2 de novembro de 2014

Dia de Finados

Vincent Van Gogh, Les Alyscamps, 1888


Quando Chegar a Hora


Quando eu, feliz! morrer, oiça, Sr. Abbade, 
    Oiça isto que lhe peço: 
Mande-me abrir, alli, uma cova á vontade, 
    Olhe: eu mesmo lh'a meço... 

O coveiro é podão, fal-as sempre tão baixas... 
    O cão pode lá ir: 
Diga ao moço, que tem a pratica das sachas, 
    Que m'a venha elle abrir. 

E o sineiro que, em vez de dobrar a finados, 
    Que toque a Alléluia! 
Não me diga orações, que eu não tenho peccados: 
    A minha alma é dia! 
….


António Nobre , Só

O Dia de Finados e eu


Aurélia de Sousa (1866-1922) Dia dos Finados


Hoje é Dia de Finados. Dia dos mortos. Dia em que todos visitavam os cemitérios e iam à missa. Toda a gente ia à missa pelos Fiéis Defuntos, até o meu pai, o primeiro anti-clerical que conheci. E dos últimos, parece-me que já nem há disso, eram resquícios de novecentos e do jacobinismo, crentes que odiavam a cambada da padralhada responsável pelo atraso do país e ignorância do povo.
Quando eu era criança não tinha mortos, todos os que eu queria estavam vivos, comigo. 
Mas, em Tomar, acompanhava os mortos da minha tia Alice e da minha mãe. 
Pelo cemitério eu ia travando conhecimento com toda aquela gente que eu nunca vira, que nascera, pelo menos,  três gerações antes da minha e que agora morava ali. E enquanto se lavava a pedra das campas e se arranjava as flores nas jarras, recapitulava-se, para os pequenos, quem era quem, os  laços que nos ligavam, como e onde tinham vivido. De caminho, dava-se também um jeito nas campas vizinhas, propriedades de amizades de longa data, muitos feitas  ali mesmo, em momentos partilhados de lamentos de perda e de prosaicas ajudas no carrego do regador de água “coitadinha, agora  já cá não tem ninguém quem zele por ela, ela, que estava aqui sempre carregada de flores para os seus”, abandonadas por morte do último familiar.
Ao lado da campa dos meus bisavós Coito havia, ainda lá está, agora de mármore, uma, coberta de toscos mosaicos escuros tendo arrumada a ela, à cabeceira, uma robusta roseira com as mais aveludadas rosas vermelhas que alguma vez vi. Nos Dias de Finados, desde que abria o cemitério até ao fecho, na noite fria de Novembro, uma cigana completamente enroupada em negro rezava e chorava ajoelhada, meia envolvida na roseira, a ponto de nós, os miúdos,  acharmos ser um monte de trapos pretos coberto de rosas encarnadas. Passados anos de abandono, a campa resplandeceu, um dia, de branco, e sobre ela uma placa indicava um filho querido e saudoso, lembrando  que ali jazia  Manuel Curro acompanhado de sua mulher. A roseira lá permanece.
Depois das jarras compostas e de tudo arrumado, havia toda uma palafrenária de objectos de limpeza, tesouras, regadores  e restos de plantas a que era necessário dar caminho, pois, depois de tudo arrumado, dizia, tornávamos-nos todos circunspectos, perfilávamos-nos e rezávamos um Pai Nosso, pedindo ao Senhor pela alma ou almas específicas que ali estavam, pelos outros familiares que também estavam com Ele, não nos esquecendo daqueles que não tinham ninguém que rezasse por si. E terminávamos “Dai-lhes Senhor o eterno descanso entre os esplendores da luz perpétua. Descansem em paz. Amém”.
Hoje já tenho os meus mortos. Cada vez mais. Dizem que a velhice chega quando temos mais gente lá do que cá. Não fiz as contas, não sei se o número dos que partiram é maior ou menor, sei que a coisa não se mede à unidade, que já pesa e dói muito.
Mas aqueles que cá estão e que, Deus o permita, permanecerão depois de mim, apesar de alguns ainda não terem os seus mortos, já têm incutidas as práticas que me ensinaram em criança. Não posso, porque está para além do meu alcance, manifestar-lhes a fé que outros me mostraram, mas quero e devo fazer com que conheçam, respeitem e homenageiem a memória dos nossos mortos.
Poder-me-ão dizer que recordar um ente querido não tem que passar por visitar um cemitério, local macabro e desagradável, com mortos e tudo, o que até pode traumatizar as criancinhas.  
É verdade que se pode recordar sempre, mas quando e onde? Os Celtas reuniam-se  nos Lares para homenagear os mortos. Nada contra. Mas, se é que ainda há Celtas(?), parece-me que já não há druídas. Ir ao cemitério sempre fica mais à mão. Eu, os meus irmãos, os nossos filhos, não ficámos traumatizados por saber, em crianças, que as pessoas morrem e por irmos, anualmente, ao cemitério. Esconder a morte aos meninos não os faz mais felizes.
E depois, sempre me parece mais saudável os  inocentes infantes saberem que o avô (todas as crianças têm avós vivos) teve pais, e conhecerem  o local onde estão sepultados, do que andarem para aí, apatetados, a celebrar bruxas, procurar espíritos, enfim, a imitar americanos com fatos de Halloween numa carnavalada deprimente.
É certo que há outras culturas nas quais os mais novos prestam homenagem aos seus que partiram, mas, essas, parece que não importa muito imitar. A tolice é mais simples.

Mas esqueçamos por hoje as tolices. Em Dia de Finados, pelo menos hoje, façamos por merecer e honrar os nossos mortos. (MFM)

Nota: Com as gentes de Porto da Lage não tive experiências destas, ter-me-iam poupado ou considerariam a colocação de flores uma extravagância que o Senhor reprovaria? Mas as" missas por alma" foram inúmeras. Com o cemitério de Cem Soldos tive contacto, a partir dos funerais dos primeiros tios-avós que faleceram, depois de ser crescida. Aí vi campas  identificadas com nomes conhecidos e fui-me informando. Confesso que o resultado não foi o mesmo de Tomar. A minha memória infantil já se fora.
Mas é também um cemitério de romaria da minha família neste dia, lá repousam os meus avós Mota, e por lá vigiará o espírito de muita da ancestralidade do meu avô, pois foi, desde o início o local de sepultamento da população de Porto da Lage, Paço e norte da freguesia, em geral. Até agora, em que um novo cemitério o veio substituir, em Porto Mendo, mesmo ao lado de algo que é lindo e já teve grande significado para Porto da Lage.