4 de março de 2013

Hermenegildo

                                                                   
Numa noite de Verão do final dos anos quarenta do século passado,Hermenegildo Narciso saía de casa da irmã Luciana. Céu de trevas, nem um pirilampo no ar sem brisa. Mas dali até sua casa, no Paço, onde o esperavam já ceados a mulher e os filhos, com certeza não teriam esperado por ele como recomendara, era um salto. Luciana quisera acompanhá-lo com a lanterna, insistira até, pelo menos até à ponte, deixa lá! Mas ele não permitira, era o que faltava, conhecia de cor aquela meia dúzia de passos entre a casa e a ribeira, não aprendera ele ali a andar, brincara e se fizera homem? Até troçara - olha lá se a cheia me leva! E dera uma gargalhada a lembrar-se do fio de água que, nos últimos dias, mal dava para as crianças chapinharem. A irmã ia jurar que ainda o ouvia rir quando o baque surdo na escuridão prenunciou o silêncio seguinte. Silêncio logo cortado, ao ínicio pelo seu chamar ansioso, depois pelos gritos aflitos. Mas não houve resposta. Hermenegildo, por uma vez, a única, não acertara na ponte de olhos fechados. Falhara por um pé, caíra e batera com a cabeça numa das pedras onde, pelas tardes, as mulheres torciam a roupa enxaguada nas águas transparentes da ribeira. Morreu em frente à casa onde nascera.


Nota: Contaram-me a história como "um acidente"com nomes, local, noite escura, data aproximada. Não conheço, nem me lembro de ter conhecido nenhum dos personagens (verídicos) sobreviventes, não sei antecedentes nem de factos posteriores. Mas tocou-me esta tragédia, mansa, silenciosa e anónima, que não derivou de pavorosas borrascas humanas nem de invencíveis calamidades naturais e que, no entanto, resulta tão terrivelmente "trágica". Que deuses foram impotentes para impedir este sacríficio, que destino nefasto fora traçado à hora que a mãe deu à luz o pequeno Hermenegildo, à beira da ribeira da Beselga? (MFM)

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