Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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27 de março de 2015

Cada Qual seu Pão Granjeia

                       




                              ... não há ódios mas estimas,
                             tem-se amor pela vida alheia,
                            todos são primos e primas. 
                           Sem ambições, 
                           cada qual seu pão granjeia, ...
                                                (carregue para ouvir)





Jornal O Templário 25.05.1952



Agenda de João Pereira da Mota, 10.02.1957


Imagem de Memória Digital de Tomar e BNP

25 de março de 2015

Nova Companhia

As companhias de viação, responsáveis pelos transportes Estação de Paialvo-Tomar, que tantos dissabores causavam aos passageiros, pelas disputas entre si, reuniram-se em 1892, conforme a notícia abaixo. Deste modo talvez se tenham passado a evitar os distúrbios e a intervenção das autoridades naqueles casos, porque, em outros, as "diligências do sr. administrador do concelho" ter-se-ão sempre continuado a fazer sentir, como podemos ver nas "gatunices" transcritas.
A nova companhia, chamada popularmente "a empresa" tinha a sua sede, nos inícios do século XX, na Rua Direita (da Várzea Grande), pouco mais ou menos em frente ao Teatro, no local onde existiu durante muitos anos uma bomba de gasolina e agora está um restaurante. Lembro-me de ouvir os mais velhos referirem-se ainda àquele local como "a empresa", chegas "à empresa" e viras à direita, ou "vai-me comprar um carro de linhas desta cor, tem de ser marca "Coração", à loja do sr. Tomás, ao lado da empresa". 
A "empresa" fechou por falta de trabalho, em 1928, quando a estação de Tomar começou a operar. Grande ambição da cidade, a chegada do caminho de ferro trouxe uma significativa melhoria de acessos (até porque, como vimos, as estradas, quer a de Paialvo, quer a de Chão de Maçãs, mantiveram-se quase sempre em mau estado) mas teve o seu reverso no fim "da industria" de transportes de Paialvo que suportava uma economia própria e mantinha um grande número de famílias. Um jovem segeiro da companhia, cuja família de quatro filhos vivia razoavelmente com o salário do seu ofício, viu-se subitamente na miséria, da qual muito tarde se veio a recompor, devido ao fecho  daquela. Era o meu avô materno. Os momentos de ruptura, mesmo das aparentemente benéficas (e até inevitáveis), fazem sempre as suas vítimas. (MFM)

10.07.1892

21.03.1897




Estação de Caminho de Ferro de Tomar, 1930
Imagens retiradas de Memória Digital de Tomar.

24 de março de 2015

Freguesia da Madalena 1873 -1876 casos e dados










 




















As marcas acima, retiradas dos Anais do Municipio de Tomar, de Amorim Rosa, merecem-me as seguintes considerações:
- Este povo da Madalena,sendo rebelde, ou não elegia a Junta ou elegia-a mal (ou a não contento de quem a nomeava), portava-se um pouco melhor que o resto do concelho no que concerne ao respeito pelo sagrado matrimónio tendo as crianças dentro do dito. Quanto ao licenciamento dos animais temos conversado, aparte o sr. conde, o que só lhe ficava bem, o "povão" não deveria querer saber disso para nada, o que também não lhe ficava nada mal, pois não acredito que não tivesssem nem um porquinho para a matança anual. (MFM)

23 de março de 2015

António d'Oliveira e José do Telhado


Camilo, o grande Camilo Castelo Branco, que, por motivos lá da vida dele, passou algum tempo na cadeia, escreveu a propósito  dos episódios e das pessoas  que conheceu nesses dias o livro "Memórias do Cárcere". Diz ele no inicio do capítulo XXVI, o que dedica a José do Telhado - "Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países!Todas as vocações morrem de garrote, quando se manifestam e apontam a extraordinários destinos. A Calábria é um desprezado retalho do mundo; mas tem dado salteadores de renome. Toda aquela Itália, tão rica, tão fértil de pintores, escultores, maestros, cantores, bailarinas, até em produzir quadrilhas de ladrões a bafejou o bom génio!.... [em Portugal] Apenas um salteador noviço vinga destramente os primeiros ensaios numa escalada sai a campo o administrador com os cabos, o alferes com o destacamento, o jornalismo com as suas lamúrias em defesa da propriedade, e a vocação do salteador gora-se nas mãos da justiça ... faltava o telégrafo para matar à nascença as iniciativas auspiciosas. Apenas lá das povoações serranas desce à vila ou cidade a nova de um roubo, o arame palpita de horror, e a cara do ladrão é para logo litografada  na fantasia de todos os esbirros sertanejos. A civilização é a rasa da igualdade: desadora as distinções: é forçoso que os bandoleiros tenham os mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente. Ladrão de encruzilhada, que traz o peito à bala e o bacamarte apontado ao inimigo, esse há-de ser o bode expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos ao sol benéfico da civilização. Roubar industriozamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo. Os daquela escola tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação; os outros, quando escorregam, acham-se encravados nos artigos 343, 349, 87, 433, 351, e mais cento e setenta artigos do código penal."



Camilo, lá, na nuvem etérea donde nos contemplam os génios, deve estar feliz por saber do desenvolvimento “da civilização” deste nosso Portugal, no 2.º milénio. Se vir televisão, Deus permita que não, seria mau sinal, verá que já não temos razões para nos envergonhar pois já os nossos “ ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países!”---não através “dos bandoleiros, dos que dão o peito às balas” mas dos “seus confrades, mais alumiados e aquecidos ao sol benéfico da civilização …Os daquela escola [que] roubam industriosamente, tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação”, e que, ao que vemos, estão hoje também “encravados” nos artigos do código penal os quais, ao que oiço dizer, se mantêm, mais coisa menos coisa, os mesmos.

As duas imagens abaixo, de 1889 e 1898, dão notícia de dois casos daqueles que se encontravam encravados nos artigos 343, etc. do código penal,de alguma forma relacionados com a estação de Paialvo-Porto da Lage.

O primeiro, um roubo efectuado precisamente na bilheteira da estação, por um carregador da dita, homem, pelos vistos, de génio assomadiço que não terá gostado, percebe-se porquê, da pena que lhe foi imposta. No segundo caso, o título "Prisão Importante" poderia antes ser "Azar que não lembra ao careca", pois já viram o que é um desgraçado matar outro (sim, desculpem, não sei quais as razões, mas, pela mostra, o assassínio foi um azar: o primeiro de muitos), conseguir apanhar o comboio, sair onde o diabo perdeu as botas (sim, dizem que era uma estação importante, mas o pobre, à semelhança da maioria dos portugueses  destes três séculos decorridos, não sabia), depois, ir, sabe-se lá como, direito a Porto Mendo (percebam, o homem não saiu no Porto, não saiu em Coimbra, nem sequer em Espinho, onde poderia ser reconhecido, não, foi para Por-to-do-Men-do, Por-to do Men-do, quem conhece Por-to do Men-do??), e quando se julgava seguro, lá, no meio do nada, e, com a fome a apertar se abeira da alma com a cara mais bronca que encontrou, a pedir um naco de pão, não é que se lhe apresenta o n.º 50, desfardado, da policia de Santarém? Um guarda com memória, ainda por cima, e com vontade de mostrar serviço! Nunca se tinha visto azar assim, como o do Oliveira, em 19 séculos D.C. Tivesse este episódio ocorrido 30 anos antes, teria sensibilizado o nosso grande escritor e hoje estaria também integrado nas suas "memórias". Assim calhou-lhe ser só este blog a lamentá-lo. Mais um azar. Menos mal.Passe a imodéstia, sempre saiu da obscuridade.
Sem dúvida, acabou por ir parar ao degredo, lá para as Áfricas. A propósito de degredo, esta pena, em 1867, ano da abolição da pena de morte em Portugal, foi mantida, mau grado ser considerada condenável, como meio de obtenção de mão-de-obra. Em 1880, A Nova Reforma Penal  procedeu à abolição de certas penas, como a expulsão definitiva do Reino, a perda dos direitos políticos, a pena de trabalhos públicos, a pena de degredo e a prisão perpétua. No entanto, o degredo foi sempre mantido, por, supostamente, não haver cadeias de alta segurança suficientes no Continente, até 1932, ano em que se abole, por decreto,  o envio de condenados para Angola, sendo que só em 1954 a pena é riscada do Código Penal português.



31.03.1889

11.09.1898







































Quem foi degredado em 1863 e morreu em Xissa, Mucari (Malanje, Angola), foi José do Telhado (José Teixeira da Silva). Por lá foi negociante de borracha, cera e sobretudo marfim, tendo fama de homem severo mas sempre pronto a ajudar os mais necessitados. Ganhou prestigio, tendo mesmo servido de elo de ligação entre as autoridades portuguesas e os sobas locais. Quando faleceu, em 1875 com 57 anos, a população construiu um mausoléu na sua sepultura à qual, muitos anos depois, ainda fazia romagens.(MFM)




A lápide reza assim De um Homem que nasceu obscuro nas Beiras e morreu homenageado pelo povo em Malanje.







Estado da campa actualmente


Imagens retiradas de Memória Digital de Tomar e do Blog Kuanza Sul.

21 de março de 2015

Dia Mundial da Poesia

Canção do Amor-Perfeito

Paul Klee, Jardim Tunisino, 1938
Eu vi o raio de sol           
 beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
o anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
sobre o mar largo
e ouvi cantar as sereias.
Longe, num barco,
deixei meus olhos alegres,
trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
gostaria que ficasses,
mas, se fores, não te esqueço.





Cecília Meireles,1901,1964 in 'Retrato Natural'



Rene Magritte, Le Blanc-Seing, 1965


De Longe Te Hei-de Amar - Atravessando ebriamente os mapas!

De longe te hei-de amar
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.

Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.

Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?

E, no fundo do mar,

a Estrela, sem violência,                                                
Wassily Kandinsky (1866-1944) -Outono na Bavaria

cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.

Cecília Meireles, in 'Canções'                             










As Rosas

Quando à noite desfolho e trinco as rosas  
 É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
 E a exaltação de todas as esperas

Sophia de Mello Breyner Andresen

E uma forma única que conheço de transmitir a exaltação de todas as esperas, é a voz mais poética deste povo



20 de março de 2015

Chegou a Primavera


Sandro Botticelli, Alegoria da Primavera
                                 



Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus húmidos vapores,
A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste.

Varrendo os ares o subtil Nordeste,
Os torna azuis: as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste.

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo.

Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quando me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!

Manuel Maria Barbosa du Bocage, in Sonetos


19 de março de 2015

Dia do Pai


"Dia 19 de Março comemora-se em Portugal o Dia do PaiCelebra-se no dia de São José, marido de Nossa Senhora, mãe de Jesus."


Augusto Pereira da Motta, 16.08.1858 - 27.01.1915

Augusto Pereira da Motta, que foi buscar o nome ao padrinho Augusto Rodrigues, de Paialvo, nasceu no Paço da Comenda, filho de António Pereira da Motta, também do Paço e de Joaquina de Jesus Ferreira, da Beselga, freguesia de Assentis, Aos 25 anos, solteiro proprietário, reza o assento, casa-se com Maria José, quase a completar 19 anos, empregada na lida de sua casa, moradora na Quinta da Belida. Como se terão conhecido, o que os terá levado ao casamento? Ele ter-se-à encantado com os olhos claros dela, ele já usaria aquele chapéu e ela achou-lhe graça?

Já estou a ver o filme todo: [era Março, o primeiro domingo de bom tempo, a Primavera de 1883 anunciava-se, cheirava a alfazema e à terra lavrada que começava a ser preparada para a batata e o milho (espero que o Borda d'Água esteja certo) e Augusto flanava de fato domingueiro, com os amigos, fazendo tempo cá em baixo, à espera para subir a ladeira e assistir à missa. De súbito reparou numa das raparigas do grupo que se aproximava, vindo das Sobreiras. Já a conhecia, como ela saberia quem ele era, todos se conheciam na terra, mas há um dia, o dia e hora exactos, em que se repara. E a subida da ladeira e a missa já foram diferentes, a primeira mais acelerada do que o costume, a segunda com a atenção mais focada do que nos ofícios anteriores. Desta vez, já tinha a vista fixa num objecto, não andava à cata desta ou daquela. Mas tivera pouca sorte à saída da capela, perdera-a de vista na confusão da saída e só a tornara a vislumbrar já ela ia longe, confundida entre outras. O mais certo, agora, era só voltar a vê-la no domingo seguinte.Que ela morava na quinta, não cirandava por ali, não ia à fonte nem à venda. Mas já magicava um plano. Na 4.ª feira, à vinda da estação na carroça com mercadoria que lá ia levantar, havia de  passar pela quinta, até lá cogitaria um pretexto para o fazer. Chegado o dia, afinal, nem tinha sido preciso apresentar a desculpa preparada, ela estava sozinha no tanque, perto só uma serva semeava na horta.Nem pais nem irmãos à vista.A conversa fora sobre coisa nenhuma mas, quanto a ele, chegara para se fazer entender. O que ele não pode saber é que não partira a tempo de a sua carroça não ser vista, ao longe, pelo pai dela que regressava do extremo da quinta. Perguntada, Maria José respondera quem fora o visitante, sim, mas acrescentara que não dissera ao que viera.  O pai não insistira mas ficara a pensar no caso. Ou muito se enganava ou o que o figurão queria estava ali à sua frente, a ver se o aviava com respostas rápidas. Impunha-se estar atento e, para já, não espantar a caça. Que ela era boa menina e nunca lhe dera preocupações, mas sabia-se lá os estragos que a lábia do outro não fizera já na cabeça dela? Que, conversa, tinha ele, e não só para as mulheres, enrolava qualquer desprevenido que se fiasse nele, não era em vão que lhe chamavam o cigano. Mas que empregasse o palavrório nos negócios, se lhe fazia bom proveito, e lhe largasse a porta de casa. Para que raio lhe havia de dar, vir-lhe desencaminhar a rapariga! E, enfurecido com o rumo que os pensamentos estavam a levar tratou de despachar a filha e de se encontrar sozinho com a companheira, a fim de desabafar, porque não é bom manter um homem ideias negras muito tempo a trabalhar dentro da memória. Mas a mulher deu pouca importância à coisa, que eram fantasias dele, que deixasse estar a rapariga que ainda nem se apercebera que havia homens no mundo, que ela, mãe, não dera por nada, e se não dera era porque não havia. E, se fosse, o que é que tinha? Queria ele a filha para freira? não queria! Se não fosse este era outro, e o rapaz nem era dos piores. Vinha de boa gente, tinha de seu, o que é que ele queria mais? Era aldrabão? Que ela soubesse não roubava nada a ninguém, tinha talento para falar, pois então! Burro era quem se deixava levar, ora essa, que se acautelassem, ele não obrigava ninguém! Manuel estava perplexo com o pragmatismo da mulher! Então já um homem não deve avaliar o génio do genro que quer para a filha? Que tinha de seu?! Tinha o que a família da mãe lhe deixara que, esses sim, eram gente trabalhadora e honrada. Que o pai enquanto não gastara tudo o que era dele não descansara, o filho tinha a quem sair, que conhecera o António Mota, que Deus já lá tinha, sempre folgado e com a mania que era fidalgo. - Gente muito pouco amiga de vergar as costas, convence-te disso, mulher. Vê lá se é isso que queres para a tua filha. Vê lá se depois dos sacrifícios de toda a vida que tu e eu fizemos, queres que uma parte vá parar à mão de malandros. Pensa bem, porque enquanto eu viver e se fizer nesta casa o que eu mandar, gente daquela laia não põe cá os pés! A mulher achou por bem mudar de estratégia, conhecia até onde podia contrariar o marido. Quando ele tocava no sagrado trabalho e nos sacrifícios, era escusado. Homem da terra, para ele o único trabalho honrado era o da lavoura. Desconfiava de quem não trouxesse enxada ou foice na mão. Deus lhe perdoasse, que é até com os padres embirrava para já não falar dos doutorzecos, como ele dizia, filhos de lavradores como ele, que, depois de gastarem anos em Coimbra, continuavam preguiçosamente a viver da casa paterna sem lhes acrescentar nada, antes a delapidá-la. Acalmou portanto o marido, convencendo-o que aquela era uma conversa no ar, sem fundamentos. Estavam para ali a divagar e a zangarem-se, sem razão nenhuma.
Mas havia razão, como Manuel Sousa Rosa intuíra, Augusto não desistiu e o namoro pegou. Perante as dificuldades levantadas, que a mãe dela, quando se convenceu que as desconfianças do marido tinham fundamento, cerrou de tal modo fileiras que ele nem vê-la quanto mais falar-lhe, Augusto não hesitou e resolveu ir entender-se com o futuro sogro. Foi encontra-lo à beira do ribeiro, a cortar canas para estacar o feijão e veio de lá, liminarmente, corrido. Interrompera-o ainda nem a meio chegara do seu discurso preparadissimo. Sim senhor, acreditava que as intenções dele eram boas, melhor fora que não. A enxada que ele estava a ver, ali, nas mãos dele, já o teriam rachado se suspeitasse outra coisa, mas a filha não estava para casar, era muito nova. E, quando chegasse a ocasião, ele, seu pai, lhe arranjaria marido conveniente. O que era marido conveniente, pois ele atrevia-se a contestá -lo? Mostrava bem o desavergonhado que era. Pois ia dizer-lhe quem não era nem seria nunca conveniente! – Estava mesmo agora a pô-lo daqui para fora, saia já da minha frente!
E Augusto saíra, mais zangado do que triste. Tinha a certeza de conseguir a Maria, era uma questão de tempo. Não costumava ter dúvidas, quando se lhe metia uma coisa na cabeça. Começavam era a aborrecê-lo os trabalhos para o conseguir. E, embora tivesse previsto que a conversa com o pai dela não viesse a ser suave, porque estas matérias nunca eram fáceis e porque no seu caso, não percebia porquê, o sogro não gostava dele, nunca imaginara que as coisas correriam assim. Diabos levassem o velho, com que raiva o espantara dali para fora! Mas à medida que se ia afastando do local onde se dera o encontro, ia-lhe passando a zanga e começava a achar graça à exaltação do homem. Como se agigantara aquela estatura baixa, embora entroncada, e como os olhos esverdeados tinham faiscado quando lhe perguntara qual seria o marido conveniente para a filha? Até lhe dava vontade de rir. Bom, já lhe estava a voltar a boa disposição. Não conseguia ficar irritado muito tempo. Ia dali para casa falar com a mãe, ela havia de se lembrar de algum parente lá de Assentis que se desse bem com a família da sua Maria e que interferisse a seu favor. Tudo havia de correr bem. Mais logo trataria de lhe mandar recado para se encontrarem, já há dois dias que a não via, estava a ficar com saudades do sorriso dela...]
 ...Bom, por mim o filme acabou, não vejo mais, adivinho que se segue a pepineira habitual, contrariedades, choradeiras, ameaças, o costume, até ao apogeu final. Os noivos levaram a sua avante, os factos comprovam-no. A 10 de Outubro do mesmo ano casaram-se na Igreja de Santa Maria Madalena. Foram testemunhas José Lopes Larangeira, "feitor do senhor marquês de Thomar" e um tal Dom Jorge Arcos, negociante, natural do México, representado por João de Sousa Rosa, tio da nubente e "outras muitas pessoas que presentes estavam". A cerimónia deve ter sido "importante", como se dizia então, ou porque o pai da noiva não quis ficar mal visto e se encheu de brios ou porque Augusto Mota, afinal, não estaria assim tão mal de finanças.
Os filhos sucederam-se, o primeiro, Manuel, que ainda nasceu no Paço, local em que os pais ficaram a morar, Ana, que nasceu na Quinta da Belida, em casa dos avós, seguindo-se os outros já em Porto da Lage, onde Augusto construiu uma casa para a família viver, pois a mulher não teria aguentado continuar a habitar na casa do Paço devido ao cheiro do negócio de curtumes a que o marido se dedicava: Soledade (cujos netos estão, a maioria, na diáspora)que veio a casar com o primo António Sousa Rosa, João, Maria, Maria da Conceição, António, Henrique e mais dois, falecidos ainda crianças.
Todos os filhos ficaram a viver em Porto da Lage, alguns casando com primos direitos maternos, contribuindo não só para o povoamento da terra mas também para o seu desenvolvimento económico e social. A agricultura, o comércio, a industria, conheceram um grande incremento em Porto da Lage graças aos filhos de Augusto Pereira da Motta. Será, por isso, justo e oportuno lembrá-lo neste "dia do pai" (MFM)


Imagem cedida por H.C.M

P.S-Augusto Pereira da Motta tinha três irmãos que continuaram a viver no Paço: Ana (n.1857) casada com Agostinho Ferreira (pais de Maria, Henrique, Augusto, Manuel, Joaquim, António e Agostinho - os poetas), Henrique (n.1861) terá casado tarde e não terá tido filhos e Manuel (n.1864) casado com Ana Rosa (pais de Maria, João, Georgina e Augusto). Ao contrário de Porto da Lage, em que já não moram descendentes de Augusto, sei que no Paço ainda vivem descendentes dos seus irmãos. Para eles as saudações desta prima.(MFM)


18 de março de 2015

Era uma vez



Era uma vez                          
 um rei e um bispo
acabou-se o conto
não sei mais do que isto.

Era uma vez
um rei e uma rainha
acabou-se a história
que era pequenina

                            
             

             Era uma vez
             um gato maltês                              construiu um prédio
             não sei o que fez.

             Era uma vez
             um gato maltês
             tocava piano
             falava francês.                             
             Era uma vez
             uma vaca Vitória
             morreu a vaquinha
             e acabou-se a história.








Ilustrações de Maria Keil para livros infantis.

(Fim, por agora, das poesias populares co(a)ntadas pela da tia Alice)

17 de março de 2015

Bichinha gata


Raul Lino, Ilustração do livro  "Animais nossos amigos" de Afonso Lopes Vieira


Bichinha gata         que 
comeste tu?     Sopinhas de mel.
Guardaste-me delas?   
Guardei, guardei!
Onde as puseste?
Atrás da arca.
Com que as tapaste?
Com o rabo da gata!
Sape gato
lambareiro,
tira a mão
do açucareiro.















(continuação das poesias populares co(a)ntadas pela tia Alice)

16 de março de 2015

Cantiga da preguiçosa




                                                                                       


    Além de pecado, a preguiça é contagiosa. Não me apeteceu procurar
    mais do que isto, para ilustrar a dita. E mais, nem sei de onde tirei
    este preguiçoso! Mas é engraçado, não é?!
    (Ah, outra razão a meu favor - podia ter posto aqui aquela doutrina
    prestigiante do nosso governo sobre a preguiça dos portugueses e
   desenvolvê-la e não o fiz).
   
    


 Na segunda me deito,          
Na terça me levanto,            
Na quarta é dia santo,
Na quinta vou à feira,
Sábado vou-me confessar,
No domingo comungar.
Diga-me lá, ó comadre,
quando hei-de trabalhar?












(continuação das poesias populares co(a)ntadas pela tia Alice)


15 de março de 2015

Senhora Vizinha





Capa da Revista Serões, Novembro de 1906.
  Senhora vizinha           o seu gato deu
uma sapatada
na cara do meu

Senhora vizinha
ralhe com o seu gato
que a minha gatinha
anda a namorá-lo

Senhora vizinha
ralhe com o seu frango
que vem cá pra casa
dançar o fandango.






(continuação das poesias populares co(a)ntadas pela tia Alice)

14 de março de 2015

Dia de Aniversário

Frederick Daniel Hardy (1827-1911)- Baby's Birthday (1867)

-Sobre Porto da Lage? Mas o que é que há a dizer sobre Porto da Lage? -Espantava-se um jovem quando transmiti a minha ideia peregrina sobre o blog. Hoje, três anos passados sobre o primeiro post, sou eu quem se espanta por ainda aqui andar. É certo que nem sempre o que aqui se publica é sobre Porto da Lage, que, às vezes, não resisto e lá me desliza o pé para a chinela daquilo que me rodeia. Uma inevitabilidade de estarmos vivos e de termos esta tendência para pensarmos e mostrar a nossa opinião. Mas enfim, faço por me conter e a maioria dos posts são sobre o tema e se não são, paciência, afinal quem manda sou eu. Outro motivo para a "duração" do blog são os longos períodos de intervalo; afinal, em três anos só foram publicados 290 posts (estatística do blog diz, e eu acredito), o que, feitas as contas para mostrar serviço, até nem seria assim tão mau, equivalendo, sensivelmente, à saída de um post de quatro em quatro dias (estatística minha que vale muito pouco pois este é um dos casos em que a média não se aplica, por não representar quase nada). As "paragens" foram, de facto, longas e só não se tornaram definitivas graças a quem me lê. Não fosse o interesse manifestado por quem faz o favor de acompanhar este blog e ele já teria chegado ao seu destino.
Dei inicio a este blog porque tinha recolhido um pequeno acervo sobre as origens de Porto da Lage e sobre a estação de Paialvo e achava que devia partilhá-lo.
Porto da Lage é um dos casos raros do nosso velho Portugal, uma povoação da qual, escarafunchando bem, quase se pode saber em que dia nasceu. É um produto da revolução industrial, do tardio desenvolvimento dos transportes, do Fontismo, depois, do condicionamento industrial do Estado Novo. Num país como o nosso, onde as preocupações com as origens mais recentes ascendem aos Godos e as mais antigas aos dinossauros (não, não estou a confundir as coisas, na história de todos os dias, já não se estabelece diferença entre gente e "não gente"), questões destas são irrelevantes. Ao contrário dos países novos da América e da Austrália, por exemplo. Basta procurar na net para encontrarmos inúmeros blogs com a história de cidadesinhas brasileiras, nascidas no sec.XIX, em que, para eles uma velha fotografia ou um ferrolho de porta é uma peça histórica de valor incalculável.
Este meu interesse "académico" por Porto da Lage, que se esgotaria em pouco tempo porque eu pouco mais teria a dizer, foi, felizmente, acompanhado pelas emoções e pela memória de quem lia o blog. Embora este blog não seja, não quero que seja, "um roteiro da saudade" (será "de memórias" senão puder ser outra coisa - o facto de não viver em Porto da Lage dificulta trazer para aqui coisas do presente) pois recuso-me a meter Porto da Lage algures, noutra dimensão, e pôr este blog a fazer  de máquina do tempo para lá ir em visita. Porto da Lage existe no espaço e teve, tem e terá uma vida, como todos nós, que se desenvolve no tempo. Não existe no tempo de quem lá viveu esse tempo. Ou existirá, mas eu não partilho essa vivência. Por isso digo que este blog não é "um roteiro da saudade", não porque tenha qualquer hostilidade contra a saudade ou contra quem tem saudades. Exemplo vivo desta forma de ver as coisas é, já o disse aqui, Dulcinda Mota Teixeira, com uma memória prodigiosa sobre Porto da Lage e uma profunda preocupação com Porto da Lage e há mais como ela, afinal de contas Porto da Lage é habitada, não é propriamente Pompeia.
Expressa a origem do blog e a sua intenção, que ainda não tinha aqui referido, resta-me agradecer a todos os que contribuíram para que ele se mantenha. A todos os que enviaram comentários, sugestões e felicitações, quer directamente para o blog quer de outras formas, muito, muito obrigada, espero não os vir a desiludir. Aos que colaboraram, também agradeço, reconhecida, o esforço e a generosidade. Não posso, ainda, deixar de mencionar três pessoas especiais: os irmãos Dulcinda e Ilídio Mota Teixeira que, com as suas crónicas, não deixaram morrer este blog em determinado momento e H.C.M (como nunca sei como hei-de escrever, primo, desta vez vai com siglas) que, com a sua simpatia, várias vezes me incentivou a continuar. Bem hajam todos.(MFM)




12 de março de 2015

Oh que lindo rapazinho


José Malhoa, A vizinha



Oh que lindo rapazinho                             
toda a noite aqui andou
eu queria falar com ele
minha mãe não me deixou

Minha mãe não me deixou                                    
ó que sisma de mulher
eu hei-de falar com ele
quantas vezes eu quiser

Quantas vezes eu quiser
quantas mais me apetecer
começo de madrugada
e acabo ao escurecer

Toda a noite aqui andou
toda a noite a passear
ó que lindo rapazinho
para comigo casar.

 (continuação das poesias populares co(a)ntadas pela da tia Alice)

10 de março de 2015

Lisboa Luminosa


Eu gosto de Lisboa. Mais bem dito, porque é a verdade - eu adoro Lisboa. Há, debaixo do sol, luz tão linda como a dela  (tive ocasião de ver quase igual nas antípodas) mas não tão terna, tão aconchegante. É uma luz que não resplandece nem exalta como o ouro, por isso fria e distante, antes ilumina, acariciando tudo em que toca, desde a planície macia do Tejo e a das pedras da calçada até às almas dos transeuntes que têm a felicidade de serem trespassados por ela. Um dia, se me der para aí, hei-de falar deste amor de quarenta anos, que, como em todos os amores, já se deixou de encantar só com a beleza. Por agora, vem este meu arrobo apaixonado a propósito desta imagem que encontrei, do final do sec.XIX, de O António Maria, e dos nervos que já começam a atacar alguns lisboetas por causa de excesso de turistas que "assaltam" todos os dias a cidade, e a transformação que, por via deles, a está a transformar numa diversão pegada.
Propunha em 1891 Rafael Bordalo Pinheiro que, em vez de "se vender Moçambique que talvez seja uma coisa triste", [para prover à eterna divida] se alugasse Lisboa à batota universal, que "será com certeza uma coisa alegre e nos permitirá prolongar indefinidamente este nosso dulce far niente" [os chamados países do norte não diriam melhor sobre nós, nos dias de hoje].
E descreve as alterações necessárias, vale a pena ler, que, comparadas com o que estamos hoje a ver em Lisboa, fazem pôr os cabelos em pé, pela premonição, àqueles que acham que a "identidade" se está a perder e que a bela capital se está a transformar num parque de diversões. Eu, por mim,  gosto de Lisboa incondicionalmente . (MFM)


O António Maria, n.º 309. 18.06.1891





8 de março de 2015

Grande Velocidade!

Grande Velocidade! Ironizava o jornal A Verdade com a demora da chegada das encomendas à estação de Paialvo causando grandes prejuízos " a todos os ramos da industria" e muito mais, pois até o comerciante de louças das Caldas  ficou com os barros e faianças sem clientes, na Feira de Santa Iria, por não terem chegado a tempo.
Mas se a lentidão era causadora de grandes queixas, a ponto de a fazerem rivalizar com (carros) alentejanos (já então os nossos compatriotas compadres  eram vitimas destas comparações? vem de longe a injustiça e o vitupério!), as ditas queixas não se ficavam por aí. A estação, "uma das mais importantes", estava num estado "vergonhoso", com cais descoberto e pequeno para tanto tráfego. Sem dúvida, "não é só com comboios de luxo que se acredita uma companhia", que o digam os utilizadores da Linha de Sintra aos dos Alfa, 150 anos depois.



Jornal A Verdade 7.11.1886



Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, 1887 retirado daqui

Jornal A Verdade 21.10.1888

Feira semanal de Tomar, 1872-1896 retirado de Memória Digital de Tomar (seria aqui a Feira Anual? Quem sabe?)








7 de março de 2015

Discurso (Remarcante)

(continuação)

-Não assino!
Foi a única frase que o marco pronunciou quando lhe levei o papel selado; fiz-lhe um discurso ao coração (e vós percebeis quão persuasivo eu posso ser), mas ele tem um coração de pedra e não se (co)moveu um milímetro sequer.

Vale a pena tentar demover/comover uma pedra? (a falar nisso, fizeram bem em a remover e a voltar a colocar aqui).

-Não assino!

Voltei à capital para ver se conseguia inaugurar sem a sua assinatura; voltei ao mesmo sítio.
Desta vez, uma senhora bem mais simpática leu o alvará e depois de fazer alguns estranhos esgares, pediu-me para ir falar com o chefe; daí a pouco, era uma data de gente de volta dela, do chefe e do documento; a risada era geral. Não percebo que piada podia ter um alvará, mas que se riam, riam.
Voltou a senhora e perguntou-me quando tinha comprado o documento e se tinha sido na Feira da Ladra.
-Ó minha senhora, esse documento anda na minha algibeira há mais de cem anos, foi assinado por Sua Alteza Real, ou por alguém em seu nome, aliás pode verificar que tem aí o meu nome!
- Pois, o sr é o tal que já faleceu há umas dezenas de anos... Lamento, mas a repartição que trata do seu caso será talvez no Miguel Bombarda.
-E esse Largo, presumo que seja Largo, fica perto?
- Fica para os lados do Campo de Santana.
E lá fui eu à procura da repartição no edifício, não era um largo, Miguel Bombarda que encontrei facilmente. Não parecia mesmo nada uma repartição das Obras Públicas, mas lá procurei um guichet.
-Este seu atestado já não é válido, tem de pedir um novo ao seu psiquiatra
-Desculpe minha senhora, deve haver um lamentável equívoco, eu não tenho nem careço de psiquiatra; quem assinou esse “atestado” foi Sua Alteza Real, ou alguém em seu nome. Só aqui venho para o renovar.
-Queira aguardar que já tratam de si, pode sentar-se nessa cadeira.
Lá me sentei, mas algo me pareceu deslocado; nisto apareceram quatro enfermeiros (vim a sabê-lo depois) que me enfiaram dentro duma camisa de forças (vim a sabê-lo também). Enfiaram-me dentro duma cela almofadada (Pois, consideravam-me doido, doido só por pedir a renovação dum alvará?)
Felizmente que o psiquiatra me considerou, não “não louco”, mas “não perigoso” e me deixou sair da cela, mas não do Hospital Psiquiátrico (era aonde eu próprio me tinha conduzido). Chamavam-me o D. Quixote de lo marco, cavalheiro da triste figura.
Eu nem me importava, a minha missão tinha acabado, o marco continuava por inaugurar...
Com o tempo permitiam-me umas saídas.
Entretanto, numa madrugada de nevoeiro, ouviu-se:
-Aqui posto de comando do movimento das forças armadas...
Não percebi bem o que sucedeu, mas percebi que já não era necessária a tal declaração, que se podia fazer a inauguração. Fui radiante à estação de Sta Apolónia comprar o bilhete, enquanto estava na bicha (fila para quem preferir) ouvi dizer que andavam a prender os ministros do antigo regime; ora penso ser o único ministro do antigo regime; que este que acabou de cair, velho, de podre nunca o podia ser.
Quando o bilheteiro me perguntou para onde queria o bilhete, respondi:
-Para o Brasil.
-Vexa é o Pantaleão? Que eu saiba só esse conseguiu ir ao Brasil de comboio. Mas se quer mesmo um bilhete para lá, paga mais e vai de barco (que os outros foram de avião!).
Eu que não tinha pressa, aceitei, fui num cargueiro.
Eu sei que se fosse banqueiro, ou mesmo político do regime que tinha caído, voltaria rapidamente com os bolsos cheios, mas como só era um ex-ministro dum antigo regime, continuei por lá a vegetar. Valeu-me o Real Gabinete Português de Leitura, pois foi de leitura que me alimentei todos estes anos; também lia os jornais que vinham da Pátria.
Foi por eles que soube da pseudo descoberta do marco; pseudo que só eu já lá tinha ido duas vezes.
Consegui que outros leitores reunissem o necessário para regressar à pátria (de avião - acreditem, voei); em Sta Apolónia o mesmíssimo bilheteiro perguntou-me se queria outro bilhete para o Brasil, que não, que o queria para a estação mais próxima de Vila Nova de Ourém (não podia adivinhar que estava tudo na mesma). Saí no apeadeiro de Seiça, chamei o meu valoroso cocheiro que se tinha dedicado à agricultura e ala que se faz tarde e aqui estou!

Nisto a multidão desata num tal aplauso, nuns VIVAS a D.Quixote de lo marco, cavalheiro da triste figura, que tive de meter a viola no saco e ceder-lhe a honra da inauguração.
Tenho de reconhecer que o tipo me conseguiu bater aos pontos, que conseguiu contar melhor a estória do que se tivesse sido eu a contar; até nos podia ter convencido de ser verídica, que a tinha mesmo vivido; mas se eu tentasse levantar a lebre, só levava com o rótulo da inveja.
A cerimónia acabou com o Hino de Payalvo e Nacional.
Há marcos que merecem.   
RIP

 (lm)




As caras expressivas dos membros da Filarmónica Paialvense no final da inauguração, e do discurso.

6 de março de 2015

Discurso (Remarcante)


(continuação, talvez seja bom reler o penúltimo episódio- nota do blog) 

.....Só que já não ia a tempo (continuou ele como se nenhum tempo se tivesse passado), tinha caducado o alvará que me permitia ser inaugurador; como todos sabem, só podia valer, no máximo 100 anos, é como os casamentos.

A multidão suspirou uns imensos OHHHH e AHHH... aldrabão, mas não se percebeu o final. E ele continuou:
Ainda vim até ao marco tentar que me deixasse inaugurá-lo...

-Se estou há mais de cem anos para ser inaugurado, exijo uma banda e um Presidente, pelo menos, e claro, muito povo! DAQUI NÃO SAIO! 

Ainda vim até ao marco tentar que me deixasse inaugurá-lo...     - DAQUI NÃO SAIO!
Fui pois até à capital tentar resolver o assunto nos ministérios.
Antes passei por casa, fui corrido por alguém que podia ser meu neto; que não me conhecia de lado nenhum, e que se eu era quem dizia ser, ainda me corria com mais gana, que a avó não se cansava de se queixar do marido que a tinha deixado sem sequer um “vou ali comprar cigarros”.
Dirigi-me então ao Ministério das Obras Públicas, um porteiro interpolou-me:
-Que deseja?
-Falar com o sr ministro, respondi.
-Tem audiência marcada?
-Mas é só para revalidar um alvará.
-Revalidações de alvarás não são aqui, talvez na Secretaria-Geral, isso fica na rua...
-Muito obrigado.
Ainda tentei demorar na esperança de me cruzar com o ministro... educadamente correu comigo.
Cá fora um guarda autuava o meu cocheiro por estacionamento indevido, e por o cavalo não usar fraldas; um cavalo que já vinha da monarquia, e queriam pôr-lhe fraldas? Não me contive e dei umas bengaladas no polícia. Fui preso. Pelo menos levaram-me à esquadra.
-Identificação?
-Fulano de tal, Ex-ministro das Obras Públicas do governo de Sua Majestade.
-AH-Ah-Ah, carregou numas teclas com letras e apontou-me para uma coisa que apresentava uma lista de ministros de Sua Majestade.
-O sr. é algum destes? Qual?
Apontei para o meu nome e ele rebolou a rir. Um polícia a rir-se daquela maneira desrespeitosa...
-Está a ver estes dois números debaixo do “seu” nome? Pois o primeiro indica-nos o seu nascimento, e o segundo, a data do seu falecimento. O sr, se é mesmo o sr. que diz ser, já faleceu.
-Pode lá ser, reconheço que andei pela província alguns anos, mas isso não é razão para ter falecido, para me darem por morto! E, fazendo as contas, até era bem vivo quando “me” faleceram. Presumo que a minha família tenha usado a faculdade legal de me declarar morto ao fim de 7 anos, na verdade esperaram bem mais.
-Olhe, quer que lhe seja honesto? Desampare-me a loja antes que o mande internar?
-Internar? Aonde? Eu só quero mesmo que me carimbem o alvará.
-Carimbo-lhe mas é a cara, ponha-se na rua.
E lá tive de sair, vejam como tratam um ex-ministro de Sua Majestade (felizmente não paguei a multa, agora usam uma moeda que desconheço; tenho de ir ao câmbio, mas primeiro tenho de ver se me pagam alguns contos de reis por conta).
Dirigi-me à tal rua supracitada em que ficaria a secretaria-geral, estava fechada, mas abriria daí a pouco; aproveitei para apreciar o trânsito, na verdade já quase se não viam carros de tracção animal. Pior, já nem cocheiros existiam; eram os próprios utentes que conduziam as carruagens; coisa mal pensada, as ruas estavam pejadas de carruagens paradas sem condutor. Se tivessem cocheiros, estes poderiam levá-las de regresso a suas casas enquanto os proprietários estivessem nos seus afazeres. Há deles que despendem mais de 10 horas diárias por Lisboa, vejam a quantas carruagens paradas isso corresponde; felizmente que já não têm cavalos; estariam a trabalhar?
Lá entrei, uma data de letreiros por cima de cada guichet, procurei, procurei mas nenhum vi que me parecesse corresponder às minhas necessidades, por falar nisso... não vou aqui falar nisso.
Escolhi um, quase ao acaso, na verdade escolhi-o por estar quase livre.
Esperei, esperei e por fim, lá apresentei o meu caso; a senhora que me atendeu, perguntou-me se já tinha assinado a declaração,  que sem ela nenhum funcionário podia ser atendido. Bem tentei explicar-lhe que era só para poder inaugurar o marco.
Que teria de assinar uma declaração, tanto eu como o marco!   (lm)

(continua)