Aquela casa solitária, no meio de olivais e com difíceis acessos,
nunca estava sozinha. Havia sempre os empregados, quem vinha buscar e trazer produtos,
fazer negócios com o avô, e as visitas.
As visitas, quer fossem as de média ou curta duração, como primas e amigas da avó e a Augusta que vinham para ficar pelo menos
uma semana, quer as que vinham por um dia ou até por momentos como a tia Maria,
eram habituais.
A tia Maria chegava a vir várias vezes por dia, muito diligente e prestável, lá vinha de sua casa, atravessava a ponte e a horta trazendo sempre alguma coisa ou disposta a ajudar em algo. A doença cardíaca da avó era o pretexto, embora a ajuda fosse recebida pela beneficiária não sem alguma impaciência. Para a tia a ajuda não se oferecia, impunha-se. Mas gostava de mim, era meiga e atenciosa, muito atenta ao meu bem-estar. Só uma vez nos zangámos. Sabendo, num domingo qualquer, que, por uma alteração inesperada eu, para não ficar sem missa, teria que ir com o avô a pé a Cem Soldos, ela achou mal, não concordou e impôs-se “a menina não pode fazer esse caminho todo a pé, não está habituada”, enfrentou o avô, aparelhou a sua mula à carroça e lá fomos.
Aguarela de Roque Gameiro |
Uma constante na frequência diária de gente lá em casa, eram os jornaleiros, aqueles que chegavam de manhã, habituais nas tarefas de todos os dias que trabalhavam juntamente com o avô, iam com ele para as fazendas ou ficavam por ali, entre os quais se incluíam mulheres que, sendo preciso, também ajudavam em tarefas domésticas. Faziam limpeza, amassavam o pão e lavavam a roupa. Lavavam-na no tanque ou na ribeira em certas épocas. Uma destas era uma prima em segundo grau do avô, filha de um primo direito. Vinha sempre com uma filha adolescente para a ajudar. Era uma pessoa que caía ou batia frequentemente em coisas, das escadas ou no que fosse, pois a cara andava sempre esmurrada, às vezes mesmo ferida. Eu gostava muito de estar com elas, de encher de sabão os lenços, ou outras pequenas peças de roupa, previamente molhados e esticados, esfregá-los com determinação na pedra e, depois, enxaguar na água limpa, a avó deixava, elas eram educadas, falavam bem, não diziam palavrões. Diferente era quando a lavagem tinha lugar na ribeira, ao fundo da horta, nas brancas pedras seculares. Aí chegavam a juntar-se muitas mulheres, provenientes de várias casas da família e de quem pedisse para ir ali lavar, o sitio era propício, a água limpa, e o espaço contíguo de erva baixa indicado para pôr a roupa a corar. Então a conversa era outra. Elas falavam livremente entre si e pouco se importavam com uma miúda que andava por ali, a passear de pés dentro de água, a jusante das lavagens, para não a sujar. Contavam das suas alegrias e tristezas, lamentavam as alheias como ainda pior que as suas. Foi destas conversas que eu percebi que a prima não devia a sua cara esmurraçada a quedas nem a encontrões, ela, como outras cujos episódios de vida eram ali contados, era vítima de uma violência que eu não imaginava existir.
Madonna, Munck |
Dentro do meu assombro com esta novidade brutal juntava-se o estilhaçar da imagem que eu tinha de maridos e pais, dos que eu conhecia realmente e da dos livros, e a profunda pena por aquelas mulheres e crianças espancadas pelo poder caprichoso de quem tinha força, o que me magoava e não me deixou sossegar por muito tempo. Tanto mais que não havia ninguém para me acalmar, como noutros casos, não era suposto eu conhecer nada disto, eu sabia que "não eram coisas para a minha idade", não havia, portanto, razão para conversa. Apenas na escola, onde me fui apercebendo da banalidade do fenómeno. Os pais assíduos das tabernas, bêbados ao entrar em casa noite fora pondo toda a família em sobressalto, espancando a mãe e os filhos que intervinham, por vezes a fuga para casa de vizinhos e parentes, eram a triste rotina de muitos dos da minha idade.