Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
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31 de dezembro de 2012

Havemos de sobreviver a 2013





Maria da Fonte
Natal de um Poeta

Em certo reino, á esquina do planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Paes,                   
Ha quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fôra não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideaes,
A falsa-fé, n'uma traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reaes!

E, embora eu seja descendente, um ramo
D'essa arvore de Heroes que, entre perigos
E guerras, se esforçaram pelo ideal:

Nada me importas, Paiz! seja meu amo
O Carlos ou o Zé da Th'reza... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal!

António Nobre, in 'Só'



O Poeta era um mentiroso, e, fado de ser português, o país interessava-lhe mais que tudo e interessa-nos sempre a nós, o pior são sempre os Carlos ou o Zé da Th'reza que nos governam, mas havemos de lhes sobreviver, assim como  Havemos de sobreviver a 2013



23 de dezembro de 2012

Coisas de que eu gosto



Machado de Castro, Presépio da Sé de Lisboa
 Nada mais encantador que um presépio. Nada mais inesperado e educativo que perscrutá-lo e encontrar-lhe a luz, a cor, e, sobretudo, os pormenores, os pormenores são a riquesa de um presépio! O anacronismo da realidade (passe o termo) plasmada, que representa a Galileia à luz da época em que o construtor do presépio viveu, é uma delicia. As situações recriadas são extraordinárias.

No presépio da casa dos meus pais, enorme, sempre acrescentado anualmente pela minha mãe com o seu fascínio  pelas populares e coloridas figuras de barro que a levava a comprar sempre mais e mais; pois, no lá de casa, no penhasco mais alto, todo alcatifado de musgo, erguia-se, imponente e inatingível, um granítico castelo medieval em cuja torre tremeluzia, orgulhosa, a bandeira verde e rubra e que era escoltado, muito adequadamente, por um guarda-republicano todo postinho por ordem, de polainas e cinturão largo! Às vezes, nalguns natais, discutia-se  a tristeza e necessidade do pobre estar sozinho, lá no morro (nós tínhamos estas influências africanas), a guardar um castelo que ninguém queria roubar, e achava-se mais útil a sua presença na gruta, perto do menino. E lá ficava ele, respeitador e perfilado, sem nunca mostrar cansaço, entre o 1.º de Dezembro e o dia de reis, um soldado da república portuguesa a adorar e, a defender, com a própria vida se preciso fosse, nunca se sabe, o rei dos reis, nascido há dois mil anos!

O  presépio representado na imagem, acrescenta à ingenuidade dos congéneres populares, mantendo a cor e o absurdo dos personagens, a mão do mestre escultor que o impregna de vida; tudo ali se mexe, fala entre si e fala connosco.
Para mim, em quem o sec.XVIII exerce uma profunda atracção, é uma visita ao maravilhoso meter-me no meio daquela multidão e sentir e viver com eles.

Em época de prendas, esta é uma que dou a mim própria. Espero que partilhem comigo, pelo menos um bocadinho, o prazer desta viagem. Admiremos o  barroco vestido florido da Virgem, os frades capuchinhos ao lado dos pescadores nazarenos de  torsos nus, o entusiasmo do rapazinho que faz a oferta a Jesus e interroguemo-nos sobre se o que o pastor disse à rapariga da criancinha, e que a fez corar, teve alguma coisa a ver com as tropelias do miúdo das cambalhotas. E tudo ao  ao som celestial.da orquestra de anjos que nos forra o céu.









E é na companhia de algo de que gosto muito, como já disse, as gentes e hábitos setecentistas, a sua arte decorativa e músical e a inocência e nostalgia dos presépios, que vos desejo BOAS FESTAS, a todos os que tiveram a gentileza de acompanhar este blog, que me deram a honra de dizer que gostavam e que sentiram a sua falta.
MFM

20 de dezembro de 2012

Feliz Natal


 Natal

Capela de S.Sebastião, Cem Soldos
Ó sino da minha aldeia,                                                        
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro de minha alma.                         

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto

Fernando Pessoa





Este Post é dedicado aos portalagenses, que são poucos e vivem longe,  pois  só se lembra dos caminhos velhos quem tem saudade da terra .

14 de setembro de 2012

As Férias, o Fim e a Fúria








Este blog nasceu faz hoje seis meses, e nasceu com um fim anunciado - o da minha vontade.
Não fora a fúria que nos invade neste fim de Verão e penso que não voltaria aqui tão cedo.

Assim, como não tenho jeito para colar cartazes, menos  para pintar paredes e, ainda menos, qualquer propensão para lançar bombas, fica aqui o meu contributo patriótico de publicitar a minha adesão ao NÃO QUERO MAIS DISTO. Para quem não me conhece, melhor, para quem me conhece, cá vai: nem gosto do cartaz nem me comovo com a mensagem, mas que querem? o rato Mickey esqueceu-se da convocatória e tudo é aceitável (e aproveitável) quando se prenunciam tempos amorais que me arrepiam.
Mas nem tudo é mau,  o doce de tomate da minha querida filha era (isso, era, acabou-se, até para o ano) ma-ra-vi-lho-so, como sempre.

9 de agosto de 2012

Para Sempre

Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Baía de Luanda, 1972
Mãe não tem limite,                                        
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade, 1902, 1987

À minha mãe que se foi embora faz hoje doze anos.

7 de agosto de 2012

O Jardim

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,
calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,
varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.
Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

António Ramos Rosa,n.1924

6 de agosto de 2012

Poema Quotidiano

É tão depressa noite neste bairro                             
Nenhum outro porém senhor administrador     
goza de tão eficiente serviço de sol
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua
O senhor não calcula todo o dia
que festa de luz proporcionou a todos
Nunca vi e já tenho os meus anos
lavar a gente as mãos no sol como hoje
Donas de casa vieram encher de sol
cântaros alguidares e mais vasos domésticos
                                                                      



                                                                      


                                                                      

                                                                       Nunca em tantos pés
                                                                       assim humildemente brilhou
                                                                       Orientou diz-se até os olhos das crianças
                                                                       para a escola e pôs reflexos novos
                                                                       nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca misturou-o no pão
Chegaram a tratá-lo por vizinho
Por este andar... Foi uma autêntica loucura
O astro-rei tornado acessível a todos
ele que ninguém habitualmente saudava
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados
Íamos vínhamos entrávamos não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós
Ficou tão triste a gente destes sítios
Nunca foi tão depressa noite neste bairro

Ruy Belo, 1933, 1978

5 de agosto de 2012

Quando o Amor



Quando o amor morrer dentro de ti,                        
Caminha para o alto onde haja espaço,
E com o silêncio outrora pressentido
Molda em duas colunas os teus braços.
Relembra a confusão dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonho de amor, teu peito ferido
Espalhou generoso aos quatro ventos.
Aos que passarem dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes de soluços.
                                                               



 E se ninguém vier, ergue o sudário
                                                                Que mil saudosas lágrimas velaram;
                                                                Desfralda na tua alma o inventário
                                                                Do templo onde a vida ora de bruços
                                                               A Deus e aos sonhos que gelaram.

                                                               Ruy Cinatti, 1915, 1986

4 de agosto de 2012

Ode à Mentira

Crueldades, prisões, perseguições, injustiças,                  
como sereis cruéis, como sereis injustas?              
Quem torturais, quem perseguis,
quem esmagais vilmente em ferros que inventais,
apenas sendo vosso gemeria as dores
que ansiosamente ao vosso medo lembram
e ao vosso coração cardíaco constrangem.
Quem de vós morre, quem de por vós a vida
lhe vai sendo sugada a cada canto
dos gestos e palavras, nas esquinas
das ruas e dos montes e dos mares
da terra que marcais, matriculais, comprais,
vendeis, hipotecais, regais a sangue,
esses e os outros, que, de olhar à escuta
e de sorriso amargurado à beira de saber-vos,
vos contemplam como coisas óbvias,
fatais a vós que não a quem matais,
esses e os outros todos... - como sereis cruéis,
como sereis injustas, como sereis tão falsas?
Ferocidade, falsidade, injúria
são tudo quanto tendes, porque ainda é nosso           
o coração que apavorado em vós soluça
a raiva ansiosa de esmagar as pedras
dessa encosta abrupta que desceis.
Ao fundo, a vida vos espera. Descereis ao fundo.
Hoje, amanhã, há séculos, daqui a séculos?
Descereis, descereis sempre, descereis.

Jorge de Sena,1919, 1978

3 de agosto de 2012

Escada sem corrimão




                                                    É uma escada em caracol
                                                    E que não tem corrimão.
                                                    Vai a caminho do Sol
                                                    Mas nunca passa do chão.

                                                    Os degraus, quanto mais altos,
                                                    Mais estragados estão,
                                                    Nem sustos nem sobressaltos
                                                    servem sequer de lição.

                                                   Quem tem medo não a sobe
                                                   Quem tem sonhos também não.
                                                   Há quem chegue a deitar fora
                                                   O lastro do coração.

                                                   Sobe-se numa corrida.
                                                   Corre-se p'rigos em vão.
                                                   Adivinhaste: é a vida
                                                   A escada sem corrimão.


                                                   David Mourão-Ferreira (1927,1996)

2 de agosto de 2012

Questão de Pontuação

Todo mundo aceita que ao homem
Cabe pontuar a própria vida:                   
Que viva em ponto de exclamação                       
(Dizem: tem alma dionisíaca);                            

Viva em ponto de interrogação
(Foi filosofia, ora é poesia);
Viva equilibrando-se entre vírgulas
E sem pontuação (na política):

O homem só não aceita do homem
Que use a só pontuação fatal:
Que use, na frase que ele vive
O  inevitável ponto final.


João Cabral de Melo Neto, 1920, 1999

1 de agosto de 2012

Realidade


Fomos longe demais, para voltar
Aos antigos canteiros onde há rosas.              
Em nós, o ouvido, quase e, quase, o olhar   
Buscam nas cores vozes misteriosas...

Mas o mistério é flor da juventude.
Não rima com poemas desumanos.
A idade — a nossa idade! — nunca ilude.
Só uma vez é que se tem vinte anos.

Quebrámos todos, todos os espelhos
E o sol que, neles, está hoje posto
Já não reflecte os lábios tão vermelhos
Que nos iluminam, sempre, o rosto.

Realidade? Há uma: apenas esta!
— Somos espectros na cidade em festa.

Pedro Homem de Mello, 1904, 1984

31 de julho de 2012

Elegia


Florescia                                                                                                                  
A pionia                                                         
De anos em anos, apenas.
Se a primavera
Era
Fria,
Mal se erguia
O caule das açucenas.
Rastejavam as verbenas...
Mas uma flor sempre havia
Que era a que mais rescendia:
Lembras-te, ao dar meio-dia,
Postas, tuas mãos morenas...?

Às quais sagro esta elegia

José Régio, 1901, 1969

30 de julho de 2012

Tempo

Tempo
Tempo — definição da angústia.                                         
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada





Tempo...
E não haver nada                                                                      
Ninguém,
Uma alma penada                                                     
Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço                                                            
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!

Miguel Torga (1907,1995)  in 'Cântico do Homem'                            



29 de julho de 2012

Marcha Almadanim

Desfile dos meninos da escola de PL no Carnaval
Nos domingos antigos do bibe e pião                        
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova

espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!                       
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.



 Quem não sabia aquilo de cor
A gente cantava assobiava aquilo de cor ...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar ... )
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!



Entretanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha parecia
até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.


Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!

Meus companheiros antigos do bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas ...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita

 despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico

como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!
  
Manuel da Fonseca, 1911, 1993

Fotografias dos meninos de Porto da Lage roubadas  do seu blog

28 de julho de 2012

Trem de Ferro

Café com pão                                                                                          
Café com pão
Café com pão
Virgem Maria
que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão                                         



Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha

                                                                           Que eu preciso
                                                                           Muita força
                                                                           Muita força
                                                                           Muita força

                                        Oô..

Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi

                                                                   Passa boiada
                                                                   Passa galho
                                                                   De ingazeira
                                                                   Debruçada
                                                                   Que vontade
                                                                   De cantar


Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficia

Ôo…

                                                                           Menina bonita
                                                                           Do vestido verde
                                                                           Me dá tua boca
                                                                           Pra matá minha sed
Ôo…

Vou mimbora voou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri

Ôo…

                                                    Vou depressa
                                                    Vou correndo
                                                     Vou na toda
                                                     Que só levo

Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente…


Manuel Bandeira, 1886, 1968


27 de julho de 2012

A Moleirinha



Pela estrada plana, toc, toc, toc,                               
Guia o jumentinho uma velhinha errante.                   
Como vão ligeiros, ambos a reboque,
Antes que anoiteça, toc, toc, toc,
A velhinha atrás, o jumentinho adiante!...

Toque, toque, a velha vai para o moinho,
Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
E contudo alegre como um passarinho,
Toque, toque, e fresca como o branco linho,
De manhã nas relvas a corar ao sol


               Vai sem cabeçada, em liberdade franca
Jerico ruço duma linda cor;
               Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
             Tange-o, toc, toc, a moleirinha branca
                Com o galho verde duma giesta em flor

                                                                                             

Livro de Leitura da 4.ª Classe
Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,
Toque, toc, toc, que recordação!
Minha avó ceguinha se me representa...
Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!... 

....
Toc, toc, é tarde, moleirinha santa!
Nascem as estrelas, vivas, em cardume...
Toc, toc, toc, e quando o galo canta,
Logo a moleirinha, toque, se levanta,
P’ra vestir os netos, p’ra acender o lume...

Toc, toc, toc, como se espaneja,
Lindo o jumentinho pela estrada chã!
Tão ingénuo e humilde, dá-me, salvo seja,
Dá-me até vontade de o levar à igreja,
Baptizar-lhe a alma, p’ra a fazer cristã!

...

Toc, toc, toc, como o burriquito avança!
Que prazer d’outrora para os olhos meus!
Minha avó contou-me quando fui criança,
Que era assim tal qual a jumentinha mansa
Que adorou nas palhas o menino Deus...

Toc, toc, toc, é noite... ouvem-se ao longe os sinos,
Moleirinha branca, branca de luar!...
Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,
Como estremunhados querubins divinos,
Os olhitos meigos para a ver passar...

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,
Entre os milhões d’astros o luar sem véu,
O burrico pensa: Quanto milho loiro!
Quem será que mói estas farinhas d’oiro
Com a mó de jaspe que anda além no Céu!


Guerra Junqueiro (1850, 1923)


26 de julho de 2012

Os Figos Pretos

Verdes figueiras soluçantes nos caminhos!
Vós sois odiadas desde os seculos avós:
Em vossos galhos nunca as aves fazem ninhos,
Os noivos fogem de se amar ao pé de vós!

- Ó verdes figueiras! ó verdes figueiras
Deixae-o fallar!
Á vossa sombrinha, nas tardes fagueiras,
Que bom que é amar!

- O mundo odeia-vos. Ninguem nos quer, vos ama:
Os paes transmittem pelo sangue esse odio aos moços.
No sitio onde medraes, ha quazi sempre lama
E debruçaes-vos sobre abysmos, sobre poços.

- Quando eu for defunta para os esqueletos,
Ponde uma ao meu lado:
Tristinha, chorando, darà figos pretos...
De luto pezado!

- Os aldeões para evitar vosso perfume
Sua respiração suspendem, ao passar...
Com vossa lenha não se accende, á noite, o lume,
Os carpinteiros não vos querem aplainar.

- Oh cheiro de figos, melhor que o do incenso
Que incensa o Senhor!
Podesse eu, quem dera! deital-o no lenço
Para o meu amor...

- As outras arvores não são vossas amigas...
Mãos espalmadas, estendidas, supplicantes,
Com essas folhas, sois como velhas mendigas
N'uma estrada, pedindo esmola aos caminhantes!

- Mendigas de estrada! mendigas de estrada!
E cheias de figos!
Os ricos là passam e não vos dao nada,
Vos daes aos mendigos...

- Ai de ti! ai de ti! ó figueiral gemente!
O goivo é mais feliz, todo amarello, lá.
Ninguem te quer: tua madeira é unicamente
Utilizada para as forcas, onde as ha...

- Que màs creaturas! que injustas sois todas
Que injustas que sois!
Serà de figueira meu leito da bodas...
E os berços, depois

- Tragicas, nuas, esqueleticas, sem pelle,
Por traz de vós, a lua é bem uma caveira!...
Ó figos pretos, sois as lagrymas d'aquelle
Que, em certo dia, se enforcou n'uma figueira!

- Tambem era negro, de negro cegava
O pranto, o rosario,
Que, em certa tardinha, desfiava, desfiava,
Alguem, no Calvario...

- E, assim, ao ver no outomno uma figueira nua,
Se os figos caem de maduros, pelo chão:
Cuido que é a ossada do Traidor, á luz da lua,
A chorar, a chorar sua alta traição!

- Ó minhas figueiras! ó minhas figueiras
Deixae-o fallar!
Oh! vinde de hi ver-nos, a arder nas fogueiras
Cantar e bailar...

António Nobre,1867,1900, in 'Só'

25 de julho de 2012

Redenção

Não choreis, ventos, árvores e mares,                         
Coro antigo de vozes rumorosas,                               
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
D'esse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...                  
E acabará por fim vosso tormento.



Antero do Quental 1842, 1891




24 de julho de 2012

Entre O Sono e O Sonho



Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim                            
Robert Joyner, 2010
É, o quem eu me suponho                           
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.

Fernando Pessoa


A meu pai, que viveu sonhando, no aniversário da sua morte.

23 de julho de 2012

A Cruz Quebrada

E eu te encontrei, num alcantil agreste,                 
Meia quebrada, ó cruz. Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua                                     
Detrás do calvo cerro. A soledade
Não te pôde valer contra a mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil!
A tua sombra estampa-se no solo,
Como a sombra de antigo monumento,
Que o tempo quase derrocou, truncada.
No pedestal musgoso, em que te ergueram
Nossos avós, eu me assentei. Ao longe,
Do presbitério rústico mandava
O sino os simples sons pelas quebradas
Da cordilheira, anunciando o instante
Da ave-maria; da oração singela,
Mas solene, mas santa, em que a voz do homem
Se mistura nos cânticos saudosos,
Que a natureza envia ao Céu no extremo
Raio de sol, pasmado fugitivo
Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste
Liberdade e progresso, e que te paga
Com a injúria e o desprezo, e que te inveja
Até, na solidão, o esquecimento!


Alexandre Herculano, 1810, 1877

22 de julho de 2012

Barca Bela

                                                         Pescador da barca bela,                              
                                                         Onde vais pescar com ela.
                                                         Que é tão bela,
                                                         Oh pescador?

                                                         Não vês que a última estrela
                                                         No céu nublado se vela?
                                                         Colhe a vela,
                                                         Oh pescador!
                                           
      
                                Deita o lanço com  
                                cautela,                
                                Que a sereia canta bela...
                                Mas cautela,
                                Oh pescador!
                                           
                                Não se enrede a rede nela,
                                Que perdido é remo e vela,
                                Só de vê-la,
                                Oh pescador.
                                                        
                                Pescador da barca bela,
                                Inda é tempo, foge dela
                                Foge dela
                                Oh pescador!


                                                         Almeida Garrett (1799, 1854), Folhas Caídas

Fotografias da Ribeira da Beselga retiradas da net.

21 de julho de 2012

O Pirilampo e o Sapo

Lustroso um astro volante
Rompera as humildes relvas:                    
Com seu vôo rutilante
Alegrava à noite as selvas.

Mas de vizinho terreno
Saiu de uma cova um sapo,
E despediu-lhe um sopapo
Que o ensopou em veneno.

Ao morrer exclama o triste:
- Que tens tu de que me acuses?
Que crime em meu seio existe?
Respondeu-lhe: – Porque luzes!

Marquesa de Alorna, 1750, 1839

20 de julho de 2012

Como passarei sem ponte?

Ribeira da Beselga (retirada da net)
Mote

Vai o rio de monte a monte,                              
Como passarei sem ponte?

Voltas

É o vau mui arriscado,
Só nele é certo o perigo;
O tempo como inimigo
Tem-me o caminho tomado.
Num monte está meu cuidado,
E eu, posto aqui noutro monte,
Como passarei sem ponte?

Tudo quanto a vista alcança
Coberto de males vejo:
D'aquém fica meu desejo
E d'além minha esperança.
Esta, contínua, me cansa
Porque está sempre defronte:
Como passarei sem ponte?

Francisco Rodrigues Lobo, 1579-1621

18 de julho de 2012

Adorai, montanhas

Adorai, montanhas,
o Deus das alturas,
também das verduras.

Adorai, desertos
e serras floridas,
o Deus dos secretos,
o Senhor das vidas.
Ribeiras crescidas,
louvai nas alturas
Deus das criaturas.

Louvai, arvoredos
de fruto prezado,
digam os penedos:
Deus seja louvado!
E louve meu gado,
nestas verduras,
o Deus das alturas.

Gil Vicente (c. 1465 - c. 1536)                                                 



17 de julho de 2012

O sol é grande, caem co'a calma as aves








O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

ó cousas, todas vãs todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:              
e tudo o mais renova, isto é sem cura!

Francisco Sá de Miranda 1481, 1558

16 de julho de 2012

Sextina



Ontem pôs-se o sol, e a noute
cobriu de sombra esta terra.
Agora é já outro dia,                                      
tudo torna, torna o sol;
só foi a minha vontade
para não tornar co tempo!
Tôdalas coisas, per tempo,
passam, como dia e noute;
üa só, minha vontade,
não, que a dor comigo a aterra;                            
nela cuido enquanto há sol,
nela em quanto não há dia.

Mal quero per um só dia
a todo outro dia e tempo,
que a mim pôs-se-me o sol
onde eu só temia a noute;
Tenho a mim sobre a terra,
debaxo minha vontade.
Dentro na minha vontade
não há momento do dia
que não seja tudo terra;
ora ponho a culpa ao tempo,
ora a torno a pôr à noute:
no milhor, pon-se-me o sol!

Primeiro não haverá sol
que eu descanse na vontade.
Pon-se-me üa escura noute
sobre a lembrança de um dia...
Inda mal porque houve tempo
e porque tudo foi terra.

Haver de ser tudo terra
quanto há debaxo de sol
me descansa, porque o tempo
me vingará da vontade;
se não que antes deste dia
há-de passar tanta noute!

Bernardim Ribeiro1482? — 1552?

13 de julho de 2012

Os Homens Gloriosos




Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam. 
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,                                               
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.

Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos...
pegajosas de lodo e sangue denso.
Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!
Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ebriamente os mapas!
Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio
triste e simples
de lágrima interminável, com sua
centelha ardente e eterna.
Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranquilo
em planta incomunicável,   
em pedra sem respiração.                                      

Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!

Reduze a pó
a memória dos homens, escutada e vivida...


Cecília Meireles, 1901,1964 , in 'Mar Absoluto'