talvez que os festejos deste casório entre a Maria, da Belida e o Manuel, da Golegã, não fossem tão vibrantes como os que Brueghel nos mostra, apesar de lá estar "quase toda a gente da freguesia", mas de duas coisas estou certa: a alvura da igreja da Madalena com a sua pitoresca galilé (1) e o luminoso céu de São Martinho não deixaram a desejar nenhum templo cinzento calvinista nem a fria claridade do norte. Sempre o sol e o abençoado céu azul a reconciliar-nos com o pouco que tínhamos e temos! (MFM)




« Aos oito dias do mês de Novembro foram recebidos em face da igreja pelo padre frei Aleixo frei coadjutor conforme o sagrado concilio Tridentino  constituinte desta jurisdição Manuel Vaz filho de Simão Alvares já defunto e de Catarina Vaz moradores na vila da Golegã com Maria Nunes filha de Domingos Dias e de Maria Nunes já defunta desta freguesia de Sta Maria Madalena moradores no Casal da Velida testemunhas Pero Nunes Diogo Dias o velho e o novo e Simão Fernandes Francisco Lopes e quase toda a gente desta freguesia e por ser verdade fiz este que assinei dia e mês supra era de 609 anos. Frei Manuel Fernandes (?)» (TT- assentos de casamento da Madalena, Tomar, Santarém)

(1) Sim, eu sei. A igreja actual da Madalena consta ser de 1660. Será. Mas no mesmo sitio havia outra desde quatrocentos. Se tinha galilé ? Se ninguém sabe, porque é que eu não posso achar que tinha?