31 de dezembro de 2019

A Vida do Espírito e os Pés de Barro


O Dr. Vieira Guimarães


Já falámos neste blog do Dr Vieira Guimarães a propósito do Aniversário do Passamento de Gualdim Pais , de que foi grande impulsionador, da recepção apoteótica na nossa estação e em Tomar, por ocasião da sua formatura e também aqui .
Vieira Guimarães, é actualmente  conhecido pela casa que leva o seu nome, na Corredoura (cuja história abordámos em anterior post), e por a sua obra histórica sobre Tomar, que começa agora a ser divulgada pelas novas gerações. Mas nem sempre foi assim, se, a fazer fé na leitura da imprensa da época, parece ter sido idolatrado pelos seus contemporâneos,  não me consta que o mesmo tenha sucedido nas gerações  imediatamente seguintes. No inicio dos anos setenta não era popularmente reconhecido em Tomar, não me recordo que fosse lembrado com saudade por aqueles que o tinham conhecido e que escreviam habitualmente na imprensa (as redes sociais do meu tempo), ao contrário do que sucedia, por exemplo, com o "Dr. Sousa", o qual teve mesmo a sua obra reeditada nos anos oitenta, o que nunca aconteceu, que eu saiba, com as de Vieira Guimarães.
Talvez a diferença de tratamento, pelas gerações seguintes, destes dois tomarenses contemporâneos resida, precisamente, na diferença entre os dois, enquanto João Maria de Sousa, falando de história (não ei se será um historiador), fá-lo com alguma objectividade e sentido critico, embore arrase os cavaleiros de Cristo vendo apenas neles seculares exploradores e opressores do povo, toda a história de Vieira Guimarães é panegirica, o seu estilo encomiástico exalta os cavaleiros, puros e sem mácula, exalta Costa Cabral, estadista exemplar e incompreendido, enfim, ele só conhece heróis e vilões, e as gerações recuadas, de que eu ainda faço parte, impregnadas consciente, ou inconscientemente, pelo materialimo dialético, para além de não se reverem nem no estilo nem na metodologia (mesmo na ideologia, no caso de alguns, uma dezena de anos mais novo e V.G. não escaparia de levar com o epíteto de fascista em cima de si) tinham pouca paciência para encontrar, entre tantos elogios, louvores, angústias patrióticas, muita gente angélica e outra tanta digna de subir ao altar, algum valor de carácter histórico nas obras de Vieira Guimarães.
E atenção, eu era dos poucos jovens da minha idade que sabia da existência de um senhor chamado Vieira Guimarães, sabia-o através da minha avó, ela conhecera-o, contava que era professor no Liceu Camões e lembrava-se, com saudade, da insistência, mal sucedida, que aquele fizera junto do seu pai para que a deixasse ir para Lisboa continuar os estudos.
Uma prova, penso eu, da indiferença a que este historiador da Ordem de Cristo esteve votado, foi a proposta de demolição da sua casa, de que já  falei aqui, quem a teria ou não construído ou lá teria vivido, não era coisa relevante para a decisão dos poderes, e até para os intelectuais, da época (aquilo não tinha qualquer valor arquitetónico, diziam!se calhar com razão), e a contestação que se opôs àquela intenção, na qual me incluí apesar da minha pouca idade, residiu apenas em querer preservar o que conheciamos, aquilo que fazia parte da "memória colectiva" (detesto esta terminologia mas reconheço que aqui faz sentido) de gerações que não tinham conhecido outra coisa,  que tinham crescido a vê-la ali, com a sua torre erguida à nossa espera quando saíamos da ponte, e não queriamos perdê-la, porque nada conforta mais do que aquilo que sempre conhecemos, diga-se o que se disser. Se Vieira Guimarães veio à baila naquele processo, e não sei se veio, teria sido por mero caso. E a casa manteve-se!
 (Um parêntisis: coisa semelhante aconteceu e penso que ainda acontece com a remoção da estátua de Gualdim Pais, da Praça - ela está lá há pouquissimo tempo em termos históricos, faria mais sentido estar noutro local, talvez, mas quem vive nunca conheceu outra realidade - e isso tem muita força, afinal o tempo que vivemos é o tempo dos presentes não o dos do passado nem o dos do futuro, independentemente do egoísmo que isso possa representar, esta é a realidade. )
 Mas, esquecido ou reaparecido, com pouco ou muito valor, Vieira Guimarães foi, inquestionavelmente, um homem que amou a sua terra,  sobre ela escreveu .….cidade, onde eu nasci e a que tantas recordações saudosas tão extremamente me ligam, d’este belo torrão em que brinquei com meus irmãos e ouvi dos lábios santos d’uma mãe extremosa as preces a um deus de Fé e os conselhos inolvidáveis de honra e de trabalho, que tem sido sempre a minha norma de vida.
Como me recordo d’essa terra em que tudo para mim encerra uma saudade, e oculta na amenidade de seus prados, na beleza de seus vales, nas sombras de seus pinheirais, no pitoresco do seu Nabão e na grandiosa majestade de seus monumentos, uma lembrança, quase uma parcela do meu eu!! Como eu quereria viver ali longos anos, na convivência intima dos meus, no lar onde crepita o fogo que primeiro me aqueceu, sob esse belo azul, onde refulge um sol benéfico e vivificante, e depois… morrer, descansando, enquanto as leis da física e da química me não transformem de todo, n’esse santo campo do Adro, dormindo no seu seio o ultimo sono! (1)

Voltando ao seu tempo, era então uma figura muito conhecida, senão a nível nacional, pelo menos lisboeta; sendo mesmo, ao que parece, merecedor que a sua casa fosse exibida nas revistas do jet set de então.
A revista Ilustração Portuguesa publica em 30 de Julho de 1921 uma reportagem em que descreve, no estilo pomposo da época, a casa de Vieira Guimarães situada na quinta que detinha à beira do Nabão. Aquela publicação, refere-se-lhe como sendo a casa "de um artista é também a casa destinada ao viver de um lavrador entregue à labuta dos campos, que sabe conciliar a vida material com a vida do espírito, a vida da alma com a existência do corpo", descrevendo o exterior como de estilisação portuguesa,  com o seu elegante alpendre ao topo, cujo telhado tem por zingamocho uma esbelta esfera armilar em ferro; as janelas vão desde os simples quatro pedaços de cantaria, às vergas recortadas e ombreires esculpidas de D.Manoel I e D. João III e ás de balanço molduradas dos séculos XVII e XVIII; os ventiladores são formados pela cruz dos templarios e o rodapé por azulejos com a mesma cruz. 



« A casa do sr. Dr. Vieira Guimarães fica situada junto ao rio Nabão, n'uma quinta em que
 a opulência dos olivais rivaliza com a das magnificas árvores de deliciosa fruta.
..»


Quanto ao interior, era, segundo quem escrevia,   "o verdadeiro museu do espirito de Tomar, são evidentes os traços portugueses nas mesas, cadeiras, camas e nos guarda-loiças de vidros de catedral dos séculos XIII e XVIII. São inumeras as cerâmicas portuguêsas antigas que a paciência do seu possuidor tem coleccionado, assim como muito grande é a colecção de cerâmica moderna onde há talhas originais e curiosos vasos das olarias de Tomar. E dá destaque às paredes que têm aqui e acolá grandes pratos da olaria Roseira  com os retratos de D.Guladim Pais, D.Gil Martins, D.Dinis, D.Henrique (por ligados às ordens templárias e de Cristo) e com as vistas de Tomar e da celebérrima fachada poente da igreja manoelina do Convento de Crista. Também em uma das paredes se vê um "panneau" com o monograma do dr. Vieira da Silva, assente na cruz de Cristo, indicativa da sua comenda ...






Ficamos, por este meio, a conhecer uma casa  cuja arquitectura e decoração não nos espantam, pois correspondem, tão só, ao gosto do seu proprietário de se rodear dos símbolos daquilo que o apaixonava e a que dedicou os seus estudos - os Templários, a Ordem de Cristo, Tomar, enfim. Como muitos contemporâneos seus fizeram, nos inicios do sec.XX, em que era habitual replicar, naquilo a que durante muito tempo se considerou um pastiche de mau gosto mas que agora se volta a apreciar, o estilo manuelino e o gótico em geral, em prédios construídos então (sendo exemplos conhecidissimos desta prática o palácio da Regaleira em Sintra e o "Restaurante Abadia" no Palácio Foz em Lisboa), Vieira Guimarães também aplicou este estilo nesta casa e depois no edificio que construiu no topo da Corredoura. 
Neste aspecto, portanto, o artigo não nos trás nada de novo; que se encontrem cantarias esculpidas à moda neomanuelina nas fachadas, e cruzes templárias e de Cristo espalhadas pela casa, nada mais natural atendendo ao seu proprietário.
O que, para a mim, emerge de novo nesta leitura, é a personalidade do nosso homem. Aconteceu-me aqui o que, há muito, me acontece quando vejo  as deslumbrantes mansões de estrelas de várias galácticas, da TV ao futebol, passando pelas das boas famílias, espelhadas nas nossas Holla! de trazer por casa e na propriamente dita. O que leva aquela gente a mostrar a casa em que vive, a casa da sua família, onde têm as suas coisas, onde se desenrola a sua vida íntima? O que raio é que os outros têm a ver com as nossas vidas? Parece que têm, se for para lhes mostrarmos aquilo que possuimos a mais que eles, o que nos destingue e nos deslumbra, o que pensamos os vai ofuscar, a nossa superior aparência, em suma, a nossa vaidade, que aqui, no caso do nosso personagem, até vai envolta num "panneau" com o monograma da sua comenda!

Fiquei portanto a saber que Vieira Guimarães teria prazer em exibir-se, a si e às suas coisas, e daí inferi (porque sou mázinha ou porque conheço um bocadinho a natureza humana?) que não seria propriamente um homem recatado e modesto, o que, juntamente com outros deficits de virtudes de que  gozaria (segundo outras fontes que consultei e junto em anexo -uma delas agora, outra noutro post um dia destes), o mostram como detentor de uma nobreza de carácter digamos... pouco exemplar. Situação que, adianto desde já, não tira nem põe à qualidade da sua obra nem à contribuição que deu para a promoção de Tomar- importa, sempre, destinguir o autor do homem que o suporta.

 Continuando e voltando aos pratos de loiça nas paredes, às colecções de cerâmicas antiga e moderna, às esferas armilares, às cantarias, enfim, ao museu "do espírito de Tomar" que plasma a "vida do espírito" deste homem, aquela não pode ter deixado de ser, muito prosaicamente, alimentada pela "vida material" proveniente dos seus rendimentos, que viriam, pelo menos parcialmente, dos seus "opulentos" olivais. E, a ser como Fernando Ferreira nos conta abaixo, façamos uma "continha" simples só para exemplo: o preço do belo prato com a efígie do fundador Gualdim Pais elegantemente pendurado na parede da casa de jantar, terá correspondido a quantas sardinhas, batatas, feijão e couves a menos por boca do pessoal da apanha


Excerto do opúsculo de Fernando Ferreira "Alguns Aspectos de Tipismo e Tradição Tomarenses", à base da palestra proferida pelo autor no «Seminário Regional de Tomar sobre Defesa do Património», em 1980.

            - Oh sr. Dr. Vieira Guimarães! Que Aquele deus de Fé a Quem a sua mãe extremosa dirigia preces, tenha descontado estes seus pecados no rol das benfeitorias que as gerações actuais lhe atribuem e que, contas feitas, descanse em Paz!
E, para terminar,  uma última consideração, a riquesa dos azeites de Tomar que empurrou caravelas pelo mundo fora, foi sempre riquesa amaldiçoada para os pobres. Desde os Frades, que a monopolizaram, até àqueles que os estudaram e enlevaram, confessos amantes da liberdade, como Vieira Guimarães, sempre aquela riquesa foi produzida à custa da servidão e da miséria. (MFM)




(1) in preâmbulo, pags.10 e 11, do Catálogo da Exposição Concelhia Industrial e Agrícola, da sua autoria. Exposição levada a efeito por ocasião do sétimo centenário da morte de Gualdim Pais-1895.


Fotografias retiradas de Ilustração Portuguesa

«Si hortum in biblioteca habes, deerit nihil»