2 de maio de 2013

Recordações da Nossa Aldeia

                                                        (continuação)
As Mudanças e o Progresso

A chegada do comboio atraiu comércio e movimento. Veio a Companhia União Fabril que se manteve até aos anos oitenta do século vinte; com a criação duma fábrica de álcool vieram guarda-fiscais; vieram famílias para o caminho de ferro.
Desde os primeiros anos dos comboios a Companhia União Fabril aqui instalou um armazém para vender os produtos que eram necessários aos agricultores.
 A fábrica de papel do Prado também aqui tinha armazém.


Oh saudosa ribeira das noites calmas e de luar de Verão quando as queridas rãs resolviam dar alegria à população. Em tempos recuados havia um morador à beira da ribeira que se sentia incomodado com o barulho dos animais. Quando a orquestra aquática iniciava os primeiros acordes o tal senhor agradecia com um ataque de pedras. Isto talvez em 1930 e tal.

A escola primária foi construída entre 1925 e 1928. Era uma sala única e a professora veio de Lisboa. Passados poucos anos veio para esta área uma outra senhora de Lisboa também para leccionar. Na época veio a separação dos meninos das meninas, e por volta de 1935 a escola primária já tinha duas modestas salas.Quem construiu as paredes das salas de aula não contou com as inundações da ribeira da Beselga e do ribeiro. Transbordavam, a água atravessava as estradas e como o espaço para o recreio estava mais fundo que a estrada não havia recreio nem aulas para a população escolar. Talvez em 1940 a água era tanta que entrou dentro das salas. Lembro-me que passei na estrada a salvo numa carroça, e vi pelas janelas cadeiritas das alunas andarem a boiar quase ao nível das carteiras.
Quando havia cheias a garotada ia para cima da ponte mandar barquinhos de papel feitos com folhas de cadernos.
Este edifício da escola resistiu até aos anos 70. Em 1983 foram inauguradas as novas instalações.

Também em 1933 foi criado um local de lazer e encontro de famílias “O Grémio”. Havia bailes só por convites. Realizavam-se récitas e ainda chegaram a passar filmes.



Edificio em ruinas onde funcionou o Grémio

No mesmo ano de 1933 chegou um senhor vindo de Moçambique com algum dinheiro e abriu uma farmácia. Era o sr. Manuel Oliveira, a farmácia era a “Africana”. Aqui se reuniam algumas personagens em amenas cavaqueiras de intelectuais. Jogavam às damas, recebiam os jornais que vinham de Lisboa. Como não havia electricidade não se ouvia rádio nem futebol.


Quando o sr. Oliveira abriu a farmácia trouxe para atender o público um sr. Monteiro, ainda me lembro dele, alto, bigode branco, quando ia para casa à noite levava uma lanterna pequenina a petróleo. A esposa faleceu, cá ficou com a filha que se chamava Judite.
Por morte do sr. Oliveira, os herdeiros venderam a farmácia; a nova proprietária aguentou-se vinte anos mas procurou novos horizontes e mudou para Tomar. Hoje temos um posto de farmácia móvel.


O filho mais novo de Augusto Mota formou-se em medicina em 1932 ou 1933. Montou o consultório na velha residência dos pais. Aos domingos é que vinham a maior parte dos doentes. Vinham doutras aldeias a pé ou de burro. Se houvesse uma boa burricada à porta do consultório … o médico tinha mais clientela …

A estrada que atravessa a aldeia, até 1942 no Inverno não se podia passar a pé com tanta lama. A Câmara alargou a rua, levantou um muro na margem direita da ribeira mas mesmo assim a água  da cheia entrava pela aldeia.
Na Primavera com o tempo mais ameno a ribeira era povoada de patos reais e outras raças, brancos e malhados. Estes patos pertenciam a vários moradores. Todos desciam à água conforme a hora que as donas os soltavam. Quando se aproximava a noitinha subiam todos a rampa para a estrada e cada grupo seguia direitinho para casa dos respectivos donos, mas … nunca iam calados. Eram uns seis ou sete grupos.

Quando era o tempo da caça o espectáculo também era engraçado. O s caçadores reuniam os cães chamando-os com o apito; os animais estavam nervosos, ansiosos para irem para o campo, era uma algazarra de latidos. O pior era quando um ou dois ficavam fechados e viam os companheiros partirem.

Falei nas famílias que vieram chegando para a estação dos comboios e os guarda-fiscais para a fábrica do álcool.











Foi esta rua à esquerda que a panela "sobrevoou"vinda de uma
das janelas da casa em frente, aterrando no quintal da casa de tarja
amarela, à esquerda.

Havia um guarda-fiscal que veio para aqui talvez em 1936, era casado mas não tinha filhos. O seu apelido era Belmonte, tocava concertina e era muito temperamental. Contavam os adultos da época que um dia comprou um cabrito e ordenou à esposa que cozinhasse cabrito para o almoço. Por razão desconhecida a senhora preferiu cozinhar bacalhau. Quando chegou a hora de almoço não havia cabrito mas sim bacalhau. Em vez de almoço, a panela de bacalhau e batatas voou pela janela do 1.º andar e foi aterrar no quintal da frente. Não se perdeu nada, os cães que por ali abundavam, almoçaram.
Este casal manteve-se por cá ainda alguns anos. Mais tarde, 1941, quando do grande ciclone, ela atreveu-se a sair de casa para ir comprar leite ao produtor.

Muitas destas famílias deixaram gratas recordações.

A fábrica de álcool (a gerência) por volta de 1942 resolveu encher umas dependências de porcos do Alentejo, ruivos ou pretos. Eram mais de cem. Quando era a hora dos tratadores irem abrir as vedações era um espectáculo vê-los saltar uns por cima dos outros. Mas o pior era o cheiro nauseabundo que andava pelos ares. Não havia ETAR nem nada para preservar as águas dos poços e da ribeira. Os excrementos eram armazenados a campo aberto, ali se reproduziam biliões de moscas. Os animais ou viaturas puxadas a bois passavam por ali e as mosquinhas apanhavam boleia para o centro da aldeia. Os moradores tiveram de proteger as portas e janelas com redes.

Já lá vão setenta anos. Hoje o espaço dos porcos é um lindo jardim particular, pouca gente se lembra do que aquilo foi. Quem lá mora não morava cá nessa época. O Mário Santos e Cacilda.
(continua)