19 de fevereiro de 2021

Memórias* - A Lança em África


A Lança em África

 

Quando fomos fazer o exame da 4.ª classe a Tomar, à escola da Várzea Grande, a minha turma encontrava-se muito desamparada, a professora estava doente há algum tempo e não viera. Estávamos para ali sozinhas, cada uma com as suas famílias, é certo, mas sem a nossa galinha a unir-nos, a nossa professora, como a dos outros a dar-nos as instruções finais.
 Nas últimas semanas antes do exame, nós, as da 4.ª classe, íamos mesmo a casa dela ter aulas, sentávamo-nos na sala de jantar no chão, enquanto ela estava num cadeirão de braços com uma manta nas pernas (acho que esta imagem só pode ser fantasia minha- cobertor no Verão com as temperaturas daqueles sitios??). 


Penso que a culpada daquele esforço da professora e das aulas extras das minhas colegas era eu! Como além daquele exame, eu teria que fazer mais dois, para os quais eu tivera que arranjar mais uns livros de exercícios, todas elas, por solidariedade forçada, foram arrastadas para aquelas divisões de orações e problemas de capacidade dificílimos que não lhes serviriam de nada pois o seu caminho escolar acabava ali. Mas elas não se queixavam, sabiam tanto ou mais que eu, gostavam de aprender e não teriam que vir a provar nada, como eu. O que se calhar lhes tornava aquela tarefa  mais leve.

E lá estávamos todos nós, em Tomar, à espera de exame, afiambrados nos fatos novos, os rapazes de fatinho, as meninas de vestidinho a estrear.

Depois de entrarmos na sala que nos estava destinada, grande sala que partilhávamos com outras meninas provenientes de outras aldeias, e de nos sentarmos após cantarmos o hino, uma das professoras presentes, a imagem que guardo era que seriam imensas professoras, perguntou-nos se trazíamos cantigas e quem queria começar. Um grupo de outra escola arrancou logo com uma cantiga infantil. 
O meu grupo entreolhou-se, para nós aquilo era uma novidade, não estávamos prevenidas, não trazíamos nada preparado. E, entretanto, todos as outras escolas representadas na sala, iam cantando - debaixo da ponte nascem violetas ao comprido…, foi na loja do mestre André…, a célebre Procissão, etc. estava a chegar a nossa vez. Ora nós tínhamos o nosso reportório, que cantávamos no recreio lá na escola, dele até constavam algumas das já cantadas, não seria por não termos ensaiado que nos íamos negar. E, enquanto as outras cantavam, decidimos. 


E foi assim que aquelas vetustas e institucionais paredes de uma sala de um respeitável estabelecimento de ensino português, de onde pendiam a Cruz de Nosso Senhor e o retrato de Sua Excelência o Sr. Contra-Almirante Américo Thomás, aquelas paredes, dizia, ouviram, pela primeira vez, e única quero crer, o maior e mais pungente dramalhão cantado na época pelos ceguinhos nas feiras, saído com toda a garra e circunstância de dentro de oito gargantas infantis empenhadíssimas em deixar bem vista a sua escola mãe. Consistia o libretto na trágica história de uma criancinha que chorava a sua amarga orfandade à beira da campa térrea da mãe. Nada mais triste, nada mais pesaroso, nada que partisse mais os corações do que aquela dolente área, cantada com toda a alegria e entusiasmo por oito rapariguinhas de aldeia! Juntou-se gente. Vieram professores de outras salas ouvir-nos. Um sucesso.


Mas, afinal, não fora bem assim, apercebemo-nos depois. A presença da nossa professora tinha-nos feito mesmo falta! Disse-nos ela, quando soube, que não deveriamos ter cantado, não éramos obrigadas, só cantava quem queria! A nossa cantoria não parecera própria (hoje interrogo-me se isso se lhe trouxe alguma consequência profissional) iamos lá nós perceber porquê. Então não tínhamos feito bem, aquilo não era um exame, não tínhamos todos de estar igualmente preparados e a escola não tinha que estar representada em todos os aspectos? Comentámos entre nós indignadas, certas do nosso valor e da injustiça de que éramos vítimas. E que não se atrevessem a convencer-nos do contrário. A mim pelo menos, até hoje, ainda ninguém se atreveu!

Depois, eu, a única da classe, fui fazer exame de admissão à escola técnica e ao liceu.

O meu avô comentava estes meus feitos, a toda a família e a quem o queria ouvir, como algo nunca visto, "uma lança em África", palavras dele. Eu tinha "saído vencedora", também segundo ele, “em quatro provas”, quatro. Às três escolares o meu avô João juntava, o que para ele não era de somenos, o meu exame de catecismo, de que francamente não me lembro, mas se ele o dizia! 

E, em Outubro, saí lá de casa, deixei Porto da Lage! (MFM)




*Termina hoje a publicação destas croniquetas escritas há muitos anos. Quando decidi publicá-las, uma vez que eram retalhos (eu não escrevo romances), achei por bem pô-las todas sob um mesmo "chapéu", sob um nome que as contemplasse e unisse e desse ideia do que se tratava. E assim, procurando afanosamente por entre as mais subtis e inspiradoras designações, chamei-lhes "Memórias"!!! Não arranjei melhor nem mais imaginativo, valha-me Deus, até na nostalgia sou pragmática e prosaica!
Já as publicações iam a meio quando me lembrei que também há alguns anos, mas mais recentes, alguém me disse que a memória que tinha de mim era de uma miúda atrás das grades do portão dos Olivais; ora aqui estava um título, que à parte ser roubado, teria sido, para além de exacto, belo e apelativo! Já não vou a tempo de o alterar, mas pegando nessa imagem, peço aos leitores cuja paciência os obrigou a chegar a este maçador e dispensável  pé de página que, se por acaso não tiverem nada mais para fazer e lhes der para lembrar ou reler estas "Memórias", o façam tendo em mente uma criança 
guardada e espantada a olhar de boca aberta para tudo o que era velho como o mundo. Agradeço em nome dela.(MFM)

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