3 de fevereiro de 2021

Memórias - A Menina Maria do Céu

 

A Menina Maria do Céu



O meu pai, homem de fé, era, apesar ou por causa disso e entre outras coisas, um grandíssimo anti-clerical.
Mas, não era porque fazia mal ao espírito ouvir patranhas de padres, que eu não deixava de possuir uma fé inocente, de saber o sinal da cruz, encomendar-me, ao deitar, ao meu anjo da guarda, rezar a Avé Maria e de conhecer minimamente a liturgia da igreja, ir à missa fazia parte da socialização da minha família,
Mas quando, por algum tempo, o  pater familias mudou de titular, o caso também mudou de figura.
A minha ignorância sobre as bases do catolicismo fazia com que, aos olhos do meu avô, eu fosse considerada pouco menos que uma selvagem! Apenas o baptismo me salvava de ser uma verdadeira pagã.
Antes fosse ceguinha, burra, ignorante das letras, mas desconhecer a Palavra do Senhor, não poder exercer o sagrado sacramento da Eucaristia?
Estávamos em Outubro, já atrasados, a catequese já começara em Sta Margarida. Apressadamente o meu avô tratou, ou teria mandado a minha avó tratar que era a mesmíssima coisa (do ponto de vista logístico que, quanto à Fé, tenho as minhas dúvidas - afinal era do lado dela a raíz jacobina de meu pai) de arranjar empenhos para que, do modo mais rápido, eu passasse a comportar-me como uma verdadeira filha de Deus.
E aqui entra a C. professora primária e catequista, conhecida da família, que ficou encarregada de resolver a minha situação anómala, de forma a, não só eu ser admitida já fora do prazo regulamentar, como poder fazer a primeira comunhão, no final do ano. A primeira condição pareceu pacifica, mas a outra fugia aos rigores do currículo da coisa, pois só se fazia a 1.ª Comunhão no final do 2.ºcatecismo. O estabelecido era um catecismo por ano, o 2.º era no segundo ano e não havia excepções, aos olhos de Deus não éramos todos iguais? Mas, fosse pela influência do meu avô ou persistência da C. chegou-se ao seguinte acordo: eu frequentaria os dois catecismos (porque tinha a sorte de serem dados pela mesma pessoa e, portanto, não serem simultâneos) e, no final do ano se veria (com muito franzir de nariz que pronunciava dúvida, o que, notei, irritou a minha avó), se eu estaria preparada para o Sagrado Sacramento.
E foi assim que, na companhia da C., lá fui, para ser apresentada e assistir à minha primeira aula da “doutrina” como dizíamos nós as crianças e o povo normal. Aprendi o caminho, saíamos de Porto da Lage, andávamos até às Sobreiras, atalhávamos no pinhal à direita, subindo um pouco, apareciam os Gaios e logo a capela.

Quando passei a ir sozinha, a meio das tardes de Domingo, às vezes não atalhava. Nas Sobreiras, quase ao pé do Paço da Comenda, havia um café e àquela hora, passava na televisão um programa infantil. Eu entrava e ficava um bocadinho a comportar-me como alguém da minha idade. Quantas vezes me assaltou a tentação de faltar e ficar, por uma vez, a fazer o que gostava! Mas o sentido do dever e a escolha do"caminho de pedras" que havia, um dia (estou à espera!) de me recompensar, faziam-me deixar o Franjinhas e o Saltitão e trepar a saber quem era Deus segundo o 1.º e 2.º catecismos




Não me lembro do meu primeiro dia de catequese. Lembro-me das aulas. Eram simples e, acho eu, alvo da minha mordacidade interior. Não admira. Com dez anos eu frequentava os dois primeiros catecismos, uma hora para cada um, destinados às crianças de seis e sete anos. Estavam eles entregues à menina Maria (das Dores?, do Carmo, de Jesus, do Céu?) inclino-me a que fosse do Céu, que era impropriamente chamada de menina pois era viúva, tinha até uma filha. Parece que o casamento terminara abruptamente com a morte do jovem marido numa tragédia qualquer poucos meses depois se ter realizado, e daí o hábito de menina nunca se ter perdido. Eu sabia que ela não gostava de mim. Acho agora que era daquelas pessoas que não gostam de ninguém, mas na altura eu não sabia dessas existências e a coisa deve ter-me intrigado. Os mestres geralmente prezavam-me, eu não os incomodava, portava-me bem, aprendia sem os cansar, não era inteligente bastante para confrontar-lhes o saber, tudo o que um professor pode querer.

Mas, neste caso, eu devia ser uma aluna incómoda, a culpa não era minha, as circunstâncias, escolhidas por ela ou por quem quer que fosse que decidira ser aquela a melhor forma de eu aprender, incorporando-me naquelas classes, não tendo em conta a minha idade ou o meu desenvolvimento mental, faziam que eu me apercebesse da fragilidade do método de ensino. Eu era mais velha e, como agora se diz, com uma vivencia muito maior do que aqueles pequenos de aldeia que tinham acabado de entrar na escola e não sabiam alguns, sequer, ler. Quando a menina Maria do Céu nos mandava olhar para as imagens coloridas eu, por desfastio, ia lendo o livro duas páginas à frente.
Nunca ela conseguia surpreender-me com o que nos contava. Eu já sabia e com mais rigor. Não que eu me pronunciasse, mas, então, quase como hoje, não conseguia disfarçar o enfado quando o sentia.
As matérias do 1° e 2° catecismos eram as mesmas, só que dadas com mais profundidade no 2°., e o método de avaliação consistia em saber as respostas às perguntas (iguais no 1° e 2°) estrategicamente colocadas no final de cada página, variando as respostas, suponho que mais elaboradas no 2.º.
Recordo-me que à pergunta – Quem é Deus? havia a resposta do 1.º e a resposta do 2.º. Como eu frequentava os dois, isto é, as duas aulas de seguida, sentada no mesmo banco, nem precisava de me movimentar, só giravam os colegas e mudava o livro, às vezes confundia-me.  Acontecia enganar-me e responder no 1° com as respostas do 2.° ao que ela me interrompia ríspida mas placidamente - Essa resposta não é daqui, é para mais tarde. E eu corrigia fazendo-lhe a vontade. No 2.° repreendia ela um rapazinho que não tendo estudado a lição respondia recorrendo a memória - Está mal, essa resposta era a do ano passado. Eu ia dando-me conta do ridículo de tudo aquilo e ela percebia.

Por fim, quis emendar a mão dispensando-me do 1.º catecismo com o pretexto de eu não perder duas horas, mas o meu avô não lho consentiu, eu não perdia nada, só ganhava, duas horas eram o dobro de uma, logo o dobro do conhecimento. E continuámos a aturar-nos uma à outra, ela, a minha arrogância calada, eu, a sua crueldade que me obrigava, para considerar a resposta certa, a repetir inúmeras vezes frases inteiras até terem, nunca o consegui, a entoação pretendida por ela.


E continuo a vê-la, magríssima e branca, com lábios sempre cerrados e tensos, de lenço e xaile pretos, a condizer com o resto da roupa, a elogiar os martírios da Santa Maria Goretti, em defesa da sua virtude. E a ajeitar o xaile com as nervosas mãos seráficas sobre o colo, quando nos explicava os motivos da dita defesa e, olhando de esguelha para mim, se embrulhava nas palavras enquanto eu, arregalada, lhe fazia que sim com a cabeça incentivando-a, enquanto a santa, de cima da cómoda da sacristia, compostinha com o seu ramo de lírios e olhos baixos, estou em querer que continha o riso ao ver a menina Maria do Céu explicar como ela tinha resistido a um rapaz que tentara "pecar com ela".

Mas, a despeito das nossas relações, considerou-me preparada e, no Verão, lá fui, acompanhada da família, à Igreja da Madalena tomar, pela primeira vez, o Senhor. O meu avô estava, com certeza, feliz. Por uma vez conseguira, não obstante ser no seu terreno, vencer o meu pai.(MFM)

2 comentários:

  1. Memórias realistas (neo) da crueza da metrópole rural daquela época, muito bem escritas com tinta de lágrimas escorrendo dos aparos a ranger.
    A autora vivera anos em Angola. O colonialismo português não era "racista" branco; transpunha para África o modo habitual de viver na metrópole.
    Qu'é dos leitores deste meu país estranho? Onde estão eles que não vêm comentar?

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  2. Duas breves crónicas, belamente escritas, que evocam o ambiente da minha e, por isso, muito me tocam.

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