18 de maio de 2023

Carta de Pura e Irrevogável Venda

 

Continuando o assunto do post anterior vejamos agora neste a forma prática da sua aplicação.

                                                                           
Foto retirada da net.

Em 10 de Dezembro de 1918 o presidente da República Sidónio Pais, eleito por sufrágio directo (ele não quer que se esqueçam disso, ora leiam abaixo) passa uma Carta de pura e irrevogável venda, carta que ele proprio assina (verdade que de chancela, ainda bem para ele, que se o fizesse por sua mão, a esta e a milhares iguais a esta, a causa da sua morte quatro dias depois talvez fosse outra e muito antes) a António Augusto Mota *, morador em Porto da Lage, que adquirira em 20 de Abril do mesmo ano um lote de oliveiras que tinham pertencido à Confraria de S.Braz da Freguesia da Madalena, Concelho de Tomar.

Este lote de "oliveiras em terra" consta de dezoito oliveiras (não afianço esta minha contagem, aceito correcções) distribuídas por doze proprietários de terras em outros tantos sitios: Ribeira de Porto da Lage, Paço, Venda do Seixo, Bouça, Bica, Serrada de Galegos, Vale de Prisco, Pereiro, Bregil, Outeiro, Fonte do Mocho e Valinho, que foram vendidas por dezanove escudos e quarenta e um centavos (19$41 para quem ainda se lembra) após arrematação. Esta importância foi paga na Agência do Banco de Portugal em Santarém, a que se acrescentaram 1$18 de contas de contribuição de registo e emolumentos a serem pagos na tesouraria do indicado Concelho, supõe-se que Tomar.

A Carta determina ainda que se transmite na irrevogável e pura venda toda a posse e domínio que nas referidas oliveiras tinha a Corporação para o arrematante, seus herdeiros e sucessores]?] as gozem, possuam e desfrutem como próprias.

Este negócio do Estado é o exemplo do que acontece quando os regimes mudam e, cheios de "generosidade" retiram bens a quem está, no momento, do lado errado da história. Fora assim em Portugal no Liberalismo com os bens das extintas ordens religiosas, os quais foram vendidos ao desbarato a capitalistas pouco preocupados em cultivar terras, deixando de fora quem efectivamente as cultivava. Foi assim no fim da União Soviética e no início de países ex-colónias onde, alimentada com os despojos do passado, nasceu de imediato uma classe de oligarcas, havendo pouco ou nenhum beníficio para as populações. Em Portugal, à nossa medida quase anã, passou-se o mesmo neste micro-mundo da expropriação dos bens religiosos, sendo exemplo uma pequena freguesia rural com incidência especial nas "oliveiras em terra". 

Senão vejamos, expropriadas que foram as oliveiras, por uma razão ideológica que impedia que um "Culto" detivesse bens materiais (os outros acho que deixava) o que poderia o Estado fazer com elas?  A medida que pareceria mais justa seria dá-las aos donos das terras onde estavam plantadas, por um lado porque o mais certo seria as ditas oliveiras lhes terem pertencido algum dia e terem sido oferecidas a um Santo ou Santa em paga de algum milagre e aí o papel do Estado seria o de as restituir ao dono inicial, que fora lesado pela "falsa doutrina" do clero que o enganara, pelo que ajudaria a reparar um erro e ficaria bem visto; por outro lado porque, em boa verdade, o Estado não perdia nada, as oliveiras nunca tinham sido suas e faria uma excelente figura. Esta medida teria  sido uma boa forma de propaganda política.

Mas como é dos livros que o Estado não nasceu para dar nada a ninguém (nem, no caso do nosso, primar pela inteligência), dou de barato que  não desse as oliveiras, mas que as vendesse aos mesmos de que falei atrás. Ninguém se escusaria a comprar, ninguém gosta de ter na sua propriedade algo que não é seu, de lá ver entrar quem não quer quando quer, ninguém, enfim, quer ter problemas escusados. Seria então criada uma tabela de preços por oliveira a que se juntaria a respectiva e competente conta de contribuição de registo e emolumentos, que cada cidadão proprietário de pequenos olivais pagaria todo contente e aliviado. E uma vez que o inventário estava feito, nada disto encareceria o processo, pelo contrário, pois se, suponhamos, fosse fixado 1$50 por oliveira, seriam arracadados na operação 24$00 a que se acrescentariam as taxas, aplicando a cada uma $09, seriam 1$62. O Estado ganharia então 25$62, face ao que ganhou na realidade com a arrematação - 20$59. Multipliquemos agora a diferença por todas as outras "oliveiras em terra" da Freguesia, depois do Concelho, do Pais. Façamos a mesmo exercício para outros bens e produtos análogos..., não, não vale a pena, You got the idea.

Não, o governo da República não tem que me agradecer a assessoria económica e política retroactiva, foi um gosto. Sou uma patriota (republicana até). Mas já não fomos a tempo. A especulação e a ganância já começaram. O Estado tratou de arranjar intermediários que farão o que ele poderia ter feito, mas pelo preço máximo, e perdendo dinheiro com isso.

Intermediários que fizeram o raciocínio simples e sensato que eu fiz. Que concretizaram o negócio ideal,  um investimento limpo e sem riscos - compra-se sabendo haver clientes certos e dispostos a pagar tudo. Só quem não podia é que não se metia nele, só não via quem não queria - O Estado! Será que não via mesmo? (MFM)

PS - Em Junho de 1929 foi publicada a Portaria n.º 6259 que permitia manifestações públicas do culto católico, com procissões e toques de sinos, o que conduziu a que o ministro da guerra Júlio Morais Sarmento comandasse protestos anticlericais sendo a portaria  anulada em Conselho de Ministros (mesmo depois do 28 de Maio a senha anti-clerical continuou mesmo entre ministros). Perante isto, o ministro da Justiça e dos Cultos, Mário de Figueiredo, que tinha publicado a portaria, demitiu-se no que foi acompanhado por Salazar, então ministro das Finanças. 
Mais tarde, a Constituição de 1933  mantém a separação entre Estado e Igreja mas uma revisão constitucional em 1935 já declara que o ensino público fica submetido aos «princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do País» e no ano seguinte a Lei de Bases do Ensino estabelece que «em todas as escolas públicas do ensino primário infantil e elementar existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã determinada pela Constituição».
Em 1937 o próprio Salazar começa a negociar a Concordata com a Santa Sé, que será assinada em 7 de Maio de 1940, recusando então que os bens da Igreja que tinham sido nacionalizados em 1911 lhe viessem a ser devolvidos  ou que fosse paga qualquer indemnização pela sua nacionalização. Esta concordata vigorou na íntegra até 2004, com excepção da alteração feita em 1975 sobre a possibilidade do divórcio civil em casamentos católicos. 





*António Augusto Mota nasceu em Porto da Lage em 25 de Junho de 1897 filho de Augusto Pereira da Mota e Maria José de Sousa Rosa, de quem já temos falado neste blog. Foi uma figura social e economicamente proeminente em Porto da Lage, destacando-se a sua ligação à fábrica de Alcool.

Nota: Agradeço a H.C.M. a disponibilização dos documentos acima.

Sem comentários:

Enviar um comentário