Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
Todos os textos aqui publicados podem ser utilizados desde que se mencione a sua origem.

21 de abril de 2014

Marx e a velha Joana


Lembro-me de, nos encontros do meu pai com os primos, ao recordarem memórias de juventude vir sempre à baila a recordação de outro primo, que fizera o seu percurso escolar no colégio em Tomar, deslocando-se diariamente, de Porto da Lage, de burro. A ilustração da viagem do estudante era descrita jocosamente por referência a tamanhos, o "latagão" do cavaleiro, empoleirado na pequenez do burro, seguidos ambos pela minúscula e atarracada Joana, cuja presença se impunha para tomar conta “do menino” e fazer movimentar a contrariada alimária  com o pequeno caniço que empunhava.
O ridículo do quadro gerava sempre gargalhadas, não só a quem o tinha visto ao vivo, mas também a todos os que conheciam o burrical paladino dos seus dias de adulto, o qual, para além de dr. era doutoral, emproado, como foi lembrado no comentário aqui , sem humor, e, acrescento, pouco devedor à simpatia.
Porém, no meu mórbido espírito de adolescente, realçava na descrição, acima de toda a anedota e a traços bem negros, a  pobre velha, que eu imaginava descalça e cansada a calcorrear caminhos ao frio e à canícula atrás de um burro com um calmeirão montado!
E tudo em troca de um naco de pão com azeitonas ou de uma mão cheia de passas de figo, como acrescentaria a minha mãe que tinha ADN com pernoitas pelo Aljube, o que era muito bom, considerando que não morria à fome como sucedia a muitos naquele tempo, retorquiria o meu pai, que era filho de gentes de Porto da Lage!

Todo o quadro, desta feita um pouco diferente do da tradição - da velha, do burro e do rapaz - é o símbolo de um Portugal. Atrasado, analfabeto, miserável. Porto da Lage, aqui, é o pano de fundo da tragédia de época. Nela emerge uma burguesia que tira os filhos do amanho da terra pela porta grande: passam pela escola, pela Universidade os que querem, e integram-se nos serviços, no comércio, nas profissões liberais, todos.
Como estamos em período de celebração dos 40 anos, tentemos fazer uma análise sociológica daquelas do fim dos idos de setenta em que os portugueses pensantes (que eram todos, apesar do analfabetismo) eram marxistas encartados, tal como hoje (os poucos que pensam, apesar da "elevada" literacia) são a favor de Gordon ou Krugman ou ainda, como é o caso de quem nos governa, seguidores daquela corrente económica cientificamente comprovada e apelidada de  incompetente. Sinais dos tempos ou tempos assinalados. Adiante.
Concluiríamos assim, facilmente, seguindo o autor de "O Capital" , que o modo de produção de então e a correspondente estrutura social originaram os novos modos  de vida ( relações de produção, dizia a doutrina) da terceira geração portalagense ou portodalagense. E a transformação foi tão profunda que já não se apurou quarta! Como os povos antigos que chegavam, colonizavam, partiam.
Os descendentes dos primeiros portalegenses (não sei porquê mas gosto mais desta designação) ascenderam socialmente, ainda à luz do materialismo histórico, porque beneficiaram do atraso do país, na agricultura em particular, e de salários miseráveis. 





No seu plano, Porto da Lage reproduziu o que acontecia em Portugal, onde Salazar fez emergir meia dúzia de famílias. Não havia milionários, mas a aldeia destacava-se face às outras. Como vimos nas descrições de Dulcinda e Ilídio Teixeira, a vida quotidiana da aldeia nos anos trinta e quarenta era a típica de uma pequena localidade de classe média. Os rapazes, algumas raparigas já, também, vinham de férias das escolas. As mães, para além de  protegerem a reputação das filhas, cuidavam da casa, não trabalhavam no campo. Todos se encontravam para dançar e jogar bilhar no local apropriadamente chamado de "O Grémio" onde se assistia a récitas. Não há Ti Marias nem Ti Manéis, ranchos folclóricos, milhos-reis nas descamisadas, ou namoricos na fonte, de cântaros à cabeça. Os episódios pitorescos passam-se com personagens  de passagem, de locais próximos ou assalariados. Enfim, não havia pobres em Porto da Lage, apenas  uns com mais dinheiro, outros com menos.
A geração tradicional, filha dos "pioneiros" de Porto da Lage, na primeira metado de sec.XX possuía terras, comércio, serviços e indústria, nos quais os assalariados, pelo menos os menos qualificados, habitavam nas localidades vizinhas. Seriam remunerados como no resto do país e o facto de a gente de Porto da Lage possuir os chamados meios-de- produção tinha uma explicação histórica, não eram personagens especialmente maléficas ocupadas a explorar os outros. Mas as circunstâncias ajudaram a sua preponderância em relação àqueles.
Este estado de coisas, como vemos, não teve continuidade. A terra não absorveu os seus "novos" filhos que, com outras habilitações, lá não tinham acolhimento (outra metáfora de Portugal, avant la lettre?) ou estes não a julgaram à altura dos seus novos predicados? 
Ou ainda, como explicaria Marx, seria por terem deixado de existir Joanas dispostas a acompanhar latagões de burro? (MFM)


2 de abril de 2014

Um Baptismo e um Casamento


Vista de Tomar  (O Castelo e o Convento de
S.Francisco) - View of Castle and Convent of Tomar”
William Innes Pocock (1783-1836)
Em 24 de Julho de 1751 realizou-se um baptismo na Igreja de S.João Baptista em Tomar, cujo assento reza assim: João Baptista, adulto, natural de França, da Província da Lorena da cidade de Belfou, Arcebispado de Brançon, filho de Pedro Martins e de Águeda Mete, hereges que professaram a lei de Calvino e deste bando o dito João Baptista se expulsou da maldita ceita e se catequisou nos ensinamentos da nossa Santa Fé e depois de bem catequisado pelo Reverendo Padre Mestre do Real Convento de Cristo e por outros reverendos sacerdotes e com licença e mandato do Ilustríssimo Reverendo Manuel Vieira Mendes, Prelado desta Prelazia, foi por mim baptizado e lhe pus os santos óleos, foi padrinho o vigário de S.João Baptista Frei Basílio Goes e tomou por madrinha e por sua invocação a Virgem Nossa Senhora.


Ao ler esta descrição plena de animosidade contra a originária “maldita ceita” do bem catequisado João Baptista, na Nossa Santa Fé, lembrei-me de uma cerimónia religiosa a que assisti, há alguns meses, precisamente na pátria adoptiva do herege Calvino. Tratou-se do casamento, católico, de um bisneto de um portalegense, assunto, portanto, com pleno cabimento neste blog.

João Calvino, França, Noyon, 1509,
Genebra, 1564

Antes de mais, direi, perdoe-me quem está ao corrente destas minudências o enfado de ter que as ler, mas acho que tem interesse para o que segue, que, apesar da Federação Suíça ser um estado laico, tal não se verifica em muitos dos seus estados federados, os chamados cantões. É o que se passa no Cantão de Vaud, onde se realizou o casamento, que tem como religião oficial a Igreja Reformada da Suíça, precisamente de doutrina e rito calvinista. Que isto de ser a religião oficial trata-se apenas de um facto histórico e honorífico e não tira nem põe, ou não se tratassem de suíços, quando se trata de efectuar despesas.




Villars-le-Terroir

Pois, na pequena localidade de Villars-le-Terroir, de aproximadamente 800 habitantes em que a maioria, perto de 60%, são católicos, a igreja protestante, apesar de ser a igreja oficial do cantão, com os seus 22% de praticantes não vê necessidade de ter edifício próprio e pede emprestado à católica o lugar de culto, nos dias e horas convenientes que até não conflituam entre si. Basicamente, sábado para uma, domingo para a outra e os outros dias conforme as necessidades de cada uma e sempre na Paz e na Ordem do Senhor, que é só Um. Quem talvez não se sinta muito confortável com o acordo serão as imagens dos santos, que, sendo católicos, andam sempre num virote dos respectivos nichos para trás da cortina vermelha pendente dos grossos varões doirados, e de detrás da cortina outra vez para os nichos floridos e odorosos, nem sempre nas posições mais elegantes dada as frequentes jornadas a que são obrigados, como quando tive ocasião de os conhecer. Vi, por exemplo, uma “Sagrada Família” do sec. XVIII, de tamanho natural, posta de través no altar-mor, por pouco que não lhes víamos as caras, em que o S. José não escondia o enfado pela posição pouco digna em que se encontravam, fruto, sem dúvida, da pressa com que foram carregados para ali. Compreende-se, mas enfim, sempre são santos e portanto apetrechados com a respectiva paciência.   

Voltando, finalmente, à cerimónia, tendo eu naquela um lugar privilegiado, dado o meu estreito parentesco com o noivo, pude admirar perfeitamente a branca e florida igreja, de traço tradicional, edifício talvez de finais do sec. XIX, com capela-mor e grande nave de rasgadas janelas neo-góticas que deixavam brilhar lá dentro o esplêndido sol de outono daquele dia, e davam especial realce aos dois grandes púlpitos que se enfrentam simetricamente de ambos os lados da igreja. Estava eu a perguntar-me para que serviriam dois púlpitos, ainda por cima tão próximos um do outro, quando se iniciou o cortejo. É claro que o acontecimento é igual em todo o lado e quem viu um viu todos, noivo, acompanhantes, etc, músicos, acompanhantes, etc, cantores, acompanhantes, etc, segue-se o auge ….traaaaaaa!!!!! – lá vem a noiva! E fica-se por aqui!
Errado! Após o sossego do pouso dos noivos no altar e da entrada em reflexão dos presentes sobre as qualidades, ou falta delas, do vestido da nubente, eis que se seguiu, agora sim, o verdadeiro clímax! Um rapazinho de alva branca (não, não é redundância, parece que há alvas de outras cores) transportando uma cruz maior do que ele, precedia um par de adultos também de alvas, um deles de estola, os quais, depois de desfilarem juntos se separaram junto do altar-mor dirigindo-se cada um para uma das escadas dos púlpitos, chegando lá acima ao mesmo tempo e pousando, os dois, também ao mesmo tempo, ambas as mãos sobre a balaustrada de mármore. Coisa bem ensaiada, pensei eu satisfeita por já ter resposta para a minha dúvida lá de trás, agora vão cantar em coro, especulei também. Outro engano, o da estola falou primeiro. Disse ao que vinha, facto sabido, a importância do acto a que íamos assistir, coisa também farta de ser do conhecimento geral e apresentou o seu par e a razão da sua presença, isso sim, coisa da ignorância de quase todos. Então não é que ficámos então a saber que o sorridente ocupante do púlpito em frente, era, nem mais nem menos que o segundo inquilino do templo, o Pastor protestante, que vinha acolitar o colega sacerdote católico na celebração do sagrado sacramento do matrimónio do B., seu grande amigo, e a pedido deste!?
Depois, também o Pastor deu testemunho da sua honra em estar presente e as formalidades seguiram segundo a liturgia católica, sempre com a participação do convidado.

Para quem não conhece o distinto noivo diga-se que este, além de acrescer meio metro à altura do seu bisavô Mota, parece que mantém em cima do corpo a mesma cabeça daquele, pois é igual por dentro e por fora. E lá dentro, a fé e a devoção à Santa Madre Igreja e ao Santo Padre não esmoreceram em quatro gerações, pese embora o pouco entusiasmo das intermédias. 
Extraordinário, portanto, o espírito ecuménico e o valor da amizade observados neste episódio! De fazer encher de orgulho uma época e uma geração, tão, e muito bem, criticada pelo hedonismo e materialismo, mas que deixa a perder de vista, Graças ao Senhor, os tempos de intolerância e fanatismo que relembrámos no inicio. (MFM)