Manhã de domingo,
31 de Maio de 1920. Aprontam-se em Porto da Lage os arranjos para os casamentos
dos irmãos Maria e João Mota. Família e convidados apressam-se a entrar nos
carroções e carroças disponíveis, os manos noivos na carruagem dos futuros
esposos, o primo Sousa Rosa, sofisticado, parte primeiro no veloz automóvel, com
a esposa e meninos, atrás, o restante cortejo. Vão direitos a Cem Soldos. Aqui, na
capela, Maria recebe como marido o primo, Augusto. Após a cerimónia, não há
lugar a demoras nas felicitações e cumprimentos que ficarão para depois, agora
é tempo de rumar a Tomar, que João tem compromisso a cumprir na Igreja de
Santa Maria do Olival. Recompõe-se o cortejo, o novo casal ocupa agora a carruagem
de honra, o ainda noivo encaixa-se no lugar anterior do já cunhado e todos se
dispõem a contornar as curvas até Tomar.
À entrada
da cidade, ao passar pela casa da noiva de João, a juventude do cortejo não
resiste a esboçar algum burburinho, logo aquietado pela gente séria da família,
e o percurso segue pela Rua Direita, desce a Corredoura, atravessa a ponte, percorre
a habitualmente agitada Rua Larga pelo seu laborioso comércio e oficinas, hoje silenciada pelo Dia Santo, passa por baixo do Arco de Santa Iria e, através de azinhagas
recortadas por entre os olivais chega ao vetusto templo quase escondido, lá em
baixo, entre as árvores que lhe dão o nome. Os passageiros saem, os condutores
dos carros aquietam os animais nas sombras possíveis, que o sol já vai no
meio-dia, e todos transpõem o velho pórtico, descem as escadas e, ao som dos
próprios passos sobre as desgastadas lajes, aproximam-se do altar-mor onde, pouco
depois, se lhes reúne a noiva, acompanhada pela família, e se realiza o matrimónio de João.
Segue-se a
boda, em Porto da Lage na casa de João. A casa em que passará a viver, desde
esse dia, com a sua mulher Maria José.
Já é fim do
dia. Os convidados, aos poucos, vão abandonando a festa. Os pais e a irmã de
Maria José anunciam que se vão embora. Começam a despedir-se de quem
fica. Maria José, habituada à companhia de sempre, também pega no xaile e faz
menção de se despedir de quem está perto. O jovem marido interpela-a de olhar
perplexo:
- Então,
não fica cá?
O pai dá
uma gargalhada, salva a situação:
-Onde ias
tu, rapariga? O teu lugar agora é aqui!
Esta é uma
das anedotas do casamento dos meus avós, há mais. Que ela contava com a
capacidade de se rir de si própria que só ela tinha, mas em que a cara (de
tolo, de tótó, imaginava-mo-la nós, os netos) do meu avô também assumia grande
relevância. Ela, afinal, não se ria só de si.
Pois João Pereira da Mota e Maria José eram meus avós, e a casa de que falo, pelo menos o local, os
alicerces e as paredes-mestras, é aquela que a foto mostra.
Era a casa
que Augusto Pereira da Mota, seu pai, construiu quando veio para Porto da Lage, onde o
meu avô nasceu em 1892 e os irmãos mais novos também. João herdou a casa depois
da morte do pai ficando aí a morar com a mãe e os irmãos solteiros. Depois do
casamento, a mãe passou a viver com o filho mais novo na casa pequenina que ainda
existe à direita do jardim.
Em 1935, João cede a
casa, por troca, ao irmão Henrique que a altera dando-lhe o aspecto
que hoje tem.
Em 2015 a
casa deixa de pertencer aos Mota.
É mais que
provável que o novo proprietário, que não sei quem é, não conheça este blog nem
leia este texto. Mas, de qualquer maneira, não deixo de lho dedicar.
Porque
acredito que o que tem história tem alma. Não é necessário que “a história” esteja
na nossa memória vivida. Pouco me liga directamente aquela casa, para além dos
factos mais ou menos emocionais, como o de lá ter nascido o meu avô,
ligam-me as memórias que me transmitiram, como esta, a da pobre miúda de vinte anos
que não sabia bem o que estava a fazer, ali, dentro daquelas quatro paredes, no
dia da sua própria boda de casamento, há quase cem anos. E outras, tão, menos e
mesmo nada cómicas, até dramáticas, que me foram contadas. E muitas, muitas
mais, imensas, que aconteceram em quase 125 anos e que eu desconheço. Mas que as
paredes conhecem!
Era isto
que eu queria lembrar ao novo proprietário, aquelas paredes sabem muita coisa, coisas miúdas, do quotidiano, da vida íntima das gentes, alegrias e angústias, zangas e remissões, nascimentos e mortes.Tudo aquilo que, no fim de contas, compõe a história do Homem.
Olhe, então, por aquelas paredes. Preserve-as, estime-as. Estou certa que elas irão gostar de si.
Olhe, então, por aquelas paredes. Preserve-as, estime-as. Estou certa que elas irão gostar de si.
Fico-lhe
muito agradecida por isso. Felicidades na sua nova casa.(MFM)