Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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24 de maio de 2012

Manuel da Silva




* "Na sessão de 6 de Março de 1747 foi dada licença a Manuel da Silva, de Porto da Laje, para usar da sua estalagem no forma do seu Regimento, e poder vender cevada a 240 réis o alqueire, e palha a 20 réis a joeira".








As Ordenações Filipinas de 1603, baseadas nas anteriores, Manuelinas, foram mandadas fazer pelo primeiro Filipe mas apenas proclamadas pelo segundo; embora muito alteradas, constituíram a base do direito português até à entrada em vigor dos primeiros códigos liberais do século XIX. Mantiveram-se, porém, muitas das suas disposições no Brasil até ao advento do código Civil naquele país em 1916.
Em 22 de Setembro de 1607, sustentadas naquelas ordenações, foram aprovadas as Posturas Camarárias, pela Câmara de Tomar, Nobreza, Homens de Governança e «Os doze dos Misteres» que fixam as normas juridicas aplicadas em Tomar e seu termo, isto é, a agora cidade mais sensivelmente as freguesias rurais actuais do concelho de Tomar. O livro das Posturas foi destruído pelos franceses em 1810 e depois refeito, conforme certifica, no final da cópia que redige, o escrivão da Câmara João E. de Almeida Xavier em 10 de Novembro de 1811«e dou de tudo fé de ter lido o referido naquele livro, e achar na fuga do inimigo a falta dele e de outros da Câmara; e para que conste para o futuro passei o presente que assino.»
Tomar no sec.XVII
As Ordenações aplicam-se a um tempo em que a vida de cada um era  regulamentada até ao ínfimo pormenor. Deus seja louvado, parecia que tudo estava previsto e nada era deixado ao acaso. Não era esquecido mandar cortar uma asa aos perus "por se ter experiência que voam e comem a fruta das árvores", de proibir a lavagem de tripas no rio da Vila do Açude para cima ou da Levada, sob pena de pagar cem réis, de não se permitir que ninguém" dê ou alugue jogo de bola" ao domingo ou dia santo antes de se dizerem as missas em todas as igrejas e conventos, etc.

Jean-Baptiste Chardin , O jogo de Bilhar, 1725
Fácil seria, ao ler as Posturas, saber como corria a vida de todos os cristãos daquele tempo, quando acordavam, iam dormir e com quem, o que comiam, vestiam, em que ocasiões podiam usar chapéu ou manto,"e de modo nenhum haverá manto com chapéu, salvo as parteiras que andarem de mula" quando saiam à rua, com quem e quando conversavam as mulheres e com que intensidade "toda a mulher que for achada a descompor outra pagará 500 reis", quanto custavam os géneros e quem exactamente vendia o quê, que não havia lá grandes superfícies com tudo ao molho, não senhor, todos tinham a sua função e cada função os seus usos, mais regras e juízes. Tudo estava parametrizada a régua e esquadro.

                                                 Fragonard, As lavadeiras, 1777-1779

E digo seria pois não me esqueço que falo dos nossos antepassados, aqueles onde corria o sangue que ainda nos trespassa as veias, e duvido. Duvido porque acredito na ciência, considero que não descendemos das tristes ervas e que não é por acaso que somos como somos no presente.  Há que respeitar as determinações da genética e assim considerar os nossos antepassados nossos iguais. Onde se vê agora um português não procurar um interstício da lei para dela fugir? Quem tem leis mais bem feitas, precursoras, e, agora, fracturantes, do que os actuais tugas, que só servem para decorar os bonitos códigos? Tenho para mim que teria sido sempre assim desde que D.Diniz teve a inédita ideia de promover uma língua nativa, um crioulo do latim, falado por autóctones mais arabisados do que romanizados, como língua oficial. Em poucas palavras: custa-me a acreditar que toda aquela "normalogia" fosse cumprida.

                                               Johannes Vermeer, A Leiteira, 1658-1660
                                                        


                                            Diego Velasquez, As Tecedeiras, 1657



                                                Quiringh van Brekelenk, O Alfaiate, 1663


                                                 Nicolas Maes, A Guarda-Livros, 1656 


                                                Jan Steen (1626-1679), O médico e a paciente, data  desconhecida. 



                                                     Francisco Goya (1746 - 1828),  A Forja, data desconhecida.

Mas voltando aquilo a que hoje chamamos profissões, todas eram normalisadissimas (de norma), desde a autorização pelo rei para cada um "exercer o mister", o que passava muitas vezes pela feitura de exames (caso dos meio-cirurgião - podiam curar de cirurgião nos casos de feridas e simples chagas, dos barbeiros sangradores e parteiras examinados por dois cirurgiões que os deveriam considerar aprovados, nestes termos - o Dr cirurgião mor destes reinos deu licença a Sebastião António da Mota, filho de Francisco Antunes do termo de Tomar, para poder sangrar, sarrafar, deitar ventosas e sanguessugas e arrancar dentes, em todo o tempo e lugares do reino, porquanto foi examinado e ficou aprovado), até à licença camarária para ter ofício e até para deixar de o ter, pois mesmo para se desistir de trabalhar era necessária ordem superior!
   
Jean Baptiste Greuze,  Ovos Partidos, 1756
                                       
Também os estalajadeiros, incluídos nas classes mecânicas, tinham um regulamento e elegiam entre os seus,  um juiz dos ofícios.
Eis algumas normas a que estavam obrigados:
-Pessoa alguma não será vendedeiro nem estalajadeiro sem fiança da Câmara, sob pena de 1$000 reis e venderão todas as coisas necessárias à estalagem; e terão camas e estarão sempre providos de tudo, sob a dita pena.,
- Quem tiver vinho para vender e tirar o ramo e denegar a venda dele a qualquer pessoa da Vila ou de fora dela, pagará 200 reis, e esta Postura se entenderá com os vendeiros e taberneiros;
- E se for vendeiro ou estalajadeiro ou taberneiro, será privado do dito mister, além da pena;
- Os estalajadeiros que tiverem agasalho para cavalgaduras terão boas manjedoiras e bem vedadas, com suas argolas, e não haverá nelas rotura nem quebradura; nas ditas estrebarias não terão animal solto seu nem alheio e as manjedoiras que não tiverem bem vedadas como dito é, por cada vez que lhe forem achadas mal reparadas, pagarão 200 reis; e não tendo aonde se possam prender as cavalgaduras, 100 réis, e achando-se besta solta ou outro animal pagará o vendeiro 500 reis, posto que a besta não seja sua,
- e os almotacés e rendeiros os visitarão, e se alguma pessoa denegar a vista, pagará 1$000 reis, constando que foi malícia; a metade para o Concelho e a outra metade para o acusador.
- terão o vinho e cevada na casa dianteira com as medidas dela e tudo medirão perante os compradores e na mesma casa medirão na dita forma a palha, sob pena de 500 reis.

Seriam estas, entre outras, as normas a que esteve sujeito Manuel da Silva?  Será que as cumpria e faria cumprir?
 Seria muito visitado pelos almotacés e seriam estes «asae's» de l'ancien regime íntegros ou corrompíveis/corruptores?


     


                                             
       



Theobald Michau, A caminho da Feira, c.1745



Fontes:Posturas Camarárias :Livro dos Acórdãos Camarários, in A.M.T 1581-1700, pags-49 a 102.

* Manuel da Silva : Anais do Município de Tomar (A.M.T.), 1700-1770, pag. 117  

Figuras 12 e 13: Jean Baptiste Chardin: Mulher Descascando Legumes e Mulher pondo água numa vazilha, 1737