19 de setembro de 2017

Em Tempo de Eleições




Mateus José Alves, bacharel formado em Coimbra, ocupava despreocupadamente as suas manhãs passeando de caleche até S.João da Foz e as suas noites jogando bilhar no Clube enquanto discutia as vantagens da união ibérica e a pouca qualidade do parlamento português, quando o amor o assaltou. Pedida a menina ao cioso pai e ouvida a inesperada recusa, o infeliz Mateus percebeu, então, que não tinha modo de vida. Ser o filho regalado do sr. Macário Alves - merceeiro da cidade do Porto – que era também  mesário da ordem terceira de S.Francisco, tesoureiro do hospital do Carmo, de que era exclusivo fornecedor, irmão benfeitor da venerável ordem do terço, etc, etc, não o habilitava afinal a aspirar à mão da filha de um proprietário de Cabeceiras de Basto que protestava não a entregar a filho de especieiro, mas sim a alguém distinto que tivesse carreira que o engrandecesse.
Em vistas disso, tanto magicou o desconsolado amante à procura de carreira que o engrandecesse aos olhos do esperado futuro sogro, cotejando as suas habilitações com algo a que pudesse aspirar, que se achou capaz de ser deputado. Procurou, assim, no pai, as influências necessárias, o qual logo tratou de as arranjar, organizando lá em casa reunião com seis das principais predominâncias do ciclo eleitoral. Reunião que decorreu como segue (MFM).

« — Mateus, estes senhores vão arranjar votos para ti, com a condição de tu lá em Lisboa lhes arranjares umas coisitas que eles querem do governo.
— Tudo que humanamente se puder fazer —disse o bacharel. — Diga cada um dos meus nobres amigos o que pretende.
O mais grave dos seis, falou assim:
— Eu queria que o sr. doutor arranjasse uma comenda, ou uma coisa assim para meu primo António, que tem a loja da esquina da praça de Carlos Alberto, e já na outra eleição andei a trabalhar pelos históricos, ou que diabo são, e por fim de contas a comenda não veio.
— Conte seu primo António com a comenda; e V. Ex.a não quer nada? — disse o candidato.
— Eu só queria que o sr. doutor dissesse lá ao governo que mandasse cortar as árvoreque plantaram na praça e me tiram a vista à minha casa.
— Serão cortadas as árvores.
— Eu — disse o segundo — tenho um filho formado a comer-me há doze anos as meninas dos olhos, e queria que o sr. doutor lhe arranjasse um despacho para delegado.
— Pode dizer a seu filho que está despachado.
Falou o terceiro:
— Queria eu que V. Ex. fizesse com que a estrada em vez de passar em Guinfães, fizesse uma curva por trás da igreja de Ranhados, que me ia passar mesmo à porta.
— Nada mais fácil. Terá V. Ex.ª a estrada à porta. E o meu amigo que quer?
— Eu queria que se botasse a terra o conselho de saúde, sendo possível.
— É possível: logo que eu chegue a Lisboa o conselho de saúde há-de cair para nunca mais se  levantar.
O quinto disse que tinha uma questão de grande importância no supremo tribunal, depois que a perdera em todas as instâncias. O bacharel teve a paciência de escutar os direitos do demandista e lavrou logo o acórdão.
Finalmente, o sexto eleitor pediu a bagatela de um caminho de ferro a Mirandela, por Murça, onde ele tinha uma herdade e parentela que nunca vira por falta de comunicações.
Maravilhou-se Mateus da parcimónia das pretensões e animou-os a exigirem mais alguma cousa. Tomou assentos na sua carteira, e deu um abraço em cada um, quando todos à uma lhe disseram:
 — Está deputado o sr. dr. Mateus.

                                                                       ……….


                                                                        .........

A candidatura de Mateus José Alves foi um triunfo!
À hora em que o humilde cronista das glórias do bacharel Mateus escreve estas linhas, estouram em Campanhã, onde Macário tem uma fábrica de curtumes, centenares de foguetes, e tilintam vertiginosas as sinetas da igreja. Consta-me que na tenda de Macário todos mataram o bicho gratuitamente. Agora, resta-nos ver sair um Pombal detrás de uma ancoreta de jeropiga!»


Camilo Castelo Branco, Cenas Inocentes da Comédia Humana, 1863