Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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25 de fevereiro de 2014

A Beselga e o Santo Ofício

Terreiro do Paço no séc.XVII -Óleo sobre tela de Dirk Stoop, Londres, 1662. Museu da Cidade

Manuel Escudeiro, mestre alfaiate estabelecido na rua direita da freguesia de S. Jorge da cidade de Lisboa, era tido como homem abastado e de vida limpa. Mas não vivia satisfeito; com menos de trinta anos, solteiro e com rendimentos, sentia-se em condições de aspirar a mais do que uma vida folgada assente no trabalho. Sonhava ter importância e influência, fruir honras de gente de bem!

E foi assim que, pondo os olhos numa vida futura cheia de enaltecerias, em Setembro de 1697 entregou, no Tribunal da Inquisição de Lisboa, um requerimento dirigido aos Ilustres Senhores Inquisidores Apostólicos da Inquisição da Cidade de Lisboa, no qual declara desejar servir os ofícios no cargo de familiar, pelo que lhes roga que, achando nele os requisitos necessários sejam servidos de o querer admitir nesse cargo.



Antigo palácio dos Estaus, sede da inquisição mais tarde, depois Teatro
Nacional  D.Maria II.

Os Familiares do Santo Ofício eram agentes laicos da Inquisição. Entrar para os seus quadros conferia o mais elevado grau de estatuto social e prestígio, permitindo ascender na escala social do Antigo Regime. Ficava, também,o Familiar imbuído de diversos poderes e regalias no âmbito das diligências do tribunal do Santo Ofício.
 Possuir a carta de Familiar garantia, por si só, que o habilitando tinha limpeza de sangue, meios abastados de subsistência e, essencialmente, atestava a sua origem de cristão velho. Pouco importava a origem social desde que aquelas duas condições estivessem presentes nesta ordem: ser cristão velho e ter meios – fazenda – que lhe permitisse viver abastadamente. E nunca esta ordem era trocada. Conta Camilo Castelo Branco no seu livro Sentimentalismo e História como uma das famílias da nobreza portuguesa “Os senhores da casa de Barbacena”, tão nobres que se colocaram ao lado de D. Miguel nas lutas liberais, nunca conseguiram habilitar-se ao Santo Ofício devido ao seu “defeito” original: descenderem de Antão de Castro, feito cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo da casa Real por D. João III mas declaradamente cristão-novo.
A aceitação do candidato a Familiar era antecedida de um rigoroso processo sobre as qualidades morais, pessoais, familiares, e, sobretudo, a certeza plena de não ter ascendência próxima de herege, judeu, mourisco ou negro, isto é, absoluta limpeza de sangue.




Paisagem de Minde
No seu requerimento Manuel Escudeiro, naturalmente, identifica-se. É filho de Domingos da Rosa e de Maria Fradeza, ambos do lugar de Minde, termo de Porto de Mós, bispado de Leiria, local de onde são também naturais os avós paternos Domingos João e Maria Esteves e os maternos, Simão Escudeiro e Maria Fradeza. 
  

Roque Gameiro: casa antiga de
Minde

Na primeira análise ao processo é referido que Manuel Escudeiro “mestre alfaiate e soldado de infantaria vive limpa e abastadamente, sabe ler e escrever, é sujeito muito bom e servido na vida e costumes, muito capaz para se lhe encarregarem todos os negócios de importância e segredo”.

Porém é também notado, nem se pergunta como o descobriram (afinal eram mestres no ofício), que todos os seus ascendentes são de Minde sim senhor, excepto o avô materno que “veio para o lugar de Minde vindo do lugar de Beselga ou de outro lugarejo pegado a este que se chamou ou chamava dos vargos(?) ambos do termo de Torres Novas, este foi ferreiro e serviu de alferes de governação no dito lugar de Minde”.

Não se sabe como Manuel Escudeiro reagiu a esta notícia. Ou se teria tido acesso a ela. Será que estes processos correriam “em segredo de justiça” ou ir-se-ia dando conta das diligências ao interessado? O certo é que não é posta em causa a informação inicial dada pelo requerente sobre a naturalidade do avô materno. Se terão concluído que ele apenas estaria mal informado sobre o assunto ou se os teria tentado enganar não sabemos.

Sabemos, isso sim, que em Novembro de 1701 ( já lá iam quatro anos desde o inicio do processo! ) o Reverendo Beneficiado Julião Pereira Cabanas, notário do Santo Ofício, é enviado ao termo de Torres Novas a saber do tal Simão Escudeiro, avô do habilitante e manda de lá a seguinte carta ( a ortografia actual é minha, a pontuação continua a ser a do Reverendo):

« Seguindo a ordem de V.Senhoria fui ao lugar da Beselga pelo qual passa uma ribeira e da banda de lá da dita ribeira há umas terras louvadias (?) sitio a que chamam as vargens (?) e tudo é termo desta vila de Torres Novas, porém no dito sitio das vargens (?) não havia vestígios nem achei memória de que houvesse nele casas nenhumas e no dito lugar da Beselga não achei pessoa velha que desse notícia de Simão Escudeiro nem que conhecesse seu neto Manuel Escudeiro da cidade de Lisboa e por ser o lugar da Beselga pequeno e ser a freguesia grande quase légua e meia de distância me informei com os moradores dos lugares mais vizinhos ao dito lugar da Beselga que todos são fregueses da freguesia de Nossa Senhora da Purificação de Assentiz e achei algumas pessoas mais velhas e dignas de crédito que conheceram muito bem a Simão Escudeiro que foi ferreiro no lugar de Minde termo da Vila de Porto de Mós e sabem que foi natural do dito lugar da Beselga e que conheceram a um seu irmão inteiro morador no mesmo lugar da Beselga por nome Filipe Escudeiro oficial de serralheiro a casa do qual vinha muitas vezes o dito Simão Escudeiro e conheceram ao padre Afonso de Torres clérigo que morreu sendo beneficiário em uma igreja da Vila de Tomar também irmão inteiro dos acima nomeados e que esses tiveram mais irmãos de que descendem muitos parentes que há em toda aquela freguesia que inda hoje é o seu sobrenome de Escudeiro e alguns são ricos e houvera cinco ou seis anos que morreu um capitão por nome Manuel Escudeiro que dizem se lhe avaliou o que herdaram seus herdeiros em mais de trinta mil cruzados e há outros pobres que houvera dois anos morreram no mesmo lugar da Beselga que usaram e serviam o oficio de serralheiro e as pessoas com quem tomei informação todas disseram que elas não conheciam ao dito pretendente Manuel Escudeiro e que não sabem se tem alguma fama ou defeito mas que bem conheceram o seu avô Simão Escudeiro que casou no lugar de Minde e serviu o ofício de ferreiro e sabem que era cristão velho e limpo sem fama nem defeito algum e que na mesma forma conheceu seus parentes moradores na dita freguesia sem fama nem defeito mas antes todos limpos dos melhores da dita freguesia é tal os muitos parentes entre os moradores da dita freguesia que poucas vezes sucede se celebrar o sacramento do matrimónio que não haja dispensa entre eles e não será fácil acharem muitas testemunhas que não se declarem parentes do dito Simão Escudeiro suposto muitos sejam fora do quarto grau e as pessoas que achei mais antigas são as seguintes Simão Jorge lavrador do lugar de Assentiz que era parente fora do 4.º grau, António Lopes lavrador do lugar de Fungalvaz, Simão Fernandes lavrador do Casal da Torre não conheceu Simão Escudeiro mas que sempre ouviu dizer era irmão de Filipe Escudeiro a quem ele conheceu, Maria Lopes, Maria Jorge, viúvas, Grácia Fernandes casada segunda vez com Manuel Simões lavrador que todas passam dos oitenta anos, que conheceram ao dito Simão Escudeiro e todas declararam serem parentes; a mim me parece que é limpo o dito Simão Escudeiro pela boa fama que têm os Escudeiros da dita freguesia. V.S. mandará o que for servido.
Torres Novas, dois dias do mês de Novembro de mil setecentos e um anos.
O Notário
Juliam Pereira Cabannas »

Sorte a de Manuel Escudeiro! Afinal o avô de origem desconhecida, que lhe poderia ter derrubado todos os sonhos, nem era judeu, nem mulato nem nada! Gente limpíssima, aquela “do lugarejo “ da Beselga!
E o processo prossegue, depois disto, a toda a velocidade! Com inquirições formais a várias testemunhas em Minde e na Beselga, sediado em casa de Simão Jorge.
Enfim, a ansiada Carta é passada a 26 de Abril de 1702, após o pagamento de 6 426 réis, pois conclui-se que …..ele e os seus ascendentes são legítimos e inteiros cristãos velhos e de limpeza de sangue sem fama nem rumor de alguma infecta nação e não incorreu em alguma infâmia ou pena vil de facto ou de direito, …é solteiro e não tem filho algum … tem a capacidade e é merecedor da ocupação que pretende… e assim o julgo limpo de sangue e o habilito para a ocupação de familiar. (MFM)

Fonte: Processo de Habilitação a Familiar do Santo Ofício de Manuel Escudeiro, Arquivo da T.T: Maço 54, Doc.1154

Mercado da Ribeira-Velha, Lisboa. Museu Nacional do Azulejo.


Desabafo Final: Incomoda-me falar sobre a inquisição. Se é certo que a História não se julga com os olhos de hoje, a crueldade, toda ela, é intemporal. A crueldade de quem se julga dono da verdade e quer transformar os outros à custa do terror, da tortura e da morte, está, infelizmente, muito próxima de nós no tempo, e é nossa contemporânea também, embora hoje “deslocalizada” deste pedaço de antigo centro de decisões que é a Europa. Por enquanto. A natureza humana será (?) assim mesmo e a nossa racionalidade aprendeu muito pouco.
E dado este meu “incómodo” assumo o tom ligeiro que tomou a descrição da presunçosa aventura deste nosso quase conterrâneo. Pois ser Familiar do Santo Ofício era coisa séria, nefasta e nefanda, não era, enfim, coisa bonita de se ser. Nem na  época (Cristo com o seu Mandamento Novo já tinha vindo ao Mundo), nem, muito menos, agora. E é por isso que eu pasmo com a quantidade de gente que, a toda a hora, nos sites e revistas de genealogia e afins, exibe, orgulhosa, os seus antepassados Familiares, quase sempre escondendo a origem social ou, não o fazendo, enaltecendo a capacidade de ascensão social do avoengo! Enfim, tal como a crueldade, a vaidade é ilimitada e de todos os tempos!
É claro que também não concordo que se arrenegue parente algum. Família é família, familiar que seja, o Senhor lhe perdoará já que a mim, pobre pecadora, me custa muito. Apesar do seu “defeito” reconheço que Manuel Escudeiro e eu partilhamos um “enésimosinho”  de ADN, sou descendente (através de Augusto Pereira da Motta) de Filipe Escudeiro (1588-1646) e também de  Oriana Escudeira (falecida em 1641 em Fungalvaz), ambos irmãos do tal Simão que a inquisição averiguou. Eles e outros mais (outro irmão Ignácio casa em 1611 com Maria de Sousa do Casal da Velida, digam lá se isto não anda também tudo ligado?), filhos do casal Simão Escudeiro e Maria Jorge, moradores na Beselga no sec.XVI onde ele se dedicava a trabalhar o ferro (ferreiro, serralheiro ou mesmo escudeiro, donde lhe teria vindo provavelmente o nome), ofício que passou aos descendentes, existindo ainda há pouco tempo serralheiros em Ourém com este apelido.(MFM)