O sr. Luís
Naquele tempo, em que a
maquinaria agrícola era ainda reduzida, o trabalho no campo requeria muita
gente. Que, claro, já fora muita mais. Eu ouvia lá em casa queixarem-se da
falta de pessoal, apesar das jornas incomportáveis que estavam que não se podia.
E dos direitos, que tinha acabado a jornada de sol a sol, e as oito horas de
trabalho não podiam ser ultrapassadas. Para além disso, os jovens já não
queriam trabalhar no campo, os rapazes só muito novos, depois de virem da
tropa queriam outras coisas, as fabricas, as oficinas; as raparigas eram cada
vez mais requeridas em lugares outrora ocupados pelos homens que estavam na
guerra, o campo era agora das crianças acabadas de sair da escola que por ali
andavam atrás do meu avô, dos velhos e das mulheres. E um novo fenómeno tinha
vindo dar a machadada final no povo dos campos - a emigração.
A este propósito contou-se durante muito tempo o episódio do senhor Luís que representava a nova era em que estávamos a viver, em que nos tinham posto a viver, como dizia a minha avó. O Luís tinha ido trabalhar lá para casa ainda rapazote pequeno e por lá se fizera homem, o meu avô gostava dele e reconhecia-lhe qualidades para ser dono de si próprio.
Os meninos éramos nós. Eu e os meus irmãos, que ele
conhecera desde sempre, já lá trabalhava quando nós nascemos, tratara sempre
por meninos e a quem falava com todo o respeito no avozinho e na avozinha. Para
nós, claro, ele era o Luís.
Lá foi, e graças a Deus e à vontade e empenho
que o meu avô reconhecera nele, passados tempos voltou a matar saudades e
regularizar as suas dívidas que ele também era homem de boas contas. Quando
chegou lá a casa, abriu o portão verde que tantas vezes, desde criança
transpusera para ir ganhar o triste pão diário, e que agora franqueava já
senhor de si e do seu futuro, deparou com a minha irmã a brincar no pátio,
aquela menina a quem ele conhecera e tratara sempre por menina Joãozinha,
e disse-lhe no tom que o suor amassado nas terras de França autorizava - Oh
Maria João, vai avisar o teu avô que está aqui o Sr. Luís que lhe quer falar. Mas,
coitado, a ordem foi dada em hora de tão pouca sorte que a minha avó ouviu.
A partir daí, quando vinha a propósito falava-se sempre no senhor Luís. Dizia-se que fulano e beltrano tinham visto o senhor Luís, que o senhor Luís estava cá de férias, que o senhor Luís tinha comprado isto e aquilo. O tratamento trocista de senhor é que nunca mais o largou, agarrara-se-lhe ao nome que nem carrapato, ganhara-o bem ganho lá pela estranja juntamente com a pobre petulância. (MFM)