A Tagarela
Era muito animada aquela estrada. Passava e passava-se, sempre, muita gente e muita coisa por ali. Automóveis,
era raro, a estrada era de terra, com fundas poças no Inverno e muito pó no Verão,
mas os tractores já eram comuns por lá e as carroças e bicicletas então, era um
virote, já para não falar de gente a pé a caminho dos seus trabalhos no campo.
Eu costumava imaginar o que haveria lá para o fundo, da estrada, onde eu nunca fora, que arrastaria
tanta gente. No Verão, quando o milho e o tomate cresciam, ouviam-se, mal
rompia o dia, os motores de rega, sinal da modernidade, ou o chiar das noras
puxadas por mulas ou burros, a providenciarem a água que os ajudaria a suportar
o calor infernal da tarde. Naquela várzea ao longo da ribeira, as pequenas propriedades,
as fazendas, sucediam-se em fatias, paralelas umas às outras, cada uma com o
seu poço, algumas com grandes tanques, outras nem tanto, mas todas verdejantes,
todas prósperas, com horta, milho e pomar. Isto de ambos os lados da estrada,
embora do lado direito, ao longo da ribeira, as hortas predominassem, Do outro,
as vinhas estendiam-se, à medida que o vale acabava para a esquerda, para a
encosta, e entremeavam com os campos de oliveiras e figueiras, semeados de
cereal seco que se colheria no pico da estação.
Ao fim do dia, eu punha-me com a cabeça enfiada nas grades do
portão ou ao cimo das escadas, com a tia Alice, a minha madrinha, quando ela
estava connosco, a ver a retirada do campo. Vejo agora que este seria (será que
já é?) um bom nome para um quadro naturalista, uma estrada à luz estreita quase
de crepúsculo por onde rodam pessoas e animais alquebrados, a caminho do
merecido descanso nocturno. Os boas tardes, até amanhã se Deus quiser, o
vá com Deus ecoavam no silêncio do final do dia e faziam sombras no portão,
na estrada, em todos os corpos, de tal forma que aqueles sons se corporizavam e
existiam, ainda existem e me correm no sangue.
Umas figuras patuscas que passavam todos os dias pela estrada eram uns pais e uma filha, eles de meia idade, ela pelos vinte anos, muito alta, mais alta do que qualquer rapariga que eu já tivesse visto, esgalgada e ossuda. Iam os três sempre de manhã, de carroça, a cuidar do amanho da terra; ao cair da noite, à volta para casa, quando traziam muito carrego, vinham apeados, quanto muito arranjava-se um lugarzinho na carroça, no meio do feno, das hortaliças ou da lenha, para a mãe, a mais fraca de todos.
Mas, invariavelmente, a pé ou sentada na tábua da carroça, pela manhã, ou ao cair da noite, sempre, sempre, a rapariga ia a falar animadíssima. Estou a vê-la, a pé, a figura alta e magra de saia rodada de flores, e botas grossas, sempre a esbracejar e a atirar com as pernas, entusiasmadíssima com as próprias palavras. Chamávamos-lhe lá em casa a máquina falante.
Nunca percebi nada do que dizia, parece que ninguém percebia.
A minha madrinha dizia que gabava a paciência dos pais por estarem constantemente a ouvi-la, eu achava que eles tinham muita sorte em tê-la, pois não era a vida deles animadíssima com uma filha daquelas?
Mas a madrinha também tinha pena dela, dizia, embora não explicasse porquê, que ela tinha uma história triste, estava condenada a viver para sempre aquela vida, sempre para cá e para lá com os pais a tratar da sua fazenda, sem vida de rapariga, sem ir passear com as outras, ao café ou aos bailes ao domingo à tarde, sem ter namorado nem casar, e um dia, depois, a ficar definitivamente sozinha. Valia-lhe a sua alegria.
E eu, conquanto fingisse que não e
não fizesse perguntas, sabia o motivo da compaixão por ela, conhecia, através
das minhas fontes habituais, as minhas colegas de escola, um pormenor íntimo
sobre a rapariga do qual, parecia, toda a gente das redondezas estava
inteirada. Eu ouvira-as perplexa - a pobre da tagarela tinha nascido homem e
mulher ao mesmo tempo, diziam, e tinham sido os pais a escolher que ficasse
com sexo feminino! Eu acreditara, mas não compreendera, nem como se processava
fisicamente um fenómeno daqueles, nem, muito menos, porque é que isso a
afastava do convívio dos demais!(MFM)