1 de fevereiro de 2021

Memórias- A Teresa






A Teresa

A Teresa era minha colega na 4.ª classe. Era morena de olhos escuros e cabelo liso pouco farto e escorrido. Tudo o que eu desejaria para mim. A minha pele branca onde todos os dias despontava nova sarda, que encarniçava e enrugava a todo o momento devido ao sol, os olhos que eram obrigados a estar quase sempre semi-serrados por causa da luz, a minha trunfa selvagem que se magoava cada vez que o pente lhe entrava e obrigava a uma parafernália de ganchos e fitas para a domesticar, tudo isso, a pele, os olhos e o cabelo, me causavam tal incómodo e trabalho que me faziam cobiçar os da Teresa.


Mas o que eu invejava sobretudo na Teresa eram coisas que eu até poderia ter mas que me estavam interditas: os socos pretos de florezinhas e andar de burro.  

Lembro-me dela, pequena e magrinha, sentada de lado encima do seu burro, com os pés a dar a dar enfiados nos tamancos onde ressaltavam em cada um, em fundo preto, dois ou três ramos verdes donde rebentavam as respectivas florinhas numa paleta que ia do branco ao vermelho passando pelo amarelo e azul. Como eram bonitos os socos da Teresa. E como deveria ser bom ir, como ela, ao fim da tarde, desde o Paço até à fábrica, no burro equipado com seirões com pequenos barris lá dentro, buscar destilado para os porcos. Que vida aventurosa a da Teresa!

Mostrei-lhe a minha admiração, ela achou que eu estava a brincar, o que não compreendi. Comentei com uma rapariga que costumava trabalhar lá em casa que arregalou os olhos e mostrou tal estranheza que, logo ali, não agoirei nada de bom ao que se seguiria. E tinha razão. O meu comentário chegou aos ouvidos da minha avó e adveio a admoestação. Fiquei a saber que cometera vários pecados: cobiça (agravada pelo facto de ser aos bens de um pobre), ingratidão ao Senhor por não reconhecer quão ditosa era e não conhecer o meu lugar e dar-me ao respeito.

Que eu tinha sorte em ter sapatos para calçar e de não ter de trabalhar (afinal a Teresa preferiria andar com os pés quentinhos – eu não pensara nisso, que os socos não aqueciam - e aquilo que para mim seria uma aventura era para ela, talvez, uma triste obrigação) compreendi. Mas o não conhecer o meu lugar foi sempre o grande ponto de divergência com a minha avó enquanto vivi com ela.

Eu só soube o que eram preconceitos e descriminação (termos actuais) naquela aldeia nos finais dos anos sessenta. Antes, e depois também, honra seja feita aos meus pais, eu convivera com toda a sorte de gente, de tal forma que, mesmo na diferença de cor, como já disse, eu achava que quem estava em desvantagem era eu.

Naquele microcosmos, lugar onde mais ouvi: aos olhos de Deus somos todos iguais… respeitava-se o concerto social do tempo vigente, a bem do qual, visando manter a paz e a ordem estabelecida, se educavam as criancinhas desde pequeninas para que o reproduzissem para sempre.  Conseguiram?(MFM)


O rapaz no burro - Fyodor Bronnikov (1827–1902)

1 comentário:

  1. Memórias realistas (neo) da crueza da metrópole rural daquela época, muito bem escritas com tinta de lágrimas escorrendo a ranger dos aparos.

    ResponderEliminar