Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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21 de dezembro de 2018

Outra vez Natal

     Quem, melhor que a arte, diz o que sentimos? Aqui ficam palavras e obras de quem sabe, sobre o Natal.

“Adoração dos Pastores”, Gaspar Fróis Machado, 1777
Lisboa, Tipografia Régia, Tinta e papel,  Museu de Lamego

Natal                                     

Mais uma vez, cá vimos                                     
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!
Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, — do fundo
Da miséria que somos.
Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos — não uma vez, mas cada —
Teus assassinos.
À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.
Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infame.
Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.
Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.
Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
Aquecer-nos ao lume
Que do teu frio e solidão nos dês.
Como é que ainda tens a infinita paciência
De voltar, — e te esqueces
De que a nossa indigência
Recusa Tudo que lhe ofereces?

Mas, se um ano tu deixas de nascer,
Se de vez se nos cala a tua voz,
Se enfim por nós desistes de morrer,
Jesus recém-nascido!, o que será de nós?! 

José Régio, in 'Obra Completa'   




Postal de Natal, 1946

             Natal na Província

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Fernando Pessoa, in 'Poesias' 

A Fava

Espero que me calhe aquela fava                                           
Igreja da Arrentela, Seixal- Natividade, sec. XVIII
Que é costume meter no bolo-rei:
Quer dizer que o comi, que o partilhei
No Natal com quem mais o partilhava

Numa ordem das coisas cuja lei
De afectos e memória em nós se grava
Nalgum lugar da alma e que destrava
Tanta coisa sumida que, bem sei,

Pela sua presença cristaliza
Saudade e alegria em sons e brilhos,
Sabores, cores, luzes, estribilhos...
E até por quem nos falta então se irisa

Na mais pobre semente a intensa dança
De tempo adulto e tempo de criança.

Vasco Graça Moura, in 'O Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas' 


Wassily Kandinsky – Winter Landscape, 1911, Image via wikiart.org

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes
in Poemas, sonetos e baladas (São Paulo: Gaveta, 1946)

Natal Chique                          



Retirado daqui 
Percorro o dia, que esmorece   
Nas ruas cheias de rumor; 
Minha alma vã desaparece 
Na muita pressa e pouco amor. 

Hoje é Natal. Comprei um anjo, 
Dos que anunciam no jornal; 
Mas houve um etéreo desarranjo 
E o efeito em casa saiu mal. 

                                                
                                                             Valeu-me um príncipe esfarrapado 
                                                             A quem dão coroas no meio disto, 
                                                              Um moço doente, desanimado... 
                                                              Só esse pobre me pareceu Cristo. 

                                                             Vitorino Nemésio, in 'Antologia Poética' 

Um Santo Natal para todos, mesmo do chique, senão poder ser do outro! (MFM)

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