Mateus José Alves, bacharel
formado em Coimbra, ocupava despreocupadamente as suas manhãs passeando de
caleche até S.João da Foz e as suas noites jogando bilhar no Clube enquanto
discutia as vantagens da união ibérica e a pouca qualidade do parlamento
português, quando o amor o assaltou. Pedida a menina ao cioso pai e ouvida a inesperada recusa, o infeliz Mateus percebeu, então, que não tinha modo de
vida. Ser o filho regalado do sr. Macário Alves - merceeiro da cidade do Porto –
que era também mesário da ordem terceira de S.Francisco, tesoureiro do hospital
do Carmo, de que era exclusivo fornecedor, irmão benfeitor da venerável ordem
do terço, etc, etc, não o habilitava afinal a aspirar à mão da filha de um
proprietário de Cabeceiras de Basto que protestava não a entregar a filho de
especieiro, mas sim a alguém distinto que tivesse carreira que o engrandecesse.
Em vistas disso, tanto magicou o
desconsolado amante à procura de carreira que o engrandecesse aos olhos do esperado
futuro sogro, cotejando as suas habilitações com algo a que pudesse aspirar,
que se achou capaz de ser deputado. Procurou, assim, no pai, as influências necessárias,
o qual logo tratou de as arranjar, organizando lá em casa reunião com seis das
principais predominâncias do ciclo eleitoral. Reunião que decorreu como segue (MFM).
« —
Mateus, estes senhores vão arranjar votos para ti, com a condição de tu lá em
Lisboa lhes arranjares
umas coisitas que eles querem do governo.
—
Tudo que humanamente se puder fazer —disse o bacharel. — Diga cada um dos meus
nobres amigos o que pretende.
O
mais grave dos seis, falou assim:
— Eu
queria que o sr. doutor arranjasse uma comenda, ou uma coisa assim para meu
primo António,
que tem a loja da esquina da praça de Carlos Alberto, e já na outra eleição
andei a trabalhar
pelos históricos, ou que diabo são, e por fim de contas a comenda não veio.
—
Conte seu primo António com a comenda; e V. Ex.a não quer nada? — disse o
candidato.
— Eu
só queria que o sr. doutor dissesse lá ao governo que mandasse cortar as
árvoreque plantaram
na praça e me tiram a vista à minha casa.
—
Serão cortadas as árvores.
— Eu
— disse o segundo — tenho um filho formado a comer-me há doze anos as meninas dos
olhos, e queria que o sr. doutor lhe arranjasse um despacho para delegado.
—
Pode dizer a seu filho que está despachado.
Falou
o terceiro:
—
Queria eu que V. Ex. fizesse com que a estrada em vez de passar em Guinfães,
fizesse uma
curva por trás da igreja de Ranhados, que me ia passar mesmo à porta.
—
Nada mais fácil. Terá V. Ex.ª a estrada à porta. E o meu amigo que quer?
— Eu
queria que se botasse a terra o conselho de saúde, sendo possível.
— É possível:
logo que eu chegue a Lisboa o conselho de saúde há-de cair para nunca mais se levantar.
O
quinto disse que tinha uma questão de grande importância no supremo tribunal,
depois que a perdera em todas as instâncias. O bacharel teve a paciência de
escutar os direitos do demandista e lavrou logo o acórdão.
Finalmente,
o sexto eleitor pediu a bagatela de um caminho de ferro a Mirandela, por Murça, onde
ele tinha uma herdade e parentela que nunca vira por falta de comunicações.
Maravilhou-se
Mateus da parcimónia das pretensões e animou-os a exigirem mais alguma cousa.
Tomou assentos na sua carteira, e deu um abraço em cada um, quando todos à uma
lhe disseram:
— Está deputado o sr. dr. Mateus.
……….
.........
A candidatura de Mateus José Alves foi um triunfo!
À hora em que o humilde cronista das glórias
do bacharel Mateus escreve estas linhas, estouram em Campanhã, onde Macário tem
uma fábrica de curtumes, centenares de foguetes, e tilintam vertiginosas as
sinetas da igreja. Consta-me que na tenda de Macário todos mataram o bicho
gratuitamente. Agora, resta-nos ver sair um Pombal detrás de uma ancoreta de
jeropiga!»
Camilo Castelo
Branco, Cenas Inocentes da Comédia Humana, 1863