18 de fevereiro de 2021

Memórias - A Tagarela

 

                                                                               A Tagarela


Era muito animada aquela estrada. Passava e passava-se, sempre, muita gente e muita coisa  por ali. Automóveis, era raro, a estrada era de terra, com fundas poças no Inverno e muito pó no Verão, mas os tractores já eram comuns por lá e as carroças e bicicletas então, era um virote, já para não falar de gente a pé a caminho dos seus trabalhos no campo. Eu costumava imaginar o que haveria lá para o fundo, da estrada, onde eu nunca fora, que arrastaria tanta gente. No Verão, quando o milho e o tomate cresciam, ouviam-se, mal rompia o dia, os motores de rega, sinal da modernidade, ou o chiar das noras puxadas por mulas ou burros, a providenciarem a água que os ajudaria a suportar o calor infernal da tarde. Naquela várzea ao longo da ribeira, as pequenas propriedades, as fazendas, sucediam-se em fatias, paralelas umas às outras, cada uma com o seu poço, algumas com grandes tanques, outras nem tanto, mas todas verdejantes, todas prósperas, com horta, milho e pomar. Isto de ambos os lados da estrada, embora do lado direito, ao longo da ribeira, as hortas predominassem, Do outro, as vinhas estendiam-se, à medida que o vale acabava para a esquerda, para a encosta, e entremeavam com os campos de oliveiras e figueiras, semeados de cereal seco que se colheria no pico da estação.

Ao fim do dia, eu punha-me com a cabeça enfiada nas grades do portão ou ao cimo das escadas, com a tia Alice, a minha madrinha, quando ela estava connosco, a ver a retirada do campo. Vejo agora que este seria (será que já é?) um bom nome para um quadro naturalista, uma estrada à luz estreita quase de crepúsculo por onde rodam pessoas e animais alquebrados, a caminho do merecido descanso nocturno. Os boas tardes, até amanhã se Deus quiser, o vá com Deus ecoavam no silêncio do final do dia e faziam sombras no portão, na estrada, em todos os corpos, de tal forma que aqueles sons se corporizavam e existiam, ainda existem e me correm no sangue.
Umas figuras patuscas que passavam todos os dias pela estrada eram uns pais e uma filha, eles de meia idade, ela pelos vinte anos, muito alta, mais alta do que qualquer rapariga que eu já tivesse visto, esgalgada e ossuda. Iam os três sempre de manhã, de carroça, a cuidar do amanho da terra; ao cair da noite, à volta para casa, quando traziam muito carrego, vinham apeados, quanto muito arranjava-se um lugarzinho na carroça, no meio do feno, das hortaliças ou da lenha, para a mãe, a mais fraca de todos.


Mas, invariavelmente, a pé ou sentada na tábua da carroça, pela manhã, ou ao cair da noite, sempre, sempre, a rapariga ia a falar animadíssima. Estou a vê-la, a pé, a figura alta e magra de saia rodada de flores, e botas grossas, sempre a esbracejar e a atirar com as pernas, entusiasmadíssima com as próprias palavras. Chamávamos-lhe lá em casa a máquina falante.
Nunca percebi nada do que dizia, parece que ninguém percebia. 
A minha madrinha dizia que gabava a paciência dos pais por estarem constantemente a ouvi-la, eu achava que eles tinham muita sorte em tê-la, pois não era a vida deles animadíssima com uma filha daquelas?
Mas a madrinha também tinha pena dela, dizia, embora não explicasse porquê, que ela tinha uma história triste, estava condenada a viver para sempre aquela vida, sempre para cá e para lá com os pais a tratar da sua fazenda, sem vida de rapariga, sem ir passear com as outras, ao café ou aos bailes ao domingo à tarde, sem ter namorado nem casar, e um dia, depois, a ficar definitivamente sozinha. Valia-lhe a sua alegria. 
E eu, conquanto fingisse que não e não fizesse perguntas, sabia o motivo da compaixão por ela, conhecia, através das minhas fontes habituais, as minhas colegas de escola, um pormenor íntimo sobre a rapariga do qual, parecia, toda a gente das redondezas estava inteirada. Eu ouvira-as perplexa - a pobre da tagarela tinha nascido homem e mulher ao mesmo tempo, diziam, e tinham sido os pais a escolher que ficasse com sexo feminino! Eu acreditara, mas não compreendera, nem como se processava fisicamente um fenómeno daqueles, nem, muito menos, porque é que isso a afastava do convívio dos demais!(MFM)

Luigi Gioli ( 1854-1947) Ritorno dai campi 1912

 NOTA: Outras imagens de pinturas: Van Gogh (1853-1890) e Tomás de Anunciação (1818-1879)


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