10 de junho de 2021

Camões e Esta Raça de Gente.

 






Hoje é o Dia de Camões, das comunidades e não sei que mais. Antigamente era o dia da raça. Acabou-se com isso por razões estudadas mas com o que não se acabou, e foi pena, foi com certa raça de gente. Que continua e de que maneira!
Um caso relacionado com o nosso vate, já que hoje é o seu dia:
Um exemplar desta raça de gente  diz: «Nunca li "Os Lusíadas". Não glorifico e não acredito na epopeia portuguesa». A gente lê isto e identifica-se (acho que se diz assim) logo com o personagem, é claro que não se esperava que lesse, se para quem sabe ler e consegue pensar,  a dita obra já não é fácil, fará para ... . Adiante. Passemos à segunda asserção proferida. Que mais havia o rapaz de apregoar para vender o que quer que seja que põe no mercado? 
Eu, a dizer a verdade, ando pouco a par com as cantorias produzidas hoje em dia neste nosso país de rouxinóis mas sei que há, pelo menos, duas qualidades das ditas. Aquela que a gente, se não se acautela e sintoniza qualquer dos canais generalistas ao domingo à tarde, ouve, mesmo surda como eu, música que é sempre acompanhada por umas meninas cuja função não parece ser, à primeira vista, cantar, e que põe todos os presentes, parvamente, digo eu, a rodopiarem doidamente,  mas que os faz feliz, dizem eles. Que assim seja. 
E há a outra música, séria e preocupada, com quê não sei, mas eu também sei muito pouca coisa, que aparece nos “jornais de referência”, na RTP2 e no Cabo, sempre com um “discurso” explicativo da obra criada, que, invariavelmente, pretende … tem como objectivo …constrói ou desconstrói, agrega sempre quem deve agregar, denuncia quem deve denunciar, e por aí fora.
Ora, nem precisava de o dizer, o exemplar em presença toca esta última música. E está, evidentemente, a cavalgar a onda do momento – denigre a “epopeia portuguesa” até ao limite de não acreditar nela, como se fosse uma questão de fé (ok, há pessoas que não acreditam que o Homem foi à Lua, está bem acompanhado). Curiosamente, diz ele seguir as pisadas de quem, há quarenta anos, defendia o contrário do que ele defende (?), mas aí a criatura não consegue chegar. “Por este rio acima” de Fausto (que hoje em dia já tem nome completo como os outros mortais), foi feito numa época em que a luta de classes ainda imperava e, portanto, o povo, mesmo o “povo português” ainda era digno e motivador de admiração, não era colonizador, muito menos esclavagista. Então já se contestavam os heróis individuais (que pertenciam à nobreza e burguesia, exploradores do povo) mas o povo não, o povo, personificado por Fernão Mendes Pinto e pelas figuras populares de Gil Vicente, era o herói das descobertas (que também não se crucificavam), que se viam, tal como Camões, nos Lusíadas, as apresenta, como a gesta de um povo. Mas, isso, claro, só se sabe lendo. Esta raça de gente não precisa de ler nem conhecer o que outros, antes deles, fizeram. Cria, escreve, pinta, compõe, de raiz. Porque o mundo nasceu no mesmo dia que eles.

Mas tudo isto é fruta da época, esta moda vai passar, e desta raça de gente, vai, um dia destes emergir nova vaga que destronará a vigente, não necessariamente para melhor. Embora não se alcance que pior poderá ser, digo eu prosaicamente, e não me tenho por optimista. 

Mas, melhor que ninguém, o diz o poeta:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

                          Luís de Camões



2 de junho de 2021

La Chair Anglaise


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… Em Inglaterra os porcos engordam na ceva do arsénico. Que fibras de raça aquela! É que a carne dum bretão diverge muito da carnadura da restante Europa. O antropólogo Topinard observou que a mortandade nos hospitais ingleses, em seguimento às operações cirúrgicas, era muito menor que a dos hospitais franceses. O sábio Velpeau, consultado pela Academia de Medicina, respondeu que «la chair anglaise et la chair française n’etaient la même». E não dá a razão da diferença, porque a não sabia o grande biólogo. Eu, na observância do ditame do Espírito Santo, pela boca do Eclesiástico — «não escondas a tua sabedoria» —, elucidarei o sr. Velpeau. A razão, a científica é esta: emborcações de bebidas ácidas, e mormente de cerveja, combatem, como coadjuvantes do ácido fénico, a gangrena; ora, o inglês, abeberado de cerveja, é refractário à podridão dos hospitais. Como se vê, desta causa tão óbvia um antropólogo é capaz de espremer assunto para volumes recheados de coisas abstrusas sobre etnografia, climatologia, morfologia, mesologia, o diabo.

Além da cerveja, a fibrina do porco, saturado de arsénico, entretecida na fibrina do inglês seu compatriota, faz dele um Mitrídates para os sais de chumbo diluídos no vinho do Porto*.
O inglês não pode morrer por ingestão alcoólica. Se quer suicidar-se com instrumento líquido, tem de asfixiar-se, afogar-se no tonel como o lendário lord. Ele é imortal, absorvendo; e só pode morrer - absorvido. Estranho animal! E é senhor das águas e das melhores garrafeiras!
O destino, pela tuba sonorosa de Camões, disse ao inglês: Entre no reino d’água o rei do vinho. (Os Lusíadas, Canto VI)
Que litros de porto envenenado se calculam eficazes para degenerar um bretão até à dispepsia e às agonias da morte?

                                                               Camilo Castelo Branco, 1884

                                                                               Vinho do Porto, Processo de uma bestialidade inglesa 

                                                                   


* sais de chumbo diluídos no vinho do Porto – alusão irónica “a uma calúnia inventada por ingleses em 1849 [que defendia que este vinho era empeçonhado por acetato de chumbo e outros tóxicos anglicidas] na qual colaborou um certo barão Forrester”, conforme explica o autor.