Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
Todos os textos aqui publicados podem ser utilizados desde que se mencione a sua origem.

10 de fevereiro de 2021

Memórias- A Augusta

 


          A Augusta

Ao lado da casa da tia Anita morava a D. Elisa. Entrava-se para casa dela subindo as mesmas escadas do pátio da tia e passando pelo alpendre de que já falei. Se havia outra entrada não conheci, foi sempre este caminho que tomámos quando ia provar os vestidos lá a casa - um deles o de risquinhas cor- de- rosa, com peitilho de botõezinhos, que eu adorava e que estreei no exame da 4.ª classe. A D. Elisa, além de costureira, era senhora também de uma figura impressionante, daquelas que é suposto na tradição, nos livros infantis e no cinema, im-pre-ssio-nar mesmo as criancinhas, não me metia medo porque era afável e delicada e também porque, diga-se a bem da verdade, nunca estive sozinha com ela, mas o seu físico desmedido e as suas feições - era altíssima e espadaúda, tinha um grande nariz e o rosto cheio de pelos e verrugas - deixavam-me .... bem, não vale a pena entrar em detalhes, já viram muitos filmes e sabem como ficam os miúdos quando vêm as gémeas da D.Elisa. 

Como se tudo isso não não bastasse, a D. Elisa era de Estarreja, uma terra, e até uma palavra, que eu custei a acreditar que existisse, parecia-me um arremedo de uma conjugação do verbo estar: que eu esta-rre-ja, que tu estarrejas, ... que Estarreja me perdoe...coisas de crianças.

Mas, vá-se lá saber porquê, havia mais gente de Estarreja em Porto da Lage. Uma delas a Augusta, que fora pequena lá para casa, lá crescera e de lá casara, tendo os avós por padrinhos. Eu só me lembro dela já como vizita, a viver em Moscavide e a trabalhar numa fábrica da Nestlé. A avó gostava dela e orgulhava-se do seu percurso. Penso que se orgulhava, mais ainda, do que ela própria tinha feito pela Augusta.
Ela viera, nos anos quarenta, não sei como, muito jovem e, para além de analfabeta, muito ignorante, para casa dos meus avós. 
Contava a avó que um dia, quando a tinham mandado apanhar a azeitona do vento (aquela que cai naturalmente devido à ventania) ela disse que não ia. Que desculpassem mas sempre tinha aprendido lá na terra dela que não se colhia nada da terra dos outros. Deslindada a confusão lá se percebeu: ela não queria, e fazia muito bem, ir apanhar a azeitona na fazenda do Bento, um vizinho lá dos Olivais. 
Em outra ocasião, tendo sabido que a gente abonada punha o dinheiro no banco, não deixou de mostrar o seu espanto e de perguntar a razão, porquê precisamente num banco e não noutro sitio mais abrigado, numa caixa por exemplo, quando um banco tinha um buraco no meio por onde o dinheiro cairia?

A Augusta não era, portanto, burra,  pensava com os instrumentos que conhecia e, mais do que isso, era como deve ser, quer dizer, distinguia o bem do mal, tinha valores. Faltava-lhe o conhecimento e o sotaque exigido, pois falava com o assento particular da sua gente que troca os b pelos v e o inverso, diz avelhas e obelhas  e que bai ber e oubir as vandas de música, o que a avó considerarava muito feio. Mas tudo se compôs, aprendeu a falar, a estar e tirou a 3.ª classe nocturna, faltando-lhe a 4.ª por não ter sido leccionada em Porto da Lage.
Quando a conheci era uma verdadeira lisboeta, desenvolta no falar e no vestir, que vinha sempre com o marido, de comboio, passar o Natal aos Olivais. Depois, durante meses, havia sempre, em vez de cevada,  chocolate em pó para pôr no leite (MFM)