Naquelas casas naquele tempo não havia “lixo”, aquilo a que hoje
em dia se chama lixo doméstico que é escolhido cuidadosamente atendendo à origem, e com todo o
empenho colocado em inúmeros compartimentos diferentes “para
reciclar”. É claro que haveria o equivalente, proveniente das limpezas e da
cozinha mas não se chamava lixo, agora que penso nisso, nem sei se teria algum nome particular. Havia os “restos” da preparação da comida, o que estava cru, cascas de batata, legumes,
etc., e os “restos dos pratos”, coisa quase inexistente pois a
gente só se servia da quantidade que pensava ir comer e havia que ter sempre
presente aqueles que queriam comer e não o tinham e por isso teríamos que comer tuuuuudo o que estava no prato (confesso que a causalidade entre os dois fenómeno me escapava quando era muito pequena, mas tinha tanta pena dos meninos que me contavam que tinham fome que, apesar de não perceber como, para não lhes piorar a situação, obedecia e comia- -assim nos era inculcado o sentimento de culpa desde a infância, pena foi que, em vez de ser só para nosso beneficio o não fizessem também para intervir e procurar o dos outros).
Mas, enfim, como não eramos obrigados a comer ossos, espinhas, ou quejandos, sempre sobraria qualquer coisa para o Liró e para o Preto. Outros habitantes lá de casa, o primeiro gozando do previlégio de ter uma identidade, graças ao meu irmão que o baptizara, o outro, que não tivera essa sorte, era apenas nomeado pelo que a natureza o distinguira, sendo os dois considerados seres assim a meio caminho entre os cristãos o gado e a criação. A criação compunha-se de tudo o que tinha pena e mais os coelhos (estes nunca lá os conheci, parece que ficara toda a gente com repugnância dos ditos, depois da chegada da grande praga da mixomatose nos anos cinquenta), o gado eram os outros animais, e os cristãos seriam os sobrantes quer o fossem ou não (ali, como é sabido, eram, de grande qualidade).
Era doutrina vigente, tudo e todos terem a sua função e o
seu dever a cumprir. Até eu, a mais protegida, tinha responsabilidades, ia à
escola e fazia recados. Quanto aos animais, com excepção da mula, que fazia
pela vida puxando a carroça e o engenho, os outros, cumprida a sua missão de
pôr ovos, dar leite e reproduzir-se, mais tarde ou mais cedo obedeciam ao seu
destino e iriam parar à panela, à nossa ou à alheia. No cumprimento daquele preceito, os dois gatos, ao contrário do que é habitual num pet doméstico (já naquele tempo o era), não eram apaparicados nem senhores de lugar de cadeirão nem mantinha, tão pouco estavam autorizados a pôr as patitas dentro de casa. Não tinham, portanto, direito a pertencer à classe inactiva, como ninguém por ali tinha. Também eram obrigados a dar o seu contributo para o bem
comum. Utilizando as suas competências, obviamente, para o que era mister (o
que eu gosto desta expressão!) incentivá-los não lhes dando de comer. Só assim
se entusiasmariam a atacar a rataria. Daqui se depreende que nem eles eram
estúpidos para fazerem esse trabalho por puro prazer (dizer-se que gostam só pode
ser calúnia, logo eles, tão amigos da limpeza, gostar de tarefa tão asquerosa?) nem, muito menos, a avó que lhes conhecia de ginjeira a manha e
sabia do que eram capazes. E assim, mesmo que houvesse pratos a transbordar de
espinhas de pescada cozida ou carapau grelhado, aqueles trabalhadores incansáveis
não tinham direito a refeição completa, fossem buscar o segundo prato aos
sótãos e lugares recônditos como era de sua obrigação! Acho que a avó nunca
soube que parte da minha tigela de leite (coisa longe do meu agrado desde sempre) do pequeno almoço e do lanche tendia a contrariar, na medida do que me era possível, esta estratégia tão bem delineada.
Mas, voltando aos restos, os provenientes da confecção da
comida eram encaminhados directamente para os consumidores seguintes, naquele
nosso ciclo de vida. As galinhas, embora estas com direito ainda ao seu capricho, não
adianta, acabam por estragar, mais vale ir já para os porcos e estes
últimos com quem não se fazia cerimónia nenhuma, até porque não se davam ao
respeito e não desdenhavam absolutamente nada. Criaturas absolutamente sôfregas,
incapazes de parar de comer fosse o que fosse, viesse de onde viesse, mesmo as
ricas espinhas de carapau esbulhadas ao Liró e ao Preto. Recordando aquela avidez
cúpida, não posso deixar de compreender aqueles povos nossos conhecidos que rejeitam
esta carne por impura.
De facto!!! Mas, pensando melhor, antes assim, a bela costeleta
do cachaço e a orelha de coentrada, o que é que têm a ver com o caso, se a gente não
pensar nisso? Onde é que já vai o pecado original da coisa? Ser cristão é muito
libertador.
Haveria também os desperdicios provenientes do que não vinha da horta ou dos nossos animais e se adquiria na mercearia ou drogaria, que muitas vezes era um único local.
Nas mercearias não existiam produtos empacotados como agora, tinham elas tulhas de onde nos miravam e rescendiam os mais variados produtos, que eram daí retirado com uma pá, colocados em cartuxos de papel, caso do grão e feijão, arroz, massa de meada, levados à balança e aí ajustado o peso desejado. Em grosso papel pardo embrulhava-se a manteiga e o atum de conserva, por exemplo. Também assim era embalado o sabão, o azul e branco e o amarelo. O papel dos cartuxos e o dos embrulhos, era guardado para embeber o azeite dos fritos, peixe, batatas fritas, croquetes e, quando já não tinha utilidade, queimado para ajudar a atear o lume. Tudo era aproveitado. Não havia plástico, pelo menos não embalagens. Já apareciam sacos desse material, verdadeiros tesouros, lavados e postos a secar para voltarem a ser usados. Os únicos materiais não orgânicos que poderiam ser dispensados seriam o vidro ou as embalagens de lata, mas nunca, serviriam para colocar coisas, por exemplo, para o avô dividir os pregos por tamanhos ou pôr os mais variados liquidos ou compotas.
Lembro agora as lojas dos meus encantos, as drogarias, lugar paradisiaco de cor, confusão e cheiro. O cheiro daqueles sítios era único, e para mim completamente perdido no passado. Até que, há algum tempo, em Viseu, o reencontrei. Numa rua estreita e bonita, que depois passou a ser maravilhosa, entrei numa daquelas lojas, que reconheci por toda a parafernália que se alcandora pela porta e se estende sempre pela rua, para procurar um produto que procurava há anos. Encontrei-o claro, e reencontrei o cheiro. Ele provirá, no mundo real, de um produto ou de vários mas, para mim, cá no meu mundo de Dorothy Gale, ele surge, o cheiro nasce da visão louca de mil e uma cores e coisas desencontradas, do pente vermelho, do escadote, do alicate azul e da sertã cor de burro quando foge enfiada no cabo da vassoura laranja, da rede da capoeira e do shampoo que representa as últimas tendências em encaracolamento de cabelo! Nesta confusão de sentidos, os meus olhos cheiraram na primeira drogaria, depois noutra, mais outra, de tal forma que Viseu ficou, para sempre, a ser uma terra querida devido às suas drogarias encantadas. (MFM)
(continua)
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