11 de novembro de 2014

A Agonia das Palmeiras

Joaquin Sorolla (1863, 1923), El palmeral de Ecche, 1918
                                                     
Corria o ano de 1983 quando, num dia qualquer, a percorrer o caminho do costume, deparei com personagens diferentes a cruzarem o meu olhar habitual pela janela do autocarro. Eu estava a ver, boquiaberta, dezenas de palmeiras adultas no Largo das Cebolas! No amplo parque alcatroado e desarborizado onde, na véspera, estacionavam desordenadas camionetas de transportes ocasionais, dezenas de operários preparavam agora pequenas avenidas ladeadas por palmeiras de sete metros, enquadrando a restaurada Casa dos Bicos que readquirira os quatro pisos que o terramoto levara. Nunca mais me esqueci do espanto da altura, o pescoço a retorcer-se, enquanto o autocarro se afastava, para continuar a ver o insólito, o cérebro a tentar processar aquela novidade. Coisa nunca vista!
Mas, a partir daquela inovação trazida pela XVII Exposição Europeia de Artes, Ciência e Cultura, a coisa passou a ser muito, muito vista. Deixou de ser só enfeite de monumento restaurado, a condizer com as parangonas das comemorações dos centenários do Império perdido, que tinham lugar a toda a hora, pelos idos anos noventa. A moda alastrou pelo país nos vinte anos seguintes, não se construía praça, rotunda, avenida, condomínio no Algarve, que não ostentasse a sua magnificência exibindo o seu palmar ou palmeiral gigante. Em Mirandela apresentaram-me uma vez a “Avenida Palmolive”, que na verdade não se chamava assim, no baptismo tinham-lhe dado, salvo erro, o nome de um figurão qualquer da Comunidade Europeia, Palmolive é o nome que a população lhe dá devido ao rasto de Palmeiras que se desenrola por quase um quilómetro, entremeado por arbustos de oliveira.
E quando a fúria replantativa do nosso palmar portucalense abrandava, fosse por falta de orçamento, as coisas mudaram, fosse por fastio, a moda, precisamente por o ser, cansa, e nada movimenta e enfada mais este povo do que andar fora dela, eis que a tragédia se abateu sobre ele.
E a paisagem da cidade mudou, falo da capital, que conheço melhor, mas também já vi o triste espectáculo noutras paragens.
Começamos por ver os troncos (que não são troncos, afinal as palmeiras não são árvores), pois começamos por vê-los longos e elegantes, encimados por guedelhas secas e despenteadas, cada vez mais descabeladas até à tonsura final. O remate chega quando, já sem folhas, a serra lhe põe fim. Centenas de cotos povoam agora canteiros que viram crescer as palmeiras há largas dezenas de anos ou abriram as suas entranhas, há meia dúzia, para nelas serem depositadas as raízes daquelas enormes plantas transplantadas de origens longínquas.
A morte, toda a morte, é triste. Mas, além de mágoa, deve impor honra e respeito. A das árvores é suposto ser digna, - morrem de pé! – diz-se. Mas não a destas. De tão público, o seu sofrimento chega a ser despudorado. Patenteiam, a olhos vistos, uma agonia sem remissão, lenta e pesarosa que a algumas almas sensíveis inspirará dó, mas à maioria repulsa e vontade de as ver desaparecer.
As exóticas arecaceae, a espécie das canárias, a mais comum, estão a deixar-nos, vítimas do escaravelho vermelho, que, diz-me quem viu, é bicho execrável e repugnante que mina o âmago da planta até à morte. Proveniente da Ásia, começou a chegar à Europa em 1980 através precisamente, ironia das ironias, do comércio de palmeiras.
Não tivessem vindo as “novas” velhas palmeiras e não estaria cá agora o seu algoz.
Os trinta anos de esplendor estiveram sempre corrompidos pela doença latente.  A fatalidade era certa, o tempo se encarregou de a pôr à tona.
Isto que acabo de narrar são factos, nada tem de inventado, muito menos de mágico.

Porém, depois de lido, soa-me a parábola. O período de trinta anos, o aparato e alvoroço inicial, o luxo e exibicionismo contagiante, primeiro, a enfermidade disforme e a morte aviltante, depois. Tudo me lembra a minha querida terra, o tão sofrido povo português.(MFM)

Picasso, La Fábrica de Horta, 1909