Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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6 de janeiro de 2013

A Tigela de romã


Era uma casa feia, cinzenta, de dois pisos, com uma porta ao meio e duas janelas de cada lado*. Não me lembro como fui lá parar, sei que fui sozinha e que entrei. Da porta da rua para dentro, na porta do lado direito do patamar, era ali, tinham-me ensinado. Terei batido à porta, haveria campainha? Sei que ma abriram, sem surpresas, me mandaram sentar numa cadeira da sala de jantar e ali fiquei, de pernas a bambar, em frente à mesa, a reparar nos dois aparadores de cor castanha reluzente com vidrinhos, donde transpareciam chávenas com passarinhos e copos azulados. A mãe da Clarisse entrou, vinda da porta da esquerda, com uma grande tigela, também com passarinhos, assente nas duas mãos aconchegadas, cheia de uma matéria translúcida encarnada, atravessada por uma colher. Pôs-ma à frente, sobre a mesa. Eu olhava para aquilo e a Clarisse perguntava - não gostas de romã?

Eu não sabia o que era uma romã, nunca tinha ouvido falar em romã, era aquilo uma romã? Gotas de vidro rosadas cobertas de açúcar? Pelos vistos era de comer, peguei na colher cheia daquelas partículas e levei-a à boca.

À hora da minha morte, se comer romã, e hei-de comer se tiver pelo menos um amigo e partir no Outono como espero, a ultima colherada há-de saber-me aquela primeira da minha vida que comi em casa da professora Clarisse. Hei-de sentir as pequenas sementes a desfazerem-se entre a língua e o céu-da-boca enquanto o sumo (o molho, como mentalmente lhe chamei então), me há-de deixar toda lambuzada e cheia de prazer por ter degustado a coisa mais maravilhosa do mundo. Mas aí já saberei o que hei-de fazer às sementes chupadas, e não as empurro, hesitante, de um lado para o outro dentro das bochechas. Pois a Clarisse já não irá estar lá para me dizer - se não quiseres engolir, podes deitar fora. Ai era para engolir? E toda a vida engoli as sementes das romãs. E em Outubro, pela feira, começava a comer romãs até as haver na romãzeira da horta ou alguém as oferecer lá para casa.

Agora compro-as, espanholas, às vezes durante o Outono, mas compro, sempre, sempre, no DIA DE REIS. Parece que garante dinheiro para todo o ano comer romã neste dia. São espanholas, também, estas que garantem o dinheiro.

Aquela primeira, da casa da Clarisse, asseverou-me não o dinheiro, mas o amor para toda a vida da fruta mais saborosa do mundo, a mais bela de todas.

A  Clarisse ou a mãe, uma delas, apontou para cima do aparador onde repousava por cima do naperon de renda, um prato de vidro amarelo com cinco criaturas lindas, bojudas, de coroa, coloridas na sua paleta entre o verde amarelado e o vermelhão, e eu ouvi que tinham sido duas iguais aquelas, cheias de vida antes de serem sacrificadas, que, depois de esventradas, se tinham tornado o objecto da minha gula.

E saímos daquela casa cinzenta, feia, a Clarisse e eu depois da romã comida. Era Outubro e o céu estava pequeno, ouvia-se o toque da passagem de nível fechada, quase ao lado da casa feia, depois a passagem afogueada do comboio enquanto continuávamos a nossa caminhada pelo meio da aldeia.

Os meus sentidos parece que ainda experimentam aquele primeiro dia do primeiro Outono da minha vida: a tarde quente, o embrulho dos cheiros das últimas uvas com o dos figos destilados e dos abrasadores carris de ferro; mas, mais do que tudo, o supremo deleite da primeira romã. (M.F.M)

*Já não existem estas casas, filas cinzentas, de dois pisos, onde se alojavam as famílias dos ferroviários. A REFER demoliu-as para alargar o cais, que se exibe ostensiva e desnecessariamente grande, e um parque de estacionamento. Ficavam à esquerda, na imagem