3 de novembro de 2016

V Duas Semanas a Banhos no Agroal




V- DUAS SEMANAS A BANHOS NO AGROAL

1937! Ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Tenho seis anos. Sou o sexto numa escala de sete filhos. Vivo no sítio de Porto da Lage muito perto do açude da ribeira da Beselga, numa casa muito grande que faz parte de um conjunto de edificações empresariais implantadas, contíguas à estação de Paialvo da linha de caminho-de-ferro do Norte. A área que ocupa é grande. É cercada por um muro alto com um portão e paredes de armazéns do lado da estrada que vai a Beselga; parede de armazém e casa de habitação orientada para nascente do lado do olival e um muro encimado por uma grade de ferro, do lado Norte, de frente à linha do caminho-de-ferro.
As edificações são ocupadas por uma saboaria desactivada, um armazém contíguo com caldeiras para a destilação de figos secos e extracção de água-ardente, dornas de madeira para fermentação e tulha de figos secos para destilar. Na ala oposta, outro armazém em todo o comprimento do terreno. Cerca de metade é dividido em dois pisos. O superior destina-se a habitação, o rés-do-chão a escritório e a depósitos de cimento armado para armazenamento de água-ardente ou vinhos.
Por esta parte deste armazém sob a habitação, entra a linha de caminho-de-ferro vinda do cais de mercadorias da estação. Entra por um grande portão, atravessa o edifício, sai de outro lado por outro portão e vai encostar a um cais contíguo, de lado.
Com o começo no muro da frente da estrada, parte em paralelo a esta edificação um alpendre que se estende até ao início de pavimento da habitação. No seu começo foi construído um estábulo de pedra e cal, com capacidade para recolher os animais que eram usados nos veículos de transportes de pessoas e materiais diversos.
No seguimento de estábulo e só como alpendre meio aberto recolhiam-se as carroças, as galeras, a charrete e um cabriolé de dois lugares, “tílburi”, com rodas de rasto de borracha. Ainda no seguimento do alpendre e em paredes-meias com o edifício da habitação, existe uma pequena casa de um piso elevado que teve como objectivo a acomodação do vigilante.


No exterior destas edificações existe um edifício bem construído, de pedra e cal, na margem direita da ribeira, contíguo ao açude cuja utilidade é desconhecida e que, certamente, fez parte do mesmo conjunto empresarial. A casa em que vivo tem cinco quartos, uma cozinha com uma grande chaminé, uma sala para refeições, um quarto de banho com sanita em grés, um corredor comprido para acesso a todas as divisões e um salão onde tenho um baloiço de corda atada a uma trave do telhado. 
                                         

                                           *


Passo os dias sem saber como. Corro atrás de um arco feito de uma pega de ferro de um balde da sucata adaptado por um ferreiro a pedido do meu irmão; cavalgo uma cana cortada da ribeira onde há muitas; vejo homens no pátio a rachar lenha e a empilhá-la para secar; vejo mais homens a conduzir carroças, a alimentar o gado, a retirar o estrume dos estábulos, a destilar figos nas caldeiras aquecidas com lenha. 

Conheço-os todos pelos nomes ou alcunhas. Em alguns tenho alguma confiança e até me ensinam a posicionar armadilhas para apanhar passarinhos. 

Também apanho ratos. Encontrei em casa uma armadilha para os caçar. Há muitos por aqui e alguns muito grandes, tão grandes que enfrentam os gatos. Vi um a arrastar um pinto para o interior do buraco. A galinha mãe tentou defendê-lo mas não conseguiu. Preparo a armadilha com um pedacinho de toucinho chamuscado para os atrair com o cheiro. Espeto-o no gatilho que está dentro e deixo a porta aberta, premida por uma mola, presa ao gatilho. Quando o rato entra para comer o isco a porta fecha-se. Assim preparada, é colocada junto dos buracos, na arrecadação das farinhas, dos cereais, dos fenos, etc. Quando os apanho cometo uma barbaridade inocente: mergulho-os na ribeira dentro da gaiola.

*
De quando em quando faço recados a mando das minhas duas irmãs mais velhas. Vou à loja que fica em frente da estação do caminho-de-ferro; vou pelo carreiro da levada. Outras vezes vou ao padeiro, pela estrada porque é mais perto. Vou e volto sempre a correr. Quando os recados são complexos, as minhas irmãs dizem-me: vai a canta-los! Quando algum falha…volta pelo mesmo caminho!
As pessoas mais velhas, os adultos, por comodidade ou para se ocuparem, unicamente, de afazeres de elevada importância, valem-se dos mais novos para os menores. Eu, na família, sou o mandarete e gosto de o ser.



Fiz agora um recado que me valeu uma moeda de dois tostões, vinte centavos. Estava ali na borda da ribeira a tentar pescar um peixinho quando um homem me chamou da estrada que passa aqui perto. Larguei a cana e fui ter com ele que me disse: vais ao correio, que é na loja em frente da estação do caminho-de-ferro, e perguntas se há correio para mim, e disse-me o nome. Parti a correr pelo carreiro da levada, não me esqueci do nome, e entrei na loja. Não havia carta. Voltei pelo mesmo caminho, sempre a correr, e disse ao homem de preto que tinha ficado ali à minha espera. Tirou do porta-moedas uma moeda de 2 tostões e deu-ma. Fui guardá-la a casa e voltei à margem da ribeira onde havia deixado a cana e continuei a tentar pescar um peixinho.


O homem vestido de preto deve ser seminarista ou padre. Sei que os rapazes que frequentam o seminário usam roupas pretas. Alguns são da Beselga, das Moreiras ou da Assentis. Vejo-os passar pela estrada quando se dirigem ao comboio.

                                                                 *

Na ribeira, antes do açude, há muitos peixinhos que eu tento pescar. O meu irmão que frequenta uma escola comercial em Tomar comprou um anzol em alguma loja da cidade e eu, com uma linha branca de coser roupa que retirei do açafate de costura atada a uma ponta de uma cana seca que retirei de um molho delas que estão reservadas para armar nos canteiros dos feijões e algumas minhocas que desenterrei com uma enxada na terra húmida de uma estrumeira, tento pesca-los mas é difícil: mordiscam o isco sem abocar o anzol.



                                     *

Não sei o que significam os meses do ano. Só sei que há o tempo das cerejas, das favas, das ervilhas, das ceifas do trigo, das debulhas nas eiras, das uvas 


e vindimas, da feira de Santa Iria em Tomar onde fui uma vez com os meus pais numa carroça, o dia de todos os santos em que se cozem no forno bolinhos doces com erva doce e canela e se anda de porta em porta a dizer: bolinho, bolinho em louvor do seu santinho. 


Da azeitona e do Natal quando o menino Jesus entra aqui em casa pela chaminé e vem deixar nos sapatos que lá deixamos uma simples peça de roupa ou um tosco brinquedo. Neste tempo as minhas duas irmãs mais velhas fazem uns doces de abóbora com farinha e outros de massa de pão distendida. Depois de fritos à lareira são polvilhados com algum açúcar e canela. Estas “iguarias” preparadas na noite que antecede o dia de Natal. Na manhã seguinte e dia santificado vamos todos à missa menos o meu pai, que por norma, nunca vai a alguma. É oficiada na igreja de S. Silvestre, às nove horas, que fica perto se formos por atalhos.
Quando a missa termina, o padre dá o menino a beijar no pezinho. As pessoas vão em fila, um por um, dão o beijinho no pé do menino que o sacerdote limpa com um paninho impregnado de álcool e depositam uma moeda, nem todos, numa bandeja pousada numa mesa. Dizem as pessoas mais velhas para iludir os inocentes infantis que o dinheiro oferecido se destina à compra das prendas que o menino fará para vir depositar no sapatinho, no próximo Natal.
Não compreendo que haja todos os anos um menino Jesus. Os meninos só nascem uma vez. Perguntei à minha mãe mas não me respondeu. (IMT)

continua....

Desenhos de Maria Keil e Júlio Pomar em papel e azulejo.

4 comentários:

  1. concordo com a Rosário. A parte inicial foi uma revelação para mim; seriam aqueles edifícios a pré fábrica de destilação? E teve uma saboaria!Talvez ajude a junção desta imagem, https://www.google.pt/maps/@39.5824141,-8.4761929,159m/data=!3m1!1e3 Óscar Mota

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  2. Que é dos pintores deste meu país estranho?
    Que é feito deles que não vêm pintar?
    Anto

    E, vai daí, o Ilídio, aos 80 anos, pôs-se a pintar de memória.

    «E eu era feliz?
    Não sei, fui-o outrora agora»
    Pessoa

    E nós com ele.

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  3. E hoje, dia 8 de Novembro, completaria 86 anos. Que melhor forma de os celebrar que esta de ver a sua memória apreciada? Parabéns Ilidio, parabéns meu Pai
    luísa mota teixeira

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