O Joaquim
Na aldeia havia mesmo coisas
inéditas para mim. As uvas, as nêsperas, os figos, as romãs, os comboios. A principal era o comboio, ou seria o frio? Pensando bem não
sei o que mais me espantou. O que desagradou mais, sei, o frio, aliás o calor
também não era igual ao que conhecia, era tudo muito extremo e mau por ali, em
termos de clima. Os joelhos roxos, as frieiras e os quilos de cobertores na
cama para obter algum calor, tudo isso o meu corpo associa àquele primeiro
Inverno da minha vida.
O comboio foi uma surpresa
engraçada, era o encontro com um personagem fantástico, só conhecido dos livros …pouca terra, pouca
terra … e tornou-se um grande companheiro. Quantas noites eu acordava de noite,
envolta em pensamentos tristes e não era o tanger da campainha da passagem de
nível e a posterior uivo do comboio que me sossegavam?
O comboio estava indelevelmente
agarrado àquela terra, ou a terra ao comboio. Talvez já não se vivesse
totalmente em função dele, mas ele era parte integrante da vida daquela gente.
E da morte também. Por vezes o comboio parava, abruptamente, sem ser na
estação. Algo tinha acontecido. O rapazio corria a saber novidades. Ao outro
dia, ou mesmo no próprio, se o horário da escola o permitisse, no recreio
desfilavam as novas. Fora fulano ou então um desconhecido. Descreviam
minuciosamente o que tinham visto. Mas a história variava pouco. As botas
longe, os pés despegados, os miolos aqui e ali. Desconfio que cada um deles
teria uma única vez visto o triste espectáculo e depois o replicava. Mas os
suicídios, nunca ouvi falar em acidentes, com recurso ao comboio sucediam-se.
Aliás não era raro ouvir contar, no recreio da escola ou no caminho para a
catequese, sempre com detalhes escabrosos que os infantes meus contemporâneos
pareciam escolher especialmente para mim, que alguém acabara com a própria
vida, fosse na linha do comboio, enforcado numa oliveira ou deitado a um poço.
Consequências da existência do
comboio e da respetiva estação eram as pessoas e famílias que viviam em função
dele. Eram ferroviários na generalidade, com profissões especificas que
poderiam ser, por exemplo, fogueiro ou agulheiro (seja lá isso o que é, ou foi,
são ocupações que vivem na minha memória como de ferroviários). A uma
dessas famílias pertencia a C. de que já aqui falei, que eu
tinha como velha solteirona, que vivia
com os pais numa casa da CP de dois pisos, escura e feia, perto da passagem de
nível. Desconheço mesmo como fazia parte das relações da minha avó. Naquela
terra nunca me pareceu que as pessoas da família se dessem com as dos ferroviários. Mas, como a C. subira socialmente sendo
professora, talvez isso a tornasse merecedora. Talvez, mas não muito. Recordo-me
de a minha avó dizer, à minha frente, a C., -não te esqueças de dizer à C. que…
, quando diria sempre a sr.ªD.Branca, a sr.ªD.Amélia, outras professoras, uma
delas até família. Esta dispensabilidade do sr.ªD. relativamente à C. não
abonava muito a favor da consideração em que era tida.
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Fica assim a história coxa ... |
Sempre a ver com o comboio, outro
marco importante da terra eram as “passagem de nível”. Como todas aqui eram
“vigiadas”, delas faziam parte, também, uma casa baixa e branca onde morava a “guarda”, mulher encarregue de fechar as barreiras de
acesso à estrada e de se pôr de “bandeirinha” na mão, perigosamente, no meio do
ruído e do turbilhão, ao lado da linha enquanto o comboio passava. Morava com toda a
sua família, numerosa muitas vezes, e, assim, daquelas casinhas partiam pela manhã muitos pequenos todos os dias para a
escola. Um deles, filho da guarda da passagem de nível da estação, era um rapagão,
o Joaquim, Jaquim da passage, seu nome de guerra, rigoroso capitão da malta, de melena rebelde e olhar desafiador, sempre de fisga na mão, mais amigo de andar aos pássaros do que de escola e que, talvez por isso, apesar
do tamanho e da idade, andava na 2.ª classe. Constava ser também, embora discreto, um admirador meu, “gostava de mim”, diziam-me as minhas colegas. Sendo que o caso
nunca ficou apurado, fosse por pudor ou por não ser verdade, certo é que, com muita
pena minha, não tenho mais para dizer sobre este frustrado idílio infantil.
Fica
assim a história coxa, sem o complementosinho romanesco que assenta sempre bem nos contos sobre crianças solitárias.
Como consolo só posso socorrer-me, se não tem o mesmo impacto tem ao menos um final feliz, da evolução sentimental, e de mudança de estado, ocorrida na vida
da C. que, afinal, nem era velha nem ficou solteirona. Anos mais tarde veio a
casar com alguém conhecido desde sempre da minha família materna e da minha avó de Porto da Lage, todos tomarenses. Contava esta, agradada, que os noivos tinham ido lá a casa participar o casamento, o que ela muito prezara pela consideração demonstrada, mas que, depois, tendo ficado a dizer-lhes adeus do cimo da escada, enquanto os dois, de braço dado, iam metendo pela horta, direitos à pequena ponte, vira algo que já não lhe parecera tão bem. Não é que ele, a meio do caminho, passara o braço por sobre os ombros da futura esposa e encostara a sua cabeça à dela? Sabendo que estavam a ser observados? Era escusado! (MFM)
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