Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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15 de novembro de 2019

Estalagem I



A estalagem existente em Porto da Lage de que já falámos aqui e aqui, que beneficiava do facto de se localizar à   beira da estrada real , e da qual  tão bem nos falou Ilídio Mota Teixeira  que defendia que aquela se localizara aqui, teria, eventualmente sido criada em 1747, quando da licença concedida pela Câmara de Tomar, a  Manuel da Silva, "de Porto da Laje, para usar da sua estalagem no forma do seu Regimento, e poder vender cevada a 240 réis o alqueire, e palha a 20 réis a joeira"

Porém, neste assento de baptismo de António, em 1717, verificamos que os pais, João Jorge e Joana da Silva, moravam na Estalagem de Manuel Vaz. Este Manuel Vaz, morador no Casal de S.Silvestre, localidade da  freguesia de S.Silvestre, seria, então, dono de uma estalagem. Mas onde se localizaria ela? Uma vez que o assento abaixo consta na freguesia da Madalena, a dita estalagem só poderia pertencer a esta freguesia. Daqui resulta que Manuel Vaz era proprietário de uma estalagem sim, mas na Madalena. De outros assentos ficamos a saber que Manuel Vaz era pessoa muito presente em Porto da Lage, sendo padrinho dos filhos dos poucos habitantes aí existentes, a partir de 1703. Concluo eu, portanto, e acho que não especulo muito, que a estalagem do nosso (só pode ser nosso, já falámos tanto dele que a intimidade está estabelecida) Manuel Vaz só pode ser a estalagem de Porto da Lage, até porque na freguesia não tenho noticia de existência de outra. Assim sendo, a estalagem é mais velha do que se pensava, talvez já existisse no sec.XVII, e a licença de 1747, dada a Manuel da Silva, seria uma nova licença, um up grade, segundo um novo Regimento, quem sabe. (MFM)




13 de novembro de 2019

Outros tempos na Antiguidade




Já lá vão cinco anos (cinco, confirmei agora!) que falei aqui sobre o meu irascível e profético professor de Físico-Química, nos anos idos em que frequentei o colégio.

Revejo-o agora! Lá está ele conforme o recordo, só o chapéu está a mais, relativamente à figura que se passeava na sala, em frente ao quadro, reflectindo sobre os males do mundo em geral, e da gente que tinha à sua frente, em particular. O seu interlocutor mostra um ar sorridente ao ouvi-lo. Sempre é padre, quiçá mesmo um frade, cumpre o seu ofício!

Mas como para me mostrar que nem tudo era mau, vejo, também,  abaixo, uma figura querida de avô bonacheirão, culto, permissivo, compreensivo mas rabugento, truculento mesmo, quando provocado. Um homem aparentemente tranquilo, apagado até, que se empolgava a reviver as guerras da antiguidade, as Púnicas, a primeira, a segunda e a terceira, com o grande Aníbal dum lado e Cipião o Africano, do outro, a desfilarem à nossa frente, à compita com a do Peloponeso, com o  enorme Péricles, governante como nunca houve nem haverá outro, a defender a sua cidade (atenção! eram cidades-estado) contra a poderosíssima Esparta, já para não falar das do inexcedível Alexandre que, com o seu cavalo Bucéfalo, que só a ele deixava montar, fundava um império! O ambiente das aulas de História Universal (chamava-se assim a disciplina, salvo erro) indiciava, por vezes, também, um pré estado de guerra. O professor, todo embrenhado nas suas descrições das marchas de Aníbal mais os elefantes e na triste e lamentável devastação de Cartago, e as alunas que, faça-se-lhes essa justiça, conseguiam estar atentas meia aula mas não todas na mesma meia hora, transformavam a sala num receptáculo de um cochichar sistemático no qual sobressaía a voz grossa do mestre. Se, por acaso (graças aos Céus não aconteceu muitas vezes e por isso estou aqui para contar), ele acordava do seu enlevo e se apercebia do zum-zum à volta, a sua paciência de touro manso, que nos ouvia sempre, perdoava e consolava até, quando os outros professores se queixavam (era o director do colégio feminino), a sua paciência, dizia eu, esfumava-se e os berros saíam-lhe vibrantes da garganta, ou, muito pior, víamos soltar inesperadamente, qual leão sorrateiro,  aquele corpanzil enorme do estrado abaixo e correr aos tabefes quem lhe parecesse que tinha a boca aberta. Tabefes? aquelas mãos  não davam tabefes (observem-nas na foto e imaginem!). Um valente chapadão, o único da minha vida, foi o que eu levei, a ponto de me saltarem as lágrimas. E lá fiquei, mais humilhada que dorida, e a dor não era pouca! Que nem um pobre cartaginês escravizado às mãos de qualquer centurião romano! (MFM)











































Fotografias retiradas daqui .

11 de novembro de 2019

Capela de S.Sebastião



Eu, o meu pai e a minha avó nascemos na mesma casa, consta que no mesmo quarto, da rua de S. Sebastião, em Tomar. É uma rua insignificante, estreita e curta, que passa quase despercebida logo à direita de quem entra na cidade pela estrada de Paialvo. Tem, por isso, inicio na rua da Graça, a nossa casa era a primeira deste lado fazendo esquina, e vem, ou vinha, morrer na Várzea Grande. E digo, vem ou vinha, porque a Várzea Grande tendo diminuído com o tempo, parece estar, no momento em que escrevo, novamente maior depois de terem demolido a antiga "messe dos oficiais" que por ali esteve pouco mais de cinquenta anos ao lado da igreja de S.Francisco, e que, durante esse tempo "tapou" as últimas casas, casas pobres e baixinhas, desta minha rua, que, agora, como dantes, se encontram desafogadas, com vistas, outra vez, para a Várzea.

                                                             


O nome da rua dever-se-ia a esta ir dar à capela de S.Sebastião? Não sei, sei é que era o lugar de culto da minha gente, que, pelo menos desde o fim do sec.XVII vivia por esta zona, o Alto da Pissarra,  pela Rua dos Arcos e Várzea Grande, e aqui vinham à missa e participavam nas festas religiosas, um dos meus antepassados celebrou mesmo nesta "ermida" o seu casamento, em 1780, com licença especial, "precedendo alvará de fazamento e especial licença do ilustre reverendo Ouvidor Geral e administrador da Prelazia Frey João Alves do Couto". A minha avó e a irmã contavam-me das imagens dos "santos" que lá existiam, uma das quais, de que me não me lembro o nome, estava entregue à minha tia que tinha a seu cargo lavar-lhe e passar a ferro as vestimentas de seda, veludos e rendas, coisa trabalhosa mas de que muito se envaidecia, uma vez por ano,  de forma a ficar toda catita para não sei que solenidades do calendário católico (quem dera ter estado mais atenta ou ter tomado notas!).
Esta capela ficava aproximadamente onde hoje se encontra a estação de caminho de ferro, numa alameda ao fundo da Várzea Grande (na fotografia abaixo contornei a vermelho o local provável), onde também se situavam um coreto e um jardinzinho dentro do qual "se levantava uma agulha de pedra", cujo significado tanto Alberto Pimentel como João Maria de Sousa ignoravam (ver abaixo extractos dos seus livros). 
Esta "agulha de pedra" já em 1712  era mencionada pelo Padre António Carvalho da Costa na sua Corografia Portuguesa, como o magnifico padrão da Várzea Grande  que é uma agulha sobre dez degraus com as quinas reais e no remate uma cruz sobre uma esfera.
A origem deste padrão, diz-nos Amorim Rosa (ver abaixo texto), estará no reconhecimento da Câmara de Tomar a Filipe III  por este rei ter decidido a favor daquela numa pendência mantida com a Ordem de Cristo. Actualmente, designado de padrão filipino, encontra-se no centro da Várzea Grande.(MFM)



Fotografia de Silva Magalhães c.1870


A vermelho o local onde se situaria a capela e o padrão filipino, em 1870


O mesmo local no inicio do século XX.




O padrão Filipino ainda no local anterior mas, aparentemente, já sem a capela de S.Sebastião.




Alberto Pimentel, "Portugal Pittoresco e Illustrado, A Extremadura Portuguesa, Primeira Parte, O Ribatejo", pag. 437. Empreza da História de Portugal, Lisboa, 1908




Extracto da pag. 12 de Noticia descriptiva e histórica da cidade de Thomar, 1903, de J.M.Sousa





Padre António Carvalho da Costa, Corografia Portuguesa, etc., 1712, Tomo III, pag.155 (extracto)

«Em 1562 a Ordem Franciscana do Convento de Santa Cita, que já tinha uma casa em Tomar, onde convalesciam os seus enfermos, porque era seu desejo edificar um Convento na vila, veio a conseguir licença régia e a cedência do terreno necessário na Várzea Grande, por parte da Câmara.
Todavia, como o então Grão Mestre da Ordem de Cristo se opôs à cedência do terreno, declarando que a Várzea Grande era propriedade da Ordem de Cristo, a Câmara não se conformou e levou a questão aos tribunais.
O processo arrastou-se por mais de um ano, até que em 15 de Maio de 1624, Filipe III decidiu a favor da Câmara, o que levou a edilidade, como reconhecimento do que entendeu ter sido “uma justa sentença”, a mandar erigir, em 25 de Novembro de 1627, um padrão (padrão filipino) ao meio do velho Rossio da vila, actualmente na zona central da Várzea Grande, para onde foi transferido há anos.
Os Franciscanos foram então autorizados a edificar o Convento, com a condição de não abandonarem o velho Convento de Santa Cita.
Iniciadas as obras em 1625 (e não 1628 conforme consta na lápide), o Convento de S. Francisco veio a ficar concluído em 1660, com a construção da torre, mandada fazer pelo reverendo padre Manuel Esperança, então ministro providencial…»

O Padrão Filipino na localização actual
Fotografias de fundo Silva Magalhães, Gabinete de Curiosidades de Tomar, identificadas e deste Blog.

30 de outubro de 2019

Estalagem



Entre Janeiro e Março de 1669, Cosme III de Médicis, Grão Duque da Toscana, faz uma viagem por  Portugal acompanhado por uma comitiva que incluía escritores, médicos, músicos, cozinheiros e um desenhador e arquitecto italiano de nome Pier Maria Baldi, encarregado de representar em aguarelas todos os locais onde fizessem uma paragem.Desta missão surgiram 34 pranchas, cujos originais pertencem à Biblioteca Medicea Laurenziana de Florença, com imagens que reproduzem parte da paisagem urbana e rural de Portugal no se. XVII.
Em 2013 a Fundação Mário Soares editou um catálogo destinado a acompanhar a exposição dos desenhos de Baldi que teve lugar no Centro Cultural João Soares, Cortes, Leiria. No catálogo, as imagens são acompanhadas por pequenos trechos retirados dos relatos dos viajantes, sendo o principal relator Lorenzo Magalotti.
A viagem tem inicio a 9 de Janeiro em Campo Maior, atravessa o Alentejo e segue para Lisboa, via Setúbal, Palmela e Montijo. Após longa estada na capital, os viajantes partem a 18 de Fevereiro para o Ribatejo, passando em Tomar a 21 onde, além do Convento de Cristo observam "a Vila está numa planície, os edifícios são muito bons, as ruas direitas, umas paralelas às outras de uma ponta à outra da vila, compridas e muito bem pavimentadas..."e Baldi tem ocasião de pintar duas vistas panorâmicas da vila e uma terceira do Convento de S. Francisco. Essa noite, como é hábito na caravana de viajantes, é passada numa estalagem "chegou-se tardíssimo para almoçar na Estalagem da Gaita, que são duas pobres casas no meio de uma charneca montanhosa, desabitada, pedregosa, estéril, que nos acompanhou todo o dia, embora de quando em vez se encontrassem alguns raros olivais." No dia seguinte prosseguem para Norte, e a 1 de Março a comitiva deixa Portugal, em Caminha, onde toma uma lancha com destino a Tui. (MFM)

Estalagem da  Gaita (Venda da Gaita)  (Pedrogão Grande) em "Viagem de Cosme de Médicis em Portugal no ano de 1669"


À semelhança destas "duas pobres casas no meio de uma charneca montanhosa", em Porto da Lage, a estalagem também ficaria em nenhures," no meio de uMa charneca plana, quase um vale, no contraforte de umas pequenas elevações pedregosas  onde cresce o mato e raros zambujeiros e pinheiros bravos pontilham de algum verde a aridez do lugar. Dali avistei hoje, ao longe, alguns, poucos casais, e de cada um deles se elevava Fumo, sinal dos preparativos da ceia da família, que receberá os homens que recolhem a casa, cansados e fugidos da chuva, neste fim de dia de Inverno bravíssimo, em que a ribeira, cujo agitação tuMultuosa tão bem daqui se ouve,  já trespassou o seu leito duas vezes, segundo me disseram, inundando os campos e ceifando a vida a animais e a duas pobres almas, que o Senhor as tenha Consigo, etc, etc, *





*trecho de uma publicação que, inicialmente, alguém quis fazer crer ser do sec. XVIII e encontrada em lugar secreto, mas que, depois, se veio a descobrir ser apócrifo e inventado por uma criatura que tem a mania de se meter nestas coisas mas, completamente desajeitada (ou  pretensiosa), não resistiu a deixar por lá sinais que a vieram a denunciar.

28 de outubro de 2019

Descubra as Diferenças




Vendedor de Banha da Cobra em Lisboa, retirado daqui


À atenção da Liga dos Amigos dos Extintos Vendedores da Banha da Cobra (LAEVBaC), que eu proponho que se funde imediatamente, ou outra liga qualquer, que já exista, que se destine a defender a honra dos pobres que negociavam com o que sabiam, para sobreviver:

Na entrada de um centro comercial da capital, uma banca toda pronóstica (que saudades da minha querida madrinha Alice!), isto é, para quem é mais novo,  "toda armada" ao fashion do marketing actual, a condizer completamente com o ar "executivo" da respectiva vendedora, publicita uma instituição financeira. Passo por ela e, já afastada, oiço a voz irritada da vendedora:

- O senhor respeite-me, por favor, eu estou a vender um produto financeiro, não estou a vender banha da cobra! (MFM)






23 de outubro de 2019

Nicolau Dias



Em post anterior falei em Nicolau Dias, meu 11.º avô. Mostro agora como se desenvolveu a sua geração até chegar ao meu avô. Quatrocentos anos, onze gerações de homens e mulheres, descendentes directos, povoando as margens da Ribeira da Beselga!











Linha laranja: limite provável da comenda da Beselga; CN-Casal do Negro; CB-Casal da Belida


Nicolau Dias terá vivido, segundo os registos paroquiais, na Beselga, Ribeira, Além da Ribeira ou na Comenda do Saldanha, como era designada popularmente, ao tempo, a Comenda da Beselga, cujo comendador era frei António de Saldanha, a qual se estenderia por um território localizado predominantemente na margem esquerda da ribeira da Beselga, e numa estreita faixa da direita, entrando mesmo em Assentis. Nicolau terá nascido, quando muito, em 1530 (não teria mais de quarenta anos quando morreu pois tinha filhos muito pequenos e a viúva Benedita Mendes, voltou a casar em 1572, com Simão Luís, de São Silvestre,  e  tornou a ser mãe). 
Será, ele mesmo, um colono vindo de fora com destino a povoar estas terras abandonadas, ou já descenderá dos foreiros que amanhavam as terras da Comenda da Beselga, em 1504?
Até ao inicio do sec.XVI  as localidades referenciadas naquele território são Beselga, Ribeira ou Além da Ribeira, Casal do Negro, Paço ou Paço da Ribeira, no que diz respeito às situadas na freguesia da Madalena. As mais referidas, nos livros da Madalena, pertencentes à freguesia de S. Silvestre da Beselga (não há livros de assentos paroquiais desta freguesia), são a Ponte e o casal de S.Silvestre. 
Viviam também por ali com as suas famílias, Jerónimo Alves, o gaio e Pero Jorge filho de Jorge Anes galego, que poderão ter dado origem aos futuros casais dos Gaios e dos Galegos. Em 1574 Jorge Fernandes, de alcunha o frade,  morador na Beselga, casa com Catarina Jorge, belida de alcunha, e, em 1609 já surge a referência, num casamento, ao casal da velida. 
Hoje em dia, todas essas localidades ainda existem, com excepção dos casais do Negro e da Belida, que, embora desaparecidos, ainda estão identificados na memória das gentes. (MFM)

18 de outubro de 2019

Era uma mulher linda!




Dois sujeitos, com alguma idade (tinha de ser), perante a minha pessoa:

Primeiro *- Você não nega de quem é filha, é mesmo a cara da sua mãe!

Segundo * - Ah, não! A sua mãe era uma mulher linda, uma mulher vistosa!





* A ordem é a do diálogo, no hard feelings


17 de outubro de 2019

O Elefante Branco



                                                                    
Gravura de Hanno em um Panfleto de Roma (retirado da Wikipédia)







"14 de fevereiro de 1570 faleceu nicolau dias morador em beselga por ser freguês se mandou enterrar no adro da igreja de santa maria madalena fez testamento a que me reporto por sua alma mandou que ao enterramento se dissessem(?)  ? missas uma? cantada e duas rezadas _? ofertadas com pão vinho(?) cada um? segundo costume da igreja e um oficio inteiro de nove lições de sete salmos tudo segundo do costume da igreja e ao mês outro tanto e ao ano outro tanto cumprindo-se(?) a vontade do defunto e no cabo d(?) a quitaram conforme feito? ut supra. [aa] S.Lousado"(1)





"aos doze de fevereiro de 1576 faleceu simão fernandes pouzão fez testamento que mandou que ao dia de .... se dissessem quatro missas três rezadas e uma cantada ...... um oficio inteiro de nove lições  segundo do costume da igreja ..."


Nicolau Dias é meu 11.º avô pelo menos duas vezes, por via de seu filho António Dias, o preto (morador no "seu casal" ou no "casal de Nicolau Dias"), cujos  filhos Manuel Dias e Antónia Dias foram ascendentes, respectivamente, de meu bisavô Augusto Mota e de minha bisavó Maria José Sousa Rosasua mulher. Manuel casou-se, em 22.11.1620, com Domingas Jorge, do Paço, e, entre esta localidade e Além da Ribeira se desenvolveu a sua geração, enquanto sua irmã Antónia já teria casado com Álvaro Nunes, das Moreiras Grandes, em 27.11.1610, e dado origem a uma dinastia em Assentis que veio, no fim do sec. XIX, a  encontrar-se com os descendentes do irmão, em Porto da Lage.

Simão Fernandes Pouzão (de família talvez proveniente dos Pouzos, cujo nome terá adoptado como apelido para se distinguir de outros Fernandes contemporâneos), natural dos Casais, onde toda a sua geração permaneceu até 1712, quando se ligou a Catarina Lopes, do Carvalhal Pequeno, é meu 12.º avô, também por via de Augusto Mota .

Ambos, Nicolau e Simão, são homens da primeira metade de quinhentos. Nicolau morreu cedo, ainda com filhos pequenos, Simão já com netos, pelo que deveria ser mais velho. Já teria nascido quando, pelas ruas de Roma as multidões olhavam extasiadas o deslumbrante desfile, nunca visto, de jóias e tecidos exóticos, das onças, das panteras, dos leopardos, dos coloridos papagaios e do albino elefante Hanno? E, os dois, teriam sabido desta aparatosa "Embaixada" oferecida ao Papa pelo seu rei D.Manuel, para demonstrar a riqueza e a glória do seu país? E, alguma vez, terão dado conta de tanta grandeza ou terão beneficiado alguma coisa dela?
Tanto um como outro terão vivido a lutar com a natureza, a fazê-la produzir e a louvar o Senhor quando o conseguiam. O Senhor que não os poupava, que lhes trazia fome, seca, intempéries e doenças, lhes levava os filhinhos e a mulher de parto, deixando os restantes órfãos. Mas com Quem não deixavam  de contar na desgraça, a Quem agradeciam na bonança e se encomendavam quando partiam para o lugar que lhes traria, finalmente, a prosperidade eterna pela qual tinham esperado e penado neste mundo. Nenhum deles terá abandonado a sua terra ou a freguesia, não terão pertencido àquele povo néscio enganado pela Fama e Glória soberana, sagaz consumidora conhecida, de fazendas, de reinos e de impérios,  " Por quem se despovoe o Reino antigo, se enfraqueça e se vá deitando a longe?" como profetizava o sábio  velho do restelo.
Estes avós, meus e de milhares que os desconhece, fazem parte do povo que ficou, que não embarcou, mas que viu irmãos e filhos partirem,  em busca dos Hanno e dos papagaios em terras longínquas. Que esperou, velando pela pobre pátria, e os viu voltar,  às vezes, outras nem isso, ricos, pobres, estropiados, heróis ou mártires, e os acolheu. Ontem e sempre (MFM)




Nota: Extractos de assentos de óbito retirados daqui

(1)Agradeço a ajuda na leitura deste assento a Edmundo Simões, profundo conhecedor e estudioso das genealogias de Torres Novas e outras, aproveitando a ocasião para lhe agradecer, publicamente, a disponibilização de grande parte da árvore dos meus antepassados de Assentis, muitos dos quais se cruzam com os seus. 

23 de julho de 2019

A Grandeza do Fim






Num sábado do último mês de Março vi a porta aberta e entrei. Pareceu-me estar tudo em pé de guerra, em vias de, se não é agora, nunca mais, e saquei do telemóvel. 
- Então, está a fazer uma reportagem? - ouvi.
Contei o que queria, quem era. Não era preciso, eu era conhecida, olá se era, tão conhecida que estava tudo zangado comigo!
Por causa do que  aqui escrevi! Escrevi mas que, o meu interlocutor e mais um outro que se aproximou logo de seguida, muito mais zangado ainda, não tinham lido! Mas tinham ouvido dizer!
Segundo eles eu tinha opinado sem ter ouvido as duas partes, as coisas não eram como eu dissera. Não custava nada ter ido falar com eles! E também não era preciso insultar! Eu tinha-os comparado ao Trump!
Pois se estavam ofendidos só me restava pedir desculpa, não era minha intenção. Até porque eu não conhecia os senhores, não sabia quem eram, muito menos sabia que estavam ligados ao clube, a que propósito haveria de os querer ofender? Parece-me que não acreditaram nesta parte. Lá tentei dizer que não era jornalista, que não tratava de factos, que ressalvara bem "que tinha ouvido dizer", que tudo era uma extrapolação acerca de um princípio que para mim era vital: a democracia! Acho que acreditaram nas minhas boas intenções mas não nos resultados, sempre foram dizendo: - é preciso cuidado com o que se escreve, as pessoas só lêm o que querem ler! Concordei. 
Mas já agora, que estávamos ali, queriam dizer o que se passara que eu iria, desde já, pôr tudo no seu lugar? Que não, ainda estava tudo muito fresco, talvez um dia.
Foi, pois, este, o intróito daquele encontro naquela manhã de sábado, com aqueles senhores que não me deram autorização para dizer os seus nomes, mas que estavam, muito solidariamente a ajudar um amigo que recebera ordem de despejo.
Segundo contaram, há vários anos já, que um portalegense (agora não sei se diga ou não o nome,  que merece é indubitável, mas que é melhor não, é) sobrecarrega os seus encargos pessoais com mais um que já ascende a milhares de euros: fazer face às despesas do clube, entre elas, pagar mensalmente a renda ao senhorio.Sem conseguir obter as necessárias receitas junto de outros sócios, ele sozinho se encarregou de garantir que a sociedade continuasse a ter uma sede! Acontecendo, porém,  que a proprietária do prédio quisesse reaver o espaço arrendado, não achou mais ninguém a quem intimar para o deixar limpo do que quem lhe pagava a renda! E assim se viu o pobre homem em trabalhos! E por isso, ali estavam os amigos a despejar e transportar os despojos do velho clube para duas salas da desocupada escola primária, cedidas pela Associação do Paço da Comenda que, por sua vez, as detém cedidas pela Câmara Municipal de Tomar.
E eis as razões que me aqui trouxeram: 1-pedir desculpa àqueles senhores (que, apesar de mostrarem o seu desagrado comigo, nunca deixaram de se mostrar corteses e me  autorizaram a tirar todas as fotografias que quis) por não me ter feito entender no texto que escrevi, embora continue a pensar o mesmo; 2-mostrar o desprendimento e generosidade de um homem, que não me consta que seja rico, em prol do património da história da sua terra;3- deixar aqui testemunhos do fim de uma era. (MFM)








 

























Nota: Este acontecimento exigia imediata "postagem", mas não me foi possível por razões pessoais, primeiro, e depois, por razões pessoais também, mas que se prendem com a tecnologia que, graças a sabe-se lá o quê, assim como morre, ressuscita, e, aqui deu nova vida a um telemóvel fazendo aparecer do nada estas fotos que eu já chorava (MFM)


12 de fevereiro de 2019

6 de fevereiro de 2019

A Propósito



Parábola da pediatra como não há outra 
ou de como a culinária pode ser xenófoba 
ou ainda 
de como este blog também tem uma história para contar a propósito dos tempos que correm.




Virgem de Granada, de Fra Angelico (1387-1455)


Um casal com filhos, de quem sou muito próxima, vive há algum tempo em Itália. Por lá beneficia, como todos os residentes, do respectivo Serviço Nacional de Saúde cuja implementação, não sendo nacional mas regional, varia de qualidade segundo as regiões, sendo, na cidade a que me refiro, considerado excelente, o melhor do país. A cada família é atribuído um médico, o qual recebe os doentes no seu consultório, não existindo aparentemente diferença entre os particulares e os outros, as contas são feitas entre o Estado e o médico, o qual pode prescrever todos os exames e especialistas quando vir necessidade. Nesse caso, o doente só tem que ir à farmácia (sim, à farmácia!) e pedir para lhe marcarem o indicado. No prazo máximo de uma semana já estará no consultório do médico da especialidade ou a fazer o exame prescrito. À semelhança do médico de família é também atribuída a cada criança um pediatra, exactamente nos mesmos moldes.
Voltando à família em causa, esta viu-se aumentada com mais um elemento, a MT, que nasceu no inicio do Verão passado. Tal nascimento teve acompanhamento médico pré e pós parto, segundo a  mãe, fabuloso, tendo a menina passado a ter a mesma pediatra que os manos já tinham. Uma pediatra como não há outra, palavras da mãe com as quais, estou certa, todos os que me lêm irão concordar. A senhora, já considerada excelente à conta dos irmãos, reforçou a sua fama, e acho que também proveito, com a MT. Na consulta própria, penso, dos quatro meses, deu ela ordem para a bébé começar a comer sopas, enumerando o tipo de elementos que dela deviam fazer parte, como é costume. Fiada na sua experiência a mãe deu pouca atenção ao desfile de legumes e batata e cenouras e etc, e respectiva periodicidade, que a doutora ia enumerando, até que acordou da sua distracção ao ouvir – por fim, não se esqueça de ralar um pouco de parmasiano sobre o caldo. O quê, ralar queijo na sopa de um pouco mais que recém - nascido? Pensou a mãe para consigo, mas não retorquiu. Já conhece suficientemente bem os italianos!
E claro, o queijo ralado na sopa dos bébés italianos (coisa que a dita mãe averiguou ser hábito, não um devaneio da médica) passou a ser piada entre os tugas circundantes e tema de conversa no pátrio Natal seguinte; estava explicado porque aquela gente não passa sem o queijo, corre-lhe literalmente nas veias, juntamente com o leite materno, desde a mesma tenra idade!
E seguiu-se a consulta seguinte, a criança estava lindamente, auguri belíssima bambina, brava ragazza! toda a explosão italiana rompia da boca da exultante médica que, via-se, se envaidecia do seu contributo no feliz e visível resultado na criação de um bébé de catálogo – bochechas rosadas, olho azulado risonho, sorriso desdentado até às orelhas.
E seguiu-se a conversa, monólogo, conclusivo. A boa alimentação era tudo, via-se que a bambina comia tal e tal e tal, e mais o queijo e mais a farinha, etc. A tola da mãe (eu já lho disse!), constrangida com tantos complimenti não teve mão em si que não esclarecesse – pois que desculpasse a sr.ª doutora mas não sendo hábito português, de todo lhe esquecera o queijo, quanto à farinha, a mesma coisa, não costumávamos pôr farinha na sopa, logo, nunca pusera farinha na sopa da filha. – Como, a bambina não comia farinha!? Espantou-se.- Como é que ela conseguia comer a sopa sem queijo? Coisa insípida! Muito se admirava! - A menina comia só a farinha na papa, misturada com carne e legumes não! E, sim, gostava muito de sopa, mesmo sem queijo!-respondeu, já irritada, a mãe.
A médica suspirou, recostou-se na cadeira, mirou a interlocutora, procurou as palavras e falou calmamente (para quem desconhece, quando um italiano fica calmo depois da indignação, quando não grita, não se encoleriza, não insulta o interlocutor, o caso é grave, muito grave e ele está sério, muito sério).
Pois muita pena tinha ela, que aquela família, com tão belos filhos, gozando do privilégio de os criar em Itália, não aproveitasse devidamente a cultura deste belo país. Que não os criasse conforme a cultura italiana, ou que, pelo menos, não os alimentasse com os costumes italianos. A comida italiana era a melhor do mundo, a mais rica, a que fazia uso dos melhores ingredientes. Não havia agricultura como a italiana, capaz de produzir os melhores produtos, e o mesmo se podia dizer da carne e até do peixe. Quando os elogios chegaram ao peixe italiano, o ânimo da pobre e humilhada mãe portuguesa, já disposto a acreditar em todas as loas à magnífica Itália e a pisar todos os hábitos e costumes lusitanos como próprios de povo primitivo e ingrato, pois, naquela hora, aquele ânimo rebaixado levantou-se, nem foi por patriotismo, foi por puro amor à verdade – contou ela depois-  e retorquiu - Desculpe, mas quanto ao peixe não concordo. A Itália não tem peixe nem em qualidade nem em quantidade, nada que se compare a Portugal. Nós aqui nunca encontramos peixe bom, o pouco que há não presta. - Mas isso é uma questão alheia à Itália, o nosso peixe é bom, se agora se não pode comer é por causa dos imigrados do norte de África que se afogam no mar e por lá ficam a apodrecer! - respondeu a médica.
- E tu continuas a confiar os teus filhos a uma criatura que diz estas enormidades?- perguntei eu àquela mãe, fazendo minha a pergunta dos meus caros leitores e de toda a gente sensata em geral.
- E faço o quê? Vou procurar um italiano não nacionalista onde? Não existe. E depois, não há ninguém perfeito e ela é uma pediatra como não há outra. (MFM)

4 de fevereiro de 2019

Recomendações, com a devida vénia




Encantada com duas coisas boas que achei que vos devia dar conta, vim a correr pô-las aqui, até porque uma delas, está mesmo, mesmo, a acabar.
E não é que me apercebi que é a primeira vez que aqui venho, este ano? Pois, andando com a  cabeça por outras paragens, nem de tal me apercebi. Suponho que não será muito agradável começar o ano fazendo recomendações. E, para mim, que não sou dada às ditas, parece-me até, assaz, deselegante. Dizer - olhem lá, não se esqueçam de ir: ver isto, ouvir aquilo, ou ouvir o (o artigo é indispensável, dá proximidade), ler o (outra vez o o), passear acolá, viajar acoli, etc, etc.. Não se esqueçam, olhem a culturasinha, não descurem, patati, patatá. Não é bem o meu estilo. Quem sou eu e o que faz de mim mentora de quem me lê? Ninguém. Espero que se tenha notado durante os anos que por aqui tenho andado. E, começar o ano com o contrário, está-me, passe a cocofonia,  a contrariar.
Bom, mas nada a fazer, que as excepções são para isso mesmo! 
Nas últimas semanas tenho acompanhado uma série de televisão que acho admirável, por todos os motivos, sendo o principal, um, que costumo achar execrável quando dou por ele, que é o de ensinar. O que eu aprendi sem me aperceber! porque não há, na série, nada que, directamente, mostre qualquer propósito didáctico. Afinal pedagogicamente exemplar então!? sim, porque não acredito que nada daquilo seja por acaso. Melhor do que eu, Ferreira Fernandes explica como, com o Baron Noir  "ficamos a conhecer um métier que tanto nos marca a vida" como ele, tão bem, faz notar. Se ainda o não fazem, vejam na RTP2 ou por outra via qualquer, desfrutem, como diz alguém que alguns de nós conhecem.





E a outra novidade que por aqui anda, desta feita, infelizmente, só em Lisboa, é uma nova exposição de Sorolla, "Terra Adentro" no MNAA. Eu sou suspeita, porque sou uma fã da sua luz solar e de toda a graça e esperança que a sua pintura me faz sentir, como já aqui o tenho mostrado. Mas Sorolla não deixa de ser um grande pintor, mostrando, nesta exposição,  uma faceta diferente daquela mais conhecida, a das paisagens marítimas, plenas  do branco dos vestidos das senhoras, das velas dos pescadores e das crianças a brincarem na praia. Desta feita pode ver-se o Sorolla das paisagens espanholas, onde a sua luz não deixa de estar dentro dos verdes das Astúrias, no deserto castanho de Castela ao sol do meio-dia, ou no branco caiado da Andaluzia. 
Fruam, igualmente, se puderem (MFM)








31 de dezembro de 2018

E lá vem outro, outra vez




RECEITA DE ANO NOVO






Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,

[..... ]

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.                                     

Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de Janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade


Que assim seja! É o que desejo para mim e, se não levarem a mal,  para vós também! (MFM)

21 de dezembro de 2018

Outra vez Natal

     Quem, melhor que a arte, diz o que sentimos? Aqui ficam palavras e obras de quem sabe, sobre o Natal.

“Adoração dos Pastores”, Gaspar Fróis Machado, 1777
Lisboa, Tipografia Régia, Tinta e papel,  Museu de Lamego

Natal                                     

Mais uma vez, cá vimos                                     
Festejar o teu novo nascimento,
Nós, que, parece, nos desiludimos
Do teu advento!
Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!
Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,
Festejar-te, — do fundo
Da miséria que somos.
Os que à chegada
Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,
Somos — não uma vez, mas cada —
Teus assassinos.
À tua mesa nos sentamos:
Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;
Mas por trinta moedas te entregamos;
E por temor, negamos o teu nome.
Sob escárnios e ultrajes,
Ao vulgo te exibimos, que te aclame;
Te rojamos nas lajes;
Te cravejamos numa cruz infame.
Depois, a mesma cruz, a erguemos,
Como um farol de salvação,
Sobre as cidades em que ferve extremos
A nossa corrupção.
Os que em leilão a arrematamos
Como sagrada peça única,
Somos os que jogamos,
Para comércio, a tua túnica.
Tais somos, os que, por costume,
Vimos, mais uma vez,
Aquecer-nos ao lume
Que do teu frio e solidão nos dês.
Como é que ainda tens a infinita paciência
De voltar, — e te esqueces
De que a nossa indigência
Recusa Tudo que lhe ofereces?

Mas, se um ano tu deixas de nascer,
Se de vez se nos cala a tua voz,
Se enfim por nós desistes de morrer,
Jesus recém-nascido!, o que será de nós?! 

José Régio, in 'Obra Completa'   




Postal de Natal, 1946

             Natal na Província

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Fernando Pessoa, in 'Poesias' 

A Fava

Espero que me calhe aquela fava                                           
Igreja da Arrentela, Seixal- Natividade, sec. XVIII
Que é costume meter no bolo-rei:
Quer dizer que o comi, que o partilhei
No Natal com quem mais o partilhava

Numa ordem das coisas cuja lei
De afectos e memória em nós se grava
Nalgum lugar da alma e que destrava
Tanta coisa sumida que, bem sei,

Pela sua presença cristaliza
Saudade e alegria em sons e brilhos,
Sabores, cores, luzes, estribilhos...
E até por quem nos falta então se irisa

Na mais pobre semente a intensa dança
De tempo adulto e tempo de criança.

Vasco Graça Moura, in 'O Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas' 


Wassily Kandinsky – Winter Landscape, 1911, Image via wikiart.org

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes
in Poemas, sonetos e baladas (São Paulo: Gaveta, 1946)

Natal Chique                          



Retirado daqui 
Percorro o dia, que esmorece   
Nas ruas cheias de rumor; 
Minha alma vã desaparece 
Na muita pressa e pouco amor. 

Hoje é Natal. Comprei um anjo, 
Dos que anunciam no jornal; 
Mas houve um etéreo desarranjo 
E o efeito em casa saiu mal. 

                                                
                                                             Valeu-me um príncipe esfarrapado 
                                                             A quem dão coroas no meio disto, 
                                                              Um moço doente, desanimado... 
                                                              Só esse pobre me pareceu Cristo. 

                                                             Vitorino Nemésio, in 'Antologia Poética' 

Um Santo Natal para todos, mesmo do chique, senão poder ser do outro! (MFM)