6 de março de 2021

A Quinta da Belida

 



Quando vamos de Porto da Lage para o Paço da Comenda, por aquela que agora é pomposa e oficialmente chamada de Estrada Real, deparamo-nos, imediatamente antes da pronunciada curva à esquerda, com uma pequena casa à beira da estrada, casa antiga mas com aparência muito alegre, recentemente restaurada com gosto, que exibe num canto da fachada uma lápide onde se lê “Quinta da Belida”.

Por que razão lá está a lápide não sei, como também não sei se antes dos arranjos ocorridos na velha casa, que conheci em ruínas, já lá estaria. Aquela não é uma casa de quinta nem por ali existe quinta alguma. Mas o nome não é de todo descabido se atendermos à memória do lugar. Talvez os donos tenham querido, denominando-a assim, fazer perdurar na sua vivenda um nome que foi referência durante séculos por estas bandas, ainda ecoa na memória dos locais e cuja localização se situava por ali, por onde fica aquela casinha.

A quinta da Belida, se não oficialmente mas de certeza oficiosamente existiu como entidade  até ao inicio do sec.XX, pelo que não é nenhum impossível que os mais velhos a conheçam, pelo menos de ouvir falar. Há tempos, perguntei nos Gaios a uma habitante daí, que teria no máximo setenta anos, onde ficaria a Belida, ela levou-me até à berma da estrada que vai para Porto Mendo fez-me olhar para o vale que se estendia à nossa frente e, apontando cabeços, árvores e canaviais foi-me mostrando os limites e os campos que ficavam dentro da Belida. Noutra ocasião, um conhecido meu no Paço apresentou-me três mulheres sentadas numa das mesas da Associação local, uma delas a sua, três irmãs que, segundo me disse, “eram da quinta”, isto é, descendiam dos últimos habitantes da quinta da Belida. Estes dois casos são, quanto a mim, dois exemplos de como ela perdura ainda no quotidiano de muitos.

Mas se se sabe ainda identificar mais ou menos o seu território e alguns dos descendentes dos últimos proprietários, são vagos e incertos os elementos conhecidos sobre a  história da Belida. Conto, de seguida, o que consegui descobrir.

É conhecido que a Ordem dos Templários, como recompensa por ter ajudado o nosso primeiro rei na reconquista, deste recebera extensos domínios situados em torno da «linha do Tejo», com objetivo de defender e povoar aquele território, o que não era novo, pois já antes, em 1128, D. Teresa tinha doado à Ordem o Castelo de Soure e seus termos, procurando repovoar a região e defendê-la das investidas almorávidas.
O papel desta ordem, nos finais do sec. XII e durante o século XIII, foi, mais do que militar, o de colonizador, fundando e dinamizando centros rurais e urbanos, como é o caso de Tomar e seu termo, local onde, nestes dois séculos angariou considerável riqueza patrimonial, proveniente de compras e de doações particulares, cuja concentração permitiu a constituição de um monopólio no que se refere à administração e exploração de bens imóveis, o que lhe conferiu poder e prestígio com visíveis repercussões no futuro. O estabelececimento de Comendas foi uma forma de a Ordem incentivar o povoamento e fixação de povoações (que seriam de anteriores comunidades locais de origem moçárabe ou de colonos provenientes de fora?), em 1321 só para a região de Tomar são estabelecidas as Comendas de Pias, Prado, Beselga, Paul e Tomar. Nelas eram cultivados, pelos seus foreiros, diferentes produtos como vinha, oliveira, legumes, linho, cereal, e criados cavalos, vacas, porcos e galinhas que seriam, para além de consumo próprio, escoados para venda na vila.


Quando, em 1319, a Ordem de Cristo sucede à dos Templários herda as suas propriedades e privilégios, continuando a tirar proventos das comendas anteriores e instituíndo outras. Porém, para o que nos interessa, fiquemo-nos pela da Beselga. O topónimo Beselga (cuja origem moçárabe deriva de basílica, igreja cristã), que além da designação do curso de água que ainda tem este nome e desagua no rio Nabão e do que alguns dizem ter sido uma povoação romana, surge pela primeira vez dentro da nossa nacionalidade, na carta de doação de D. Afonso Henriques do Castelo de Ceras aos Templários em 1159, quando estabelece como limite geográfico do território doado, a estrada entre Santarém e Coimbra. Sendo que esta estrada coincide com aquela que ainda existe (ou existia antes dos viadutos que substituíram as passagens de nível nos nossos dias) proveniente de Paialvo, passando por Porto da Lage e S.Silvestre, direita a Chão de Maçãs, não é de estranhar que o limite inferior da dita Comenda da Beselga fosse sensivelmente por aí, estendendo-se depois pelo Casal dos Galegos, Paço da Comenda (que seria o lugar da casa do comendador), Além da Ribeira e depois, aproximadamente, por aquela que foi a antiga freguesia da Beselga.


É na Comenda da Beselga que em 1504 Rodrigo Anes Velido (Velido virá de bellido que significará bello) e os dois filhos, João e Diogo, amanham alguns dos Casais de que já falámos aqui. Naquelas terras cultivam cevada e trigo, colhem uvas e fazem vinho, apanham as azeitonas que são obrigados a levar aos lagares dos Freires de Cristo para transformar em azeite, apesar dos do termo de Torres Novas ficarem mais perto, e criam gado. No Natal, e no Verão quando o trigo está na eira, pagam o foro ao Comendador, que varia na quantidade de alqueires de trigo, de azeite, de carradas de lenha e de número de galinhas, conforme a dimensão e a produtividade de cada Casal.


O cognome de Rodrigo fornece-nos aquele que poderá ser o primeiro indício do que virá a chamar-se o Casal da Velida ou Belida. Não conhecemos a sua descendência directa (embora existam hipóteses já formuladas) mas o mais provável é que a tenha tido, para lá dos filhos que já falámos, e que ela se tenha distribuído pelos Casais que se vão formando pelo século XVI adiante dentro da Comenda da Beselga e nas límitrofes, Paúl, Sonegado, Pussos e Póvoa.


Destes Casais, em1570 tomamos conhecimento do Casal de Catarina Jorge, belida de alcunha, viúva de Álvaro Anes, gente que mostra algum desafogo económico pois dentro dos seus bens consta também, pelo menos um escravo. Se Catarina era descendente directa de Rodrigo, se o belida lhe chegaria por parte do marido ou se se trata apenas de grande coincidência não o sabemos, fica o registo. Sabemos sim, que naquele ano casa ela a sua filha Maria Jorge com um Jorge Fernandes*, cuja descendência é conhecida.


Um neto de Catarina, proveniente desse casamento, de nome Jorge Fernandes como o pai, é indicado como vivendo, na década de noventa desse século, com sua mulher Leonor de Sousa, na comenda do Saldanha (por esta época o comendador era frei António Saldanha), ou na ribeira ou ainda no seu casal na ribeira. Por fim, em 1609, Leonor de Sousa é referida como morando no Casal da Velida. O Casal da Velida assume aqui pela primeira vez, o nome pelo qual vai ser conhecido mais alguns séculos, continuando a pertencer à mesma família.


Jorge Fernandes e Leonor de Sousa tiveram, pelo menos, cinco filhos, que seriam pequenos quando o pai morre no final do sec. XVI. Ela volta a casar com Domingos Dias também viúvo, continuando os dois a viver no dito Casal com os respectivos filhos. Mas, ou porque os restantes tivessem morrido ou porque herdariam outros bens, apenas se tem notícia posterior de dois filhos dos primeiros, Maria de Sousa casada com Inácio Escudeiro em 1619, com vários filhos nascidos no Casal da Velida entre 1621 e 1639 e cujo futuro de todos se desconhece, a menos que outra Leonor de Sousa (casada com António Alvares que vive nos Gaios a partir de 1641 e aí tem vários filhos) seja sua filha, e de Diogo de Sousa (a partir daqui o sobrenome Fernandes ou Jorge desaparece da família sendo substituído por Sousa, talvez mais prestigioso) que se apresenta como sucessor do pai ao foro do Casal da Belida ainda que prescindindo dele a favor de seu filho Diogo Alvares de Sousa.


Este último, em meados do sec. XVII, requer ao Comendador da Beselga, então o Conde de Soure, que lhe conceda o foro do Casal da Velida o qual, embora não tendo dele título algum por escrito afirma ter estado na posse dos seus antepassados, sendo a última vida a de seu avô Jorge Fernandes. Acrescenta que o sucessor directo do foro deveria ser o seu pai, Diogo de Sousa, mas que, tanto ele como a sua mãe, Margarida Vieira, fizeram um termo de desistência e renúncia a favor dele. E, por ocasião da assinatura do contrato, lá estão eles a declará-lo de viva voz, dizendo a mãe, que não assina por não saber escrever, que o faz da melhor vontade pois não tem outro filho e deste até já tem um neto, Manuel.


Disto se retira, ligando com o que atrás dissemos, que Jorge Fernandes o novo, antes dele Jorge Fernandes pai (por via de sua mulher Maria Jorge) e, ainda antes, Catarina Jorge por si ou por seu marido, teriam sido as “vidas” anteriores foreiras do agora chamado Casal de Belida, geração que porventura se poderá estender lá para trás até Rodrigo Anes Velido, por onde começámos.


No sentido de ser passada a renovação do foro solicitado, o Casal da Belida, é sujeito a um cadastro, o chamado tombo, no qual é mencionado terem sido colocados 32 marcos nos seus limites, os quais, depois de medidos, terão de perímetro 5310 varas (c.5,8Km) e que as suas terras estão prontas para semear pão (trigo) e amanhar vinhas, bem como possuem 160 pés de oliveiras “entre grandes e pequenas”, 69 pés de sobreiros e carvalhos e outras árvores de fruto nas quais se contam pereiras e figueiras.


Lá se situam também as casas de morada de Diogo de Sousa e seu filho Diogo Alvares de Sousa que, do que lemos, podemos, se soubermos, desenhar o seguinte: uma escada de pau com 9 degraus que dá acesso a uma varanda assoalhada de madeira coberta de telhado forrado de cortiça medindo 3 varas de comprimento por 2 varas de largura (cerca de 7,26 m2), por onde se entra para uma “casa assobradada com quatro águas”, que mede cinco por quatro varas (cerca de 24,2 m2) de telha forrada de madeira de pinho, junto à qual há outra “casa” com duas águas com telha forrada de cortiça e uma janela virada a poente, medindo também cinco por quatro varas. São estas casas (o que chamamos agora de divisões ou quartos) de sobrado, por se situarem  num piso superior debaixo do qual se situam as correspondentes “lojas” com as mesmas dimensões.


Para além destas casas de morada, o tombo enumera as seguintes : uma casa térrea de telha vã com um portal de pedraria tosca que mede cinco por três varas (cerca de 18,15 m2) com paredes de terra e barro, e uma porta, com uma loja de sal; uma casa térrea de uma água que serve de adega, mede quatro por quatro varas (cerca de 19,36 m2) e tem uma porta a nascente; dois palheiros cobertos de telha com paredes de terra e barro que medem cinco por três varas (cerca de 36,3 m2); uma casa ou lagar de fazer uvas com paredes de pedra e barro que mede cinco por duas varas (cerca de 12,1 m2) com porta e janela virada a nascente; um curral de ovelhas mais de meio coberto, que mede cinco por quatro varas (cerca de 24,2 m2).


Fica então Diogo Alvares de Sousa foreiro à Comenda da Beselga através do Casal da Belida, por três vidas, que se sucederão da seguinte forma: ele Diogo nomeará quem lhe sucederá ao morrer, o qual, por sua vez, fará o mesmo, não podendo, no entanto, serem nomeadas “pessoas proibidas em delito”. Morrendo a terceira vida, ficará o Casal devoluto, tendo a pessoa que nele habite, se quiser, de pedir a renovação do foro.


O foreiro terá a obrigação de lavrar e semear o casal, bem como de amanhar as vinhas, mandar plantar oliveiras e fazer as benfeitorias que puder, bem como, o mais importante, pagar o foro. Este fica estabelecido em 9,5 alqueires de trigo, 8 galinhas, um alqueire de “bollo” e 1/3 ou ¼ de todos os frutos, consoante a época. O pão (o trigo) será entregue na eira e as galinhas no Natal.


Os rendimentos da família de Diogo Alvares de Sousa, n. 1624, provenientes do cultivo deste Casal e eventualmente de outras terras, tinham-lhe permitido tornar-se bacharel em Cânones (por vezes também surge como licenciado) em Coimbra em 1650, o que o terá feito subir socialmente, embora não se tenha notícia que tenha exercido qualquer cargo relacionado com a sua formação académica. Será senhor da sua fazenda, isto é, viverá dos rendimentos da agricultura, não a trabalhando directamente como os seus antepassados tinham feito. O seu casamento com Inácia Correia, que terá durado muito pouco (quando o filho é muito pequeno já não se fala na mãe, terá morrido de parto?) será mais um degrau na sua ascensão social. Através dela, que fora familiar do Morgado da Beselga (ser-se familiar não significava ser-se parente de sangue ou afim, seria alguém que viveria em casa do morgado, sobre a sua protecção) consegue a aproximação à nobreza, descolando mais do meio onde nascera, herdando também, por via da mulher, a quinta da Mata, onde passa a viver deixando a Belida ao filho. Vive limpa e abastadamente, apresentando-se com vestuário e habitação apresentável nos parâmetros exigidos a um homem honrado, tendo criados e cavalo. Morre relativamente tarde (é vivo em 1690) já com netos do seu único filho, sem voltar a casar mas não livre de relações sentimentais, como mostra, em 1 de Outubro de 1673, uma rapariga solteira do casal do Bregil quando, ao baptizar o filho, que morre pouco depois, dá como pai o Licenciado Diogo Alvares de Sousa.


O seu filho Manuel Pereira de Sousa que casa, muito novo, em Assentiz, com Grácia Maria parente da casa de Vargos, não segue as pisadas do pai indo para Coimbra, prefere criar a sua numerosa família com quem parece viver feliz e alegremente entre as freguesias da Madalena e Assentiz, sendo padrinho de inúmeros casamentos e baptizados, ocupação em que, logo que crescem, os filhos o seguem. Deve ser um homem simples, da terra, que gosta de se dar com os seus conterrâneos e protegê-los, já que os seus meios lhe permitem. Quando morre em 1731 é, como outros parentes,  enterrado na Igreja de Sta Maria Madalena em sepultura dos seus antepassados (na cova do altar-mor).


No início do sec. XVIII deixa de ser feita alusão, nos assentos paroquiais da Madalena, à Belida como Casal passando a ser referirida como Quinta. Manuel Pereira de Sousa, ele, a mulher e os filhos, passam a ser moradores na Quinta da Billida ou na Quinta de Porto da Lage (neste caso por esta localidade já ter algum desenvolvimento e ser a mais próxima da quinta). A mudança da denominação de Casal para Quinta terá a ver com o desejo de elevação de estatuto social dos donos. A denominação de “quintas” que tem a sua origem nas casas de campo dos citadinos nobres ou, pelo menos, dos endinheirados, que as visitam e utilizam como recreio em determinadas épocas do ano, depressa é apropriada por aqueles que nelas vivem e as usam como única habitação e como fonte de rendimento, por essa designação os associar a gente com estatuto social superior.


E chegamos à terceira vida a quem foi concedido o foral da Belida, outro Manuel Pereira de Sousa, nascido em 1681, filho do anterior. Este não será um académico como o avô nem um homem de família como o pai, mas um ambicioso empreendedor que compra casas na vila de Tomar, e terrenos fora do domínio dos freires de Cristo, de forma a adquirir propriedades livres. Pretende, também, confirmar o prestígio que a sua família goza localmente com um estatuto que, não o fazendo elevar-se à nobreza, lhe viria a conferir poder e autoridade. Candidata-se a Familiar do Santo Ofício obtendo a respectiva carta em 1713, a qual atesta, como tinha de ser, a sua limpeza de sangue e a dos seus ascendentes, a inquirição a que se procede nas freguesias de Assentiz e Madalena, de onde provêm os seus antepassados, confirma sem sombras de dúvida que se tratou sempre de cristãos. Não há nele réstia de sangue judeu, mouro ou mulato. É um Cristão Velho cuja família, tanto quanto se lembram as testemunhas, nunca botou a mão no trabalho, não eram mecânicos viveram à lei da nobreza com carruagens e criados. Está conseguido o estatuto pretendido. Só mais tarde, já com 46 anos, se casa com Maria Teresa sua parente em 2º e 3º grau de consanguinidade, nascida no Alvorão, Assentiz (a noiva, uma vez que ele já é Familiar do Santo Ofício, é também objecto de inquirição em 1727, de forma a ser autorizada a com ele contrair matrimónio). Ser Familiar do Santo Ofício, para além de gozar do privilégio de ser julgado por instâncias próprias da Inquisição (o que não era de somenos num tempo em que qualquer um estava sujeito a ser denunciado por insignificâncias) passava por estar sempre ao serviço do santo ofício, controlar o cumprimento de penitências a que fossem condenados os seus conterrâneos, por vigiar e denunciar situações que estivessem sob a alçada do Tribunal da Inquisição, executar prisões e outras diligências que lhes fossem ordenadas e participar em autos de fé envergando o seu hábito. Se Manuel Pereira de Sousa usou ou não, e de que forma, estes poderes, na sua longa vida que termina sem incómodos em princípios de Dezembro de 1760, não o sabemos.


Ainda nesse mesmo mês de Dezembro, o filho do falecido, outro Manuel Pereira de Sousa, também ele Familiar do Santo Ofício, faz um requerimento ao comendador da Beselga a solicitar renovação do prazo, uma vez que o Casal da Belida se encontra vago, sem foreiro (o seu pai era a terceira vida). Tal é-lhe concedido em Junho de 1761.


Mais de cem anos após o foral anterior, a moradia dos Sousa da Belida faz a sua diferença, já não é a casa de um lavrador medieval. A sua simplicidade que assentava e tinha como fins a protecção e a funcionalidade, deu lugar ao conforto, quiçá ao luxo. Tem agora uma fachada de mais de quinze metros de onde se destaca a velha varanda em madeira de castanho forrada de cortiça, agora ladrilhada de tijolo virada para o vendaval, de onde desce uma escada de pedra lavrada para um pátio com laranjeiras e limoeiros. Da varanda entra-se para uma casa sobradada quadrada, que serve de sala, com cerca de 254 m2, de madeiramento de castanho forrada de pinho, com a largura da frontaria da casa, com uma porta e uma janela que dão para a varanda. Seguem-se quatro casas de madeiramento de castanho forradas de cortiça com aproximadamente 24,2m2 de área cada uma, com janelas em redor da casa, e duas delas com portas para a rua, uma outra casa de 6m2, mais outra que serve de cozinha com aproximadamente 10 m2. Por baixo existem lojas com a mesma dimensão do andar superior.
Cá fora deparam-se a adega, os palheiros, o lagar e o curral do gado, redondo, que mede 49 varas de perímetro.


Nas terras do Casal crescem 350 sobreiros e 209 outras árvores de que fazem parte figueiras, pereiras e ameixoeiras, para não falar das vinhas e oliveiras.
Na década de que falamos (60 de XVIII) este "prazo ou quinta" paga de décima sobre os seus prédios rústicos 3$540 réis e sobre os urbanos 765 réis. A décima foi um imposto criado em 1641 por D.João IV no sentido de prover às necessidades da defesa do reino, incidindo sobre 10% de todas as rendas [rendimentos], «assim de bens de raiz, juros e tenças, como de ordenados de ofícios (…) sem excepção alguma, nem privilégio».

Até aos anos noventa do sec. XVIII os Pereira de Sousa, Manuel e a irmã Ana Maria Teresa, entretanto casada com o Doutor Simão José de Faria Pereira, da Quinta do Carneiro, da Colegiada de Ourém, continuam a viver na Quinta da Belida até o primeiro se mudar para Vargos. Herda então aquela casa por falecimento sem descendência dos anteriores proprietários, os seus primos o Capitão Manuel Lopes Moreira e sua mulher Maria Madalena da Silva.


Será a partir desta circunstância que tem início o mito de que a Quinta da Belida pertenceria desde sempre à casa de Vargos. Como vimos, foi precisamente o contrário, foram os foreiros da Belida que, se quisermos, se apossaram de Vargos. Este último Manuel Pereira de Sousa morrendo sem filhos, terá como herdeiros a sua irmã e posteriormente os seus sobrinhos, senão residentes pelo menos sempre ligados a Vargos. Assim, na memória mais recente seria esta família a possuidora de sempre da Belida.


Nos primeiros anos do sec. XIX, com excepção de pouco mais de uma década, até aproximadamente 1820, em que é habitada por um casal que aparenta ter fumos de alta burguesia, Luís Alves de Sousa Lima e Ana Matildes Pereira, parentes dos Preto de Magalhães da Quinta do Milheiro em Ourém, na Belida vivem apenas trabalhadores. Constituem exemplo destes, José Rodrigues e Maria Joaquina Narciso que vêm de Vargos recém casados e aqui dão início a uma dinastia. Esta, que ainda hoje perdura, é depois continuada no Paço da Comenda, através também do segundo casamento de José Rodrigues com uma prima da primeira mulher, oportunamente chamada de Joaquina Maria evitando assim enganos, assente nos seus treze filhos.


Em 1834, com a nacionalização dos bens das ordens religiosas, sendo os da ordem de Cristo, como todos os outros, secularizados e incorporados na fazenda nacional, o que terá acontecido à Belida? Provavelmente os foreiros, na altura os proprietários da quinta de Vargos, tê-la-ão comprado em conta. Tudo foi vendido ao desbarato, a dívida pública era colossal, havia que, pelo menos, arranjar dinheiro para pagar os juros. Como exemplo, lembremo-nos da mais rica das herdades dos freires de Cristo, a famosa Quinta da Cardiga (tão extensa e rica que D.João III autorizou a alteração do percurso do Tejo para que este passasse a banhá-la), que foi comprada por "mil contos", enquanto em 2017, só a sua parte urbana assente em 4,2 hectares, dizem os jornais, estava à venda por dez milhões de euros.É provável que os de Vargos também tenham beneficiado do negócio da venda dos bens da Ordem, à semelhança daquele que veio a ser 1.º ministro de Portugal em 1842 e feito Conde de Tomar, que adquiriu grande parte do edificado do Convento de Cristo mais muitas das terras que o rodeavam.

Trinta anos depois, ocorre o início do último estertor da longa vida do “Casal da Velida” que volta às suas origens de casa de lavoura cultivada directamente por quem a habita. Será ele, talvez um provável descendente de quem a amanhou há 400 anos, Manuel de Sousa Rosa proveniente de Assentiz, que a arrenda, lá passa a viver com a família e a compra em 1880. Mas os tempos são outros, Manuel de Sousa Rosa enriquece, mas faltou-lhe o golpe de asa, a ambição ou a arte de ver que era tempo de mudar, como fez, por exemplo, o seu contemporâneo e compadre Manuel Mendes Godinho. Permaneceu um homem do outro tempo, e assim morreu. Tal como a Belida que em 1920 é abandonada, quando os últimos membros da família que ainda a habitavam, uma filha e um neto, a deixam. Esse neto será a lembrança viva da Belida, conhecido enquanto viveu como o António da quinta. (MFM)

* Estas asserções têm origem em assentos paroquiais que me foram dados a conhecer por  Edmundo Vieira Simões, a quem agradeço.