Terreiro do Paço no séc.XVII -Óleo sobre tela de Dirk Stoop, Londres, 1662. Museu da Cidade |
Manuel Escudeiro, mestre alfaiate estabelecido na rua direita da
freguesia de S. Jorge da cidade de Lisboa, era tido como homem abastado e de
vida limpa. Mas não vivia satisfeito; com menos de trinta anos, solteiro e com
rendimentos, sentia-se em condições de aspirar a mais do que uma vida folgada
assente no trabalho. Sonhava ter importância e influência, fruir honras de
gente de bem!
E foi assim que, pondo os olhos numa vida futura cheia de
enaltecerias, em Setembro de 1697 entregou, no Tribunal da Inquisição de
Lisboa, um requerimento dirigido aos Ilustres Senhores Inquisidores
Apostólicos da Inquisição da Cidade de Lisboa, no qual declara
desejar servir os ofícios no cargo de familiar, pelo que lhes
roga que, achando nele os requisitos necessários sejam servidos de
o querer admitir nesse cargo.
Antigo palácio dos Estaus, sede da inquisição mais tarde, depois Teatro Nacional D.Maria II. |
Os Familiares do Santo Ofício eram agentes laicos da Inquisição.
Entrar para os seus quadros conferia o mais elevado grau de estatuto social e
prestígio, permitindo ascender na escala social do Antigo Regime. Ficava,
também,o Familiar imbuído de diversos poderes e regalias no âmbito das
diligências do tribunal do Santo Ofício.
Possuir a carta de Familiar garantia, por si só, que o
habilitando tinha limpeza de sangue, meios abastados de subsistência e,
essencialmente, atestava a sua origem de cristão velho. Pouco importava a
origem social desde que aquelas duas condições estivessem presentes nesta
ordem: ser cristão velho e ter meios – fazenda – que lhe permitisse viver
abastadamente. E nunca esta ordem era trocada. Conta Camilo Castelo Branco no
seu livro Sentimentalismo e História como uma das famílias da nobreza
portuguesa “Os senhores da casa de Barbacena”, tão nobres que se colocaram ao
lado de D. Miguel nas lutas liberais, nunca conseguiram habilitar-se ao Santo
Ofício devido ao seu “defeito” original: descenderem de Antão de Castro, feito
cavaleiro da Ordem de Cristo e fidalgo da casa Real por D. João III mas
declaradamente cristão-novo.
A aceitação do candidato a Familiar era antecedida de um rigoroso
processo sobre as qualidades morais, pessoais, familiares, e, sobretudo, a
certeza plena de não ter ascendência próxima de herege, judeu, mourisco ou
negro, isto é, absoluta limpeza de sangue.
Paisagem de Minde |
No seu requerimento Manuel Escudeiro, naturalmente, identifica-se. É filho
de Domingos da Rosa e de Maria Fradeza, ambos do lugar de Minde, termo de Porto
de Mós, bispado de Leiria, local de onde são também naturais os avós paternos
Domingos João e Maria Esteves e os maternos, Simão Escudeiro e Maria
Fradeza.
Roque Gameiro: casa antiga de Minde |
Na primeira análise ao processo é referido que Manuel Escudeiro “mestre
alfaiate e soldado de infantaria vive limpa e abastadamente, sabe ler e
escrever, é sujeito muito bom e servido na vida e costumes, muito capaz para se
lhe encarregarem todos os negócios de importância e segredo”.
Porém é também notado, nem se pergunta como o descobriram (afinal eram
mestres no ofício), que todos os seus ascendentes são de Minde sim senhor,
excepto o avô materno que “veio para o lugar de Minde vindo do lugar de
Beselga ou de outro lugarejo pegado a este que se chamou ou chamava dos vargos(?)
ambos do termo de Torres Novas, este foi ferreiro e serviu de alferes de
governação no dito lugar de Minde”.
Não se sabe como Manuel Escudeiro reagiu a esta notícia. Ou se teria tido
acesso a ela. Será que estes processos correriam “em segredo de justiça” ou
ir-se-ia dando conta das diligências ao interessado? O certo é que não é posta
em causa a informação inicial dada pelo requerente sobre a naturalidade do avô
materno. Se terão concluído que ele apenas estaria mal informado sobre o
assunto ou se os teria tentado enganar não sabemos.
Sabemos, isso sim, que em Novembro de 1701 ( já lá iam quatro anos desde o
inicio do processo! ) o Reverendo Beneficiado Julião Pereira Cabanas, notário
do Santo Ofício, é enviado ao termo de Torres Novas a saber do tal Simão
Escudeiro, avô do habilitante e manda de lá a seguinte carta ( a ortografia
actual é minha, a pontuação continua a ser a do Reverendo):
« Seguindo a ordem de V.Senhoria fui ao lugar da Beselga pelo qual passa
uma ribeira e da banda de lá da dita ribeira há umas terras louvadias (?) sitio a que chamam as vargens (?) e
tudo é termo desta vila de Torres Novas, porém no dito sitio das vargens (?) não
havia vestígios nem achei memória de que houvesse nele casas nenhumas e no dito
lugar da Beselga não achei pessoa velha que desse notícia de Simão Escudeiro
nem que conhecesse seu neto Manuel Escudeiro da cidade de Lisboa e por ser o
lugar da Beselga pequeno e ser a freguesia grande quase légua e meia de
distância me informei com os moradores dos lugares mais vizinhos ao dito lugar
da Beselga que todos são fregueses da freguesia de Nossa Senhora da Purificação
de Assentiz e achei algumas pessoas mais velhas e dignas de crédito que
conheceram muito bem a Simão Escudeiro que foi ferreiro no lugar de Minde termo
da Vila de Porto de Mós e sabem que foi natural do dito lugar da Beselga e que
conheceram a um seu irmão inteiro morador no mesmo lugar da Beselga por nome
Filipe Escudeiro oficial de serralheiro a casa do qual vinha muitas vezes o
dito Simão Escudeiro e conheceram ao padre Afonso de Torres clérigo que morreu
sendo beneficiário em uma igreja da Vila de Tomar também irmão inteiro dos
acima nomeados e que esses tiveram mais irmãos de que descendem muitos parentes
que há em toda aquela freguesia que inda hoje é o seu sobrenome de Escudeiro e
alguns são ricos e houvera cinco ou seis anos que morreu um capitão por nome
Manuel Escudeiro que dizem se lhe avaliou o que herdaram seus herdeiros em mais
de trinta mil cruzados e há outros pobres que houvera dois anos morreram no
mesmo lugar da Beselga que usaram e serviam o oficio de serralheiro e as
pessoas com quem tomei informação todas disseram que elas não conheciam ao dito
pretendente Manuel Escudeiro e que não sabem se tem alguma fama ou defeito mas
que bem conheceram o seu avô Simão Escudeiro que casou no lugar de Minde e
serviu o ofício de ferreiro e sabem que era cristão velho e limpo sem fama nem
defeito algum e que na mesma forma conheceu seus parentes moradores na dita
freguesia sem fama nem defeito mas antes todos limpos dos melhores da dita
freguesia é tal os muitos parentes entre os moradores da dita freguesia que
poucas vezes sucede se celebrar o sacramento do matrimónio que não haja
dispensa entre eles e não será fácil acharem muitas testemunhas que não se
declarem parentes do dito Simão Escudeiro suposto muitos sejam fora do quarto
grau e as pessoas que achei mais antigas são as seguintes Simão Jorge lavrador
do lugar de Assentiz que era parente fora do 4.º grau, António Lopes lavrador
do lugar de Fungalvaz, Simão Fernandes lavrador do Casal da Torre não conheceu
Simão Escudeiro mas que sempre ouviu dizer era irmão de Filipe Escudeiro a quem
ele conheceu, Maria Lopes, Maria Jorge, viúvas, Grácia Fernandes casada segunda
vez com Manuel Simões lavrador que todas passam dos oitenta anos, que
conheceram ao dito Simão Escudeiro e todas declararam serem parentes; a mim me
parece que é limpo o dito Simão Escudeiro pela boa fama que têm os Escudeiros
da dita freguesia. V.S. mandará o que for servido.
Torres Novas, dois dias do mês de Novembro de mil setecentos e um anos.
O Notário
Juliam Pereira Cabannas »
Sorte a de Manuel Escudeiro! Afinal o avô de origem desconhecida, que lhe
poderia ter derrubado todos os sonhos, nem era judeu, nem mulato nem nada!
Gente limpíssima, aquela “do lugarejo “ da Beselga!
E o processo prossegue, depois disto, a toda a velocidade! Com inquirições
formais a várias testemunhas em Minde e na Beselga, sediado em casa de Simão
Jorge.
Enfim, a ansiada Carta é passada a 26 de Abril de 1702, após o pagamento de
6 426 réis, pois conclui-se que …..ele e os seus ascendentes são legítimos e
inteiros cristãos velhos e de limpeza de sangue sem fama nem rumor de alguma
infecta nação e não incorreu em alguma infâmia ou pena vil de facto ou de
direito, …é solteiro e não tem filho algum … tem a capacidade e é merecedor da
ocupação que pretende… e assim o julgo limpo de sangue e o habilito para a
ocupação de familiar. (MFM)
Fonte: Processo de Habilitação a Familiar do Santo Ofício de Manuel Escudeiro, Arquivo da T.T: Maço 54, Doc.1154
Mercado da Ribeira-Velha, Lisboa. Museu Nacional do Azulejo. |
Desabafo Final: Incomoda-me falar sobre a inquisição. Se é certo que
a História não se julga com os olhos de hoje, a crueldade, toda ela, é
intemporal. A crueldade de quem se julga dono da verdade e quer transformar os
outros à custa do terror, da tortura e da morte, está, infelizmente, muito
próxima de nós no tempo, e é nossa contemporânea também, embora hoje
“deslocalizada” deste pedaço de antigo centro de decisões que é a Europa. Por
enquanto. A natureza humana será (?) assim mesmo e a nossa racionalidade
aprendeu muito pouco.
E dado este meu “incómodo” assumo o tom ligeiro que tomou a
descrição da presunçosa aventura deste nosso quase conterrâneo. Pois ser
Familiar do Santo Ofício era coisa séria, nefasta e nefanda, não era, enfim,
coisa bonita de se ser. Nem na época (Cristo com o seu Mandamento Novo já
tinha vindo ao Mundo), nem, muito menos, agora. E é por isso que eu pasmo com a
quantidade de gente que, a toda a hora, nos sites e revistas de genealogia e
afins, exibe, orgulhosa, os seus antepassados Familiares, quase sempre escondendo a origem
social ou, não o fazendo, enaltecendo a capacidade de ascensão social do
avoengo! Enfim, tal como a crueldade, a vaidade é ilimitada e de todos os
tempos!
É claro que também não concordo que se arrenegue parente algum.
Família é família, familiar que seja, o Senhor lhe perdoará já que a mim, pobre
pecadora, me custa muito. Apesar do seu “defeito” reconheço que Manuel
Escudeiro e eu partilhamos um “enésimosinho” de ADN, sou descendente
(através de Augusto Pereira da Motta) de Filipe Escudeiro (1588-1646) e também
de Oriana Escudeira (falecida em 1641 em Fungalvaz), ambos irmãos do tal
Simão que a inquisição averiguou. Eles e outros mais (outro irmão Ignácio casa
em 1611 com Maria de Sousa do Casal da Velida, digam lá se isto não anda também
tudo ligado?), filhos do casal Simão Escudeiro e Maria Jorge, moradores na
Beselga no sec.XVI onde ele se dedicava a trabalhar o ferro (ferreiro,
serralheiro ou mesmo escudeiro, donde lhe teria vindo provavelmente o nome),
ofício que passou aos descendentes, existindo ainda há pouco tempo serralheiros
em Ourém com este apelido.(MFM)