Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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19 de outubro de 2018

Nabantina e Gualdim Pais





« .... Ficou existindo sempre uma velha rivalidade entre a população das duas margens, facto que se justificaria aqui bastantemente por uma natural emulação entre o passado e o presente, mas que aliás é vulgar em outras cidades e villas.
...
Os thomarenses designam os habitantes de Além da Ponte pelo epitheto irónico de «hespanhoes» e ao bairro d'aquella margem dá o povo da cidade o nome de Hespanha, desdenhosamente. N'outro tempo a rivalidade era mais viva e fasanhuda. Havia frequentes conflictos, tiroteio de impropérios e  de pedradas.
Hoje ainda se armam alguns motins nocturnos, por causa das raparigas que trabalham na Real Fabrica de Fiação, situada na margem esquerda, e por causa do antagonismo das philarmonicas.
As operarias, que são das aldeias próximas, pernoitam durante a semana em Além da Ponte e só ao domingo vão a casa.
Rapazes da margem esquerda e rapazes da margem direita requestam-nas á porfia. D'esta concorrência amorosa resultam altercações, pugilatos, "pancadaria".
Os hespanhoes teem a sua philarmonica, que se intitula «Gualdim Paes».Os thomarenses teem outra philarmonica, que se chama «Nabantina». Custa-me não poder dizer, para evitar a pornographia, a designação popular de uma e outra philarmonica.
Quando os músicos da «Gualdim Paes» ou da «Nabantina» estão fardados, acham-se sempre em occasião próxima de se desfeitearem uns aos outros. O uniforme dá-lhes bravura.
Ha annos, encontrando-se as duas philarmonicas em uma festa na freguezia de S. Miguel de Carregueiros, pegaram-se uma com a outra e quem salvou a situação foi uma mulher de Thomar, que varreu a feira, pondo em debandada os bravos antagonistas. Esta mulher ainda hoje vive. Chamam-lhe, e com razão, «Padeira de Aljubarrota».
Fora da formatura, despida a farda, a rivalidade afroixa. Há rapazes de «Além da Ponte» que fazem parte da Philarmonica Nabantina, e rapazes da cidade alistados na Philarmonica Gualdim Paes..

(Alberto Pimentel, "Portugal Pittoresco e Illustrado, A Extremadura Portuguesa, Primeira Parte, O Ribatejo", pag. 423 a 452,. Empreza da História de Portugal, Lisboa, 1908



Assim descrevia em 1904, Alberto Pimentel, as relações, entre as gentes das duas margens do rio, em Tomar, e entre os músicos das duas filarmónicas: A Nabantina e a Gualdim Pais. Quem não se lembra de as ver desfilar debaixo de girândolas e foguetes no largo da estação de Paialvo a acolher personalidades, ou nas saudosas marches aux flambaux  ao cair do luar, aqui, neste blog, no final do sec.XIX ? Pois, elas são já centenárias, a Nabantina desde 1874, a Gualdim Pais sucessora da "Thomarense" desde 1877!

Nem na minha geração, nem sequer na de meus pais, se verificavam já episódios como os descritos. Mas lembro-me de ouvir falar neles aos velhos do meu tempo, como coisas de velhos dos tempos deles. Ainda os ouvi dizer, como graça, "para Espanha só depois de morto" (porque, diga-se para quem não é tomarense, em "espanha" se localizava o cemitério), quando já era "bem" e moderno morar-se em "além da ponte" e a cidade ameaçava estender-se maioritariamente para aquele lado, como depois se concretizou e com tal intensidade que a outra margem definha e quase morre, não fora o ter-se tornado numa montra de pechisbeque para turistas! Um fim de vida muito, muito triste. Pelo menos para mim!
Quanto às duas bandas, a coisa passava-se como o autor conta. As minhas duas avós, cada uma delas moradora na sua margem do rio, uma no Alto do Pissarra, a outra na Rua Larga (de além da ponte) depois republicanamente crismada de Marquês de Pombal, as duas circulavam sem qualquer obstáculo entre os bailes das duas colectividades. A avó materna, descendente de comerciantes e artífices, de além da ponte,  associados da Gualdim Pais, casou-se com um homem da Nabantina, e todos os homens da família, mesmo os da família dela, passaram a ser músicos desta última. A cidade era só uma, e as rivalidades das filarmónicas era um assunto lá delas, e, justamente, só quando estavam fardados!
Talvez por o meu avô ter sido dirigente da Nabantina (ainda lá continua, na galeria de retratos, no seu quadro de esquadria à banda, sempre me lembro de olhar e ter vontade de o ir endireitar, não fosse a altura que mo impede) a minha mãe, em 1974, esteve presente na cerimónia de celebração do centenário e eu acompanhei-a.
Foi uma cerimónia como tantas, com discursos, comoções, brincadeiras e banda a tocar solenemente,  num salão a transbordar de gente, já não me lembro bem da cronologia. Sei que, a dado momento, estavam sentados, na mesa de honra, entre outros, o dr. Fernando (Nini) Ferreira e o dr.  Manuel Guimarães que apresentava um livro do primeiro, sobre precisamente a homenageada, intitulado "Anais da Sociedade Banda Republicana Marcial Nabantina."




Depois das palavras da ordem sobre o autor e a obra, Manuel Guimarães termina anunciando que há meia dúzia de exemplares do livro, autografado pelo autor,  para oferecer. Seria contemplado quem fizesse  as melhores quadras, que teriam que conter obrigatoriamente o verso "e a Nabantina a tocar", e toda a assistência foi convidada  a concorrer.
Imediatamente, começa uma batalha verbal, sussurada, entre mãe (a minha) e filha, para que eu produzisse uma quadra, "coisa simples", "que não me custaria nada" pois, era garantido para a progenitora, " que íamos ganhar o livro", assim aparecesse a quadra.
Ora eu, que, hoje, concordo  com ela, não que a vitória estivesse certa, mas que não se estava a pedir nenhum poema, nenhuma obra de arte, mas apenas uma pequena graça que serviria para homenagear a Nabantina, não tinha, na época, nem idade nem cabeça, para alcançar essa leveza das coisas. Tudo era sério e tinha de ser perfeito. Fazer uma quadra? Eu não fazia quadras! Fazer qualquer coisa? Eu não fazia qualquer coisa, ou fazia ou não fazia! E, agarrada à arrogância da certeza e perfeição de tudo,  que é apanágio dos jovens, e dos  aborrecidos pior ainda, sim, porque eu era uma chata (em poucas coisas, é verdade, mas nessa era), mantive-me na minha. Mas a minha mãe tinha ainda a última cartada, e jogou, jogou aquela carta certeira que há-de existir sempre no baralho das mães, enquanto houver mães, a chantagem: - Muito bem, não fazes. Podíamos sair daqui com o livro. Era uma homenagem ao teu avô, que adorava a Nabantina e para quem seria um orgulho saber que a neta escrevera uma quadra sobre ela. Mas esse teu feitio de só fazeres o que queres e não pensares nos outros, só consegue dar desgostos a quem confia em ti!
E é preciso dizer o resultado? Lá levámos o livro para casa. (MFM)







                                 

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