Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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2 de março de 2015

Discurso (Remarcante)


[(Discurso a ser proferido por altura da inauguração do marco da estrada, e real, nº 15 que ligaria os distritos de Santarém e de Leiria; como vizinhos, a estrada podia ser mesmo muito curta...).
Tenho de mandar fazer um fraque.
  (Enquanto isto, toca a banda de Payalvo)



 Este discurso vai atrasado 150 anos.
Não sei se me dirija a um rei, ou a uma rainha, que não sei ao certo em que reinado estamos.
Dirijo-me pois ao palanque, o maestro manda calar a banda, a minha família tapa a cara e os ouvidos, e eu começo]

Dirijo este discurso a esta pedra e à sua majestade e com a sua licença, dirijo-o a todos vós que aqui realmente vieram, em especial aos payalvenses (escrevo com Y que é a grafia actual), aos portalagenses (forma que me dizem mais correcta) e vizinhos. Também aos habitantes desta zona que aqui vieram e aos que, não vindo, foram perturbados por todo este bulício. As minhas desculpas pelo incómodo.
Mas acima de todos, dirijo-o a Vasco JR Silva  (que sem ele, este marco podia continuar ignorado).
Ouvi dizer que também estão televisões, mas como isso ainda não foi inventado, ignoro. Inventam cada coisa!

Minhas Senhoras e meus Senhores. Estamos aqui perante um marco real!

Penso que é este o  marco a que se refere  autor, mas não juro, mora aqui

Permitam-me falar de marcos, que antes de aqui chegar fui à internet (outra coisa que ainda não foi inventada) e procurei no Igespar (também ainda não) quantos marcos estavam classificados (também invencionices!)
Soube que há mais de 100 marcos graníticos, dedicados ao vinho, ignoro-os, mas sabia-me bem molhar a boca.
Dois marcos são miliários, já vêm do tempo dos romanos, e os restantes estão em Alenquer, Azambuja e Vila Franca de Xira, prova provada de que o orçamento para estradas se esgotava em pouquíssimas léguas, que era essa a medida que esses indicavam, quando o faziam. Ou que o orçamento do organismo competente só lhe permitia classificar marcos de trazer por casa.
Curiosamente essas estradas começavam todas na capital, veja-se a auto estrada A1 (que também ainda não foi imaginada).
Por isso são mais dignos de realce estes marcos, porque, além de nada terem a ver com a capital, já são do tempo do sistema métrico; de pedra, mas métricos; tão métricos que até o dizem em maiúscula M.
Por isso são históricos?
O da minha aldeia (Porto da Lage-Estação de Payalvo), além de ter sido o inaugurado, é-o também por ter servido de assento aos meus irmãos mais velhos e outros miúdos quando nada tinham que fazer (no intervalo entre passagens de comboios, penso em voz alta), vão lá ver como está bem polido!
Chamavam-lhe o Marco da Paciência.
Que nome chamariam a este se nele se sentassem para ver passar os comboios?
E este, atrevo-me a dizer, seria histórico por isso e por santo ser.
Santo, santo ser!?
Posso retirar o “santo” por se tratar de pedra, mas nele está escrito “DE PAYALVO”, e sabem quem doou Payalvo ao mosteiro de Santa Clara? Pois, posso afirmar que foi D.Isabel, denominada Rainha Santa!
Está aqui o presidente da Junta que me não deixa mentir (nisto o presidente apresenta o documento, mas demonstra pelo seu visual que não aprova o “santo”).
Reconheço que este marco não dará rosas, mas quem nos garante que Payalvo não teria “pão alvo” no regaço?
A pedido, substituo o “santo” por estóico, que foi com estoicismo que este marco, além de passar todos estes anos esquecido à beira da estrada, sim, à beira da estrada! Imaginem o que viu e ouviu, vejam em que estado o deixaram, atentem bem nas mazelas... (físicas e morais).
Assistiu de bem longe à inauguração do marco irmão, quando só ele a isso tinha direito, só ele simbolizava bem a ligação entre o distrito de Santarém e o de Leiria. Ele, que se tivesse pés, tinha um em cada distrito; se tivesse mãos, estaria de mãos dadas com ambos!
E o marco já inaugurado há 150 anos atreve-se a ostentar “DE SANTARÉM A LEIRIA”, mostrem-me onde pára essa conjunção, essa dita estrada, que de real só tem dois marcos?
Pelo menos mostrem-me a estrada DE PAYALVO até aqui, mostrem-me esses quilómetros bem medidos!
Como pode alguém chamar-lhe estrada, como pode alguém chamar-lhe estrada real?
Real é este marco, real pode ter sido a inauguração do outro; real está a ser esta cerimónia. Etérea só a música que ouvimos... etérea a memória que ficará desta inauguração.
Se aqui estivesse meu pai, servir-se-ia agora uma “água-pé-d'honra”; descerrava-se a bandeira da freguesia de Payalvo que cobre este digno marco, o padre Nicolau benzia a pedra, tocava a banda, batiam-se palmas e ia-se à vida que se fazia tarde...    (lm)

(continua)