Joaquin Sorolla (1863, 1923), El palmeral de Ecche, 1918 |
Corria o ano de 1983 quando, num
dia qualquer, a percorrer o caminho do costume, deparei com personagens
diferentes a cruzarem o meu olhar habitual pela janela do autocarro. Eu estava
a ver, boquiaberta, dezenas de palmeiras adultas no Largo das Cebolas! No amplo
parque alcatroado e desarborizado onde, na véspera, estacionavam desordenadas
camionetas de transportes ocasionais, dezenas de operários preparavam agora pequenas
avenidas ladeadas por palmeiras de sete metros, enquadrando a restaurada Casa
dos Bicos que readquirira os quatro pisos que o terramoto levara. Nunca mais me
esqueci do espanto da altura, o pescoço a retorcer-se, enquanto o autocarro se
afastava, para continuar a ver o insólito, o cérebro a tentar processar aquela
novidade. Coisa nunca vista!
Mas, a partir daquela inovação
trazida pela XVII Exposição Europeia de Artes, Ciência e Cultura, a coisa passou
a ser muito, muito vista. Deixou de ser só enfeite de monumento restaurado, a
condizer com as parangonas das comemorações dos centenários do Império perdido,
que tinham lugar a toda a hora, pelos idos anos noventa. A moda alastrou pelo
país nos vinte anos seguintes, não se construía praça, rotunda, avenida, condomínio
no Algarve, que não ostentasse a sua magnificência exibindo o seu palmar ou
palmeiral gigante. Em Mirandela apresentaram-me uma vez a “Avenida Palmolive”,
que na verdade não se chamava assim, no baptismo tinham-lhe dado, salvo erro, o
nome de um figurão qualquer da Comunidade Europeia, Palmolive é o nome que a
população lhe dá devido ao rasto de Palmeiras que se desenrola por quase um
quilómetro, entremeado por arbustos de oliveira.
E quando a fúria replantativa do
nosso palmar portucalense abrandava, fosse por falta de orçamento, as coisas
mudaram, fosse por fastio, a moda, precisamente por o ser, cansa, e nada
movimenta e enfada mais este povo do que andar fora dela, eis que a tragédia se
abateu sobre ele.
E a paisagem da cidade mudou,
falo da capital, que conheço melhor, mas também já vi o triste espectáculo
noutras paragens.
Começamos por ver os troncos (que
não são troncos, afinal as palmeiras não são árvores), pois começamos por
vê-los longos e elegantes, encimados por guedelhas secas e despenteadas, cada
vez mais descabeladas até à tonsura final. O remate chega quando, já sem
folhas, a serra lhe põe fim. Centenas de cotos povoam agora canteiros que viram
crescer as palmeiras há largas dezenas de anos ou abriram as suas entranhas, há
meia dúzia, para nelas serem depositadas as raízes daquelas enormes plantas
transplantadas de origens longínquas.
A morte, toda a morte, é triste. Mas,
além de mágoa, deve impor honra e respeito. A das árvores é suposto ser digna, -
morrem de pé! – diz-se. Mas não a
destas. De tão público, o seu sofrimento chega a ser despudorado. Patenteiam, a
olhos vistos, uma agonia sem remissão, lenta e pesarosa que a algumas almas
sensíveis inspirará dó, mas à maioria repulsa e vontade de as ver desaparecer.
As exóticas arecaceae, a espécie
das canárias, a mais comum, estão a deixar-nos, vítimas do escaravelho
vermelho, que, diz-me quem viu, é bicho execrável e repugnante que mina o âmago
da planta até à morte. Proveniente da Ásia, começou a chegar à Europa em 1980
através precisamente, ironia das ironias, do comércio de palmeiras.
Não tivessem vindo as “novas”
velhas palmeiras e não estaria cá agora o seu algoz.
Os trinta anos de esplendor estiveram
sempre corrompidos pela doença latente. A
fatalidade era certa, o tempo se encarregou de a pôr à tona.
Isto que acabo de narrar são
factos, nada tem de inventado, muito menos de mágico.
Porém, depois de lido, soa-me a
parábola. O período de trinta anos, o aparato e alvoroço inicial, o luxo e
exibicionismo contagiante, primeiro, a enfermidade disforme e a morte aviltante,
depois. Tudo me lembra a minha querida terra, o tão sofrido povo português.(MFM)
Picasso, La Fábrica de Horta, 1909 |
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