Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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2 de abril de 2014

Um Baptismo e um Casamento


Vista de Tomar  (O Castelo e o Convento de
S.Francisco) - View of Castle and Convent of Tomar”
William Innes Pocock (1783-1836)
Em 24 de Julho de 1751 realizou-se um baptismo na Igreja de S.João Baptista em Tomar, cujo assento reza assim: João Baptista, adulto, natural de França, da Província da Lorena da cidade de Belfou, Arcebispado de Brançon, filho de Pedro Martins e de Águeda Mete, hereges que professaram a lei de Calvino e deste bando o dito João Baptista se expulsou da maldita ceita e se catequisou nos ensinamentos da nossa Santa Fé e depois de bem catequisado pelo Reverendo Padre Mestre do Real Convento de Cristo e por outros reverendos sacerdotes e com licença e mandato do Ilustríssimo Reverendo Manuel Vieira Mendes, Prelado desta Prelazia, foi por mim baptizado e lhe pus os santos óleos, foi padrinho o vigário de S.João Baptista Frei Basílio Goes e tomou por madrinha e por sua invocação a Virgem Nossa Senhora.


Ao ler esta descrição plena de animosidade contra a originária “maldita ceita” do bem catequisado João Baptista, na Nossa Santa Fé, lembrei-me de uma cerimónia religiosa a que assisti, há alguns meses, precisamente na pátria adoptiva do herege Calvino. Tratou-se do casamento, católico, de um bisneto de um portalegense, assunto, portanto, com pleno cabimento neste blog.

João Calvino, França, Noyon, 1509,
Genebra, 1564

Antes de mais, direi, perdoe-me quem está ao corrente destas minudências o enfado de ter que as ler, mas acho que tem interesse para o que segue, que, apesar da Federação Suíça ser um estado laico, tal não se verifica em muitos dos seus estados federados, os chamados cantões. É o que se passa no Cantão de Vaud, onde se realizou o casamento, que tem como religião oficial a Igreja Reformada da Suíça, precisamente de doutrina e rito calvinista. Que isto de ser a religião oficial trata-se apenas de um facto histórico e honorífico e não tira nem põe, ou não se tratassem de suíços, quando se trata de efectuar despesas.




Villars-le-Terroir

Pois, na pequena localidade de Villars-le-Terroir, de aproximadamente 800 habitantes em que a maioria, perto de 60%, são católicos, a igreja protestante, apesar de ser a igreja oficial do cantão, com os seus 22% de praticantes não vê necessidade de ter edifício próprio e pede emprestado à católica o lugar de culto, nos dias e horas convenientes que até não conflituam entre si. Basicamente, sábado para uma, domingo para a outra e os outros dias conforme as necessidades de cada uma e sempre na Paz e na Ordem do Senhor, que é só Um. Quem talvez não se sinta muito confortável com o acordo serão as imagens dos santos, que, sendo católicos, andam sempre num virote dos respectivos nichos para trás da cortina vermelha pendente dos grossos varões doirados, e de detrás da cortina outra vez para os nichos floridos e odorosos, nem sempre nas posições mais elegantes dada as frequentes jornadas a que são obrigados, como quando tive ocasião de os conhecer. Vi, por exemplo, uma “Sagrada Família” do sec. XVIII, de tamanho natural, posta de través no altar-mor, por pouco que não lhes víamos as caras, em que o S. José não escondia o enfado pela posição pouco digna em que se encontravam, fruto, sem dúvida, da pressa com que foram carregados para ali. Compreende-se, mas enfim, sempre são santos e portanto apetrechados com a respectiva paciência.   

Voltando, finalmente, à cerimónia, tendo eu naquela um lugar privilegiado, dado o meu estreito parentesco com o noivo, pude admirar perfeitamente a branca e florida igreja, de traço tradicional, edifício talvez de finais do sec. XIX, com capela-mor e grande nave de rasgadas janelas neo-góticas que deixavam brilhar lá dentro o esplêndido sol de outono daquele dia, e davam especial realce aos dois grandes púlpitos que se enfrentam simetricamente de ambos os lados da igreja. Estava eu a perguntar-me para que serviriam dois púlpitos, ainda por cima tão próximos um do outro, quando se iniciou o cortejo. É claro que o acontecimento é igual em todo o lado e quem viu um viu todos, noivo, acompanhantes, etc, músicos, acompanhantes, etc, cantores, acompanhantes, etc, segue-se o auge ….traaaaaaa!!!!! – lá vem a noiva! E fica-se por aqui!
Errado! Após o sossego do pouso dos noivos no altar e da entrada em reflexão dos presentes sobre as qualidades, ou falta delas, do vestido da nubente, eis que se seguiu, agora sim, o verdadeiro clímax! Um rapazinho de alva branca (não, não é redundância, parece que há alvas de outras cores) transportando uma cruz maior do que ele, precedia um par de adultos também de alvas, um deles de estola, os quais, depois de desfilarem juntos se separaram junto do altar-mor dirigindo-se cada um para uma das escadas dos púlpitos, chegando lá acima ao mesmo tempo e pousando, os dois, também ao mesmo tempo, ambas as mãos sobre a balaustrada de mármore. Coisa bem ensaiada, pensei eu satisfeita por já ter resposta para a minha dúvida lá de trás, agora vão cantar em coro, especulei também. Outro engano, o da estola falou primeiro. Disse ao que vinha, facto sabido, a importância do acto a que íamos assistir, coisa também farta de ser do conhecimento geral e apresentou o seu par e a razão da sua presença, isso sim, coisa da ignorância de quase todos. Então não é que ficámos então a saber que o sorridente ocupante do púlpito em frente, era, nem mais nem menos que o segundo inquilino do templo, o Pastor protestante, que vinha acolitar o colega sacerdote católico na celebração do sagrado sacramento do matrimónio do B., seu grande amigo, e a pedido deste!?
Depois, também o Pastor deu testemunho da sua honra em estar presente e as formalidades seguiram segundo a liturgia católica, sempre com a participação do convidado.

Para quem não conhece o distinto noivo diga-se que este, além de acrescer meio metro à altura do seu bisavô Mota, parece que mantém em cima do corpo a mesma cabeça daquele, pois é igual por dentro e por fora. E lá dentro, a fé e a devoção à Santa Madre Igreja e ao Santo Padre não esmoreceram em quatro gerações, pese embora o pouco entusiasmo das intermédias. 
Extraordinário, portanto, o espírito ecuménico e o valor da amizade observados neste episódio! De fazer encher de orgulho uma época e uma geração, tão, e muito bem, criticada pelo hedonismo e materialismo, mas que deixa a perder de vista, Graças ao Senhor, os tempos de intolerância e fanatismo que relembrámos no inicio. (MFM)