Virgínia de Castro e Almeida (1874-1945) foi uma intelectual
portuguesa que desenvolveu a sua obra e se notificou no primeiro
quartel do sec.XX. Amiga de intelectuais e políticos
de antes e depois do Estado Novo, viveu vários anos em Paris e Genebra, sendo nesta
cidade representante de Portugal na Sociedade
das Nações. Em Janeiro de 1926 assiste como
delegada de Portugal às cerimónias de inauguração do Instituto
Internacional de Cooperação Intelectual, em Paris, sendo uma das quatro mulheres (uma delas Madame Curie) presentes entre os cinquenta convidados, no almoço oferecido pelo Presidente do Conselho e
Ministro da Instrução.
Foi escritora, autora de livros infantis, dos quais ainda hoje se publicam História de Dona Redonda e da sua Gente e Aventuras de Dona Redonda e produtora de cinema. Produziu a A Sereia de Pedra, adaptado de um conto seu intitulado A Obra do Demónio, realizado por Roger Lion, com exteriores rodados no Convento de Cristo, em Tomar, o qual estreia em Paris, onde obteve elogios por parte da crítica.
Apesar de todo o seu valor, o motivo pelo qual aqui a lembro hoje prende-se, tão só, com a sua ligação a Tomar. Filha do Conde de Nova-Goa, dono da quinta da Beselga, passava quando jovem largas temporadas pela quinta e convivia com a burguesia tomarense do tempo.
No Boletim Cultural da Câmara Municipal de Tomar n.º18, de Março de 1993, encontram-se duas cartas de Virgínia de Castro e Almeida, dirigidas à sua futura cunhada, nas quais aquela, numa linguagem cheia de vivacidade, conta o seu dia-a-dia passado na quinta. Na carta aqui reproduzida fala de uma ida a Tomar na companhia de uma amiga, Cristina. Na cidade encontra-se com amigos pertencentes à alta burguesia da terra: as Mouzinhos, a baronesa de Alvaiázere e a Senhora D. Maria Teresa de Vasconcelos. É de forma torcista que se refere a esta última, deixando perceber uma certa superioridade cosmopolita face aos costumes e presunções provincianas, como a ida de uma menina sozinha às compras e o rídiculo de um alferes, muito arrebicadinho e empomado, exibindo-se no seu velocipede, tentando impressioná-la, rodando com um pé só, de braços cruzados .
Esta carta encantadora remete-nos para um dia no tempo, há mais de 120 anos, em Novembro, em que na Várzea Grande, com as amoreiras de ramos meio-despidos, as crianças brincam, ao sair da escola, passam os ranchos de azeitona, prevendo a boa safra desse ano, transitam os trens e a nossa heroína, passeando o seu cavalo Ali, acompanhada do trintanário Rafael, se sente importunada com um modernaço ciclopedista que a tenta impressionar. Vamos ler que não perdemos o nosso tempo. (MFM)
«Almocei com a
Cristina e abalámos para Tomar arrastando com os lameiros que estão de respeito
por estes caminhos fora.
Fomos para casa das
Mouzinhos de onde mandámos recado ao médico; e daí, depois do clássico lunch de pão com manteiga, queijo “cabreiro”
e doce de ginja, fomos pela Avenida fora. Deixei a Crista no princípio da
Corredoura e eu fui andando até á casa da baronesa de Alvaiázere que me tinha
mandado recado que me queria falar.
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....fomos pela Avenida fora. Deixei a Crista no princípio da Corredoura .... |
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.....e eu fui andando até á casa da baronesa de Alvaiázere... |
Achei os meus primos já a meterem-se no
trem para irem a um magusto num casal que têm na estrada da fábrica, ia com eles
a senhora D. Maria Tereza de Vasconcelos que toda se indignou quando eu lhe
disse que a Cristina tinha ido sozinha fazer compras.
- "Sozinha .... Ora essa! ...
"
Tratei de receber o recado da minha
prima, que por sinal, era um convite para lá irmos jantar no dia 7, e fi-los partir,apesar de todos os seus protestos.
- "Então hás-de ficar só à espera
da Cristina?!"
- "Não se incomodem. O Ali está com
alguma tosse. Não quero que ele fique aqui parado. Vou dar umas voltas pela
Várzea Grande".
- "Quer Vossa Ex.ª vir connosco ao
magusto, prima?"
- "Muito obrigada, primo.
Desejo-lhe alegria."
A Senhora D. Maria
Teresa de Vasconcelos não disse nada. Creio que ficou com a Cristina a fazer
compras sozinha atravessada na garganta. Quando te falo desta senhora, digo
sempre o nome e um dos apelidos, para te dar um pouco a ideia da sua majestade. É a senhora mais
majestosa de Tomar. Mas tem um cachet.
Ela, a sua casa, as suas maneiras, a sua dama de compagnie, as suas toilettes ... Verás. Tudo isso vale um dinheirão.
Foram-se e eu
comecei o meu passeio pela Várzea que estava linda. Eu, o Ali e atrás, todo
teso, o Rafael. Sempre a minha equipagem havia de fazer um vistão ....
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e eu comecei o meu passeio pela Várzea que estava linda |
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Ciclopedista na Av. da
Liberdade, Lisboa |
Pelo menos
um alferes que há em Tomar, muito arrebicadinho e empomado, velocipedista ainda
por cima, assim achou. E começou a fazer-me tonturas na cabeça com círculos e
mais círculos por aquela várzea e por diante de mim, que era mesmo uma coisa
por demais.
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Ciclistas na Várzea Pequena c. 1876
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Voltei a casa do barão, bati a porta, declarei a uma criada: que
bem sabia que os senhores não estavam em casa. mas que eu ia para a sala porque
esperava ali a minha prima Cristina. Assim foi. Mandei estender uma manta por
cima do Ali e pus-me à janela.
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.....e pus-me à janela.
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Passou uma carroça
de areia; depois um carro de bois com as trouxas de um rancho da azeitona. Depois
três barrosas a conversarem da safra que há-de ser boa.
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Rancho de azeitona em período de lazer |
Nisto saíram os
rapazes da escola e durante alguns minutos toda a várzea se inundou das suas
gargalhadas e dos seus gritos. Por entre os ramos meio despidos das amoreiras,
vi-os passar lá em baixo correndo de uma banda para a' outra .
- "He, Manel!!"
- "Ladrão do diabo!" ...
- "Malandro" …
Pedrada para aqui,
pedrada para ali ...o Rafael, defronte do Ali, de mãos nas algibeiras,
superior, olhava para eles e ria-se.
Cada palavrão que eu
ouvi! ... Falem-me da inocência dos meninos de escola ...
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Nisto saíram os rapazes da escola ...
(A escola Conde de Ferreira, existente à época na Varzea Grande, construída entre 1864-1874, com o donativo do referido Conde) |
Vai senão quando, quem
havia de passar? O alferesinho empomadado. A fazer círculos, a andar com um pé
só, de braços cruzados ... um nojo! Vim para dentro já se vê. Sentei-me.
Para passar o tempo, nem
um recurso. Nem um livro, nem um jornal, nem uma gravura sequer. Sala nua; pior
do que a sala de espera de um dentista. Alguns bilhetes de visita. Li-os uma
vez; duas vezes; aprendi-os de cor: Sofia Loureiro Vizeu Pinheiro, a agradecer;
Maria Augusta de Freitas; Bebiana Correia.
E mais ainda. Muitos, muitos ...
O que seria que a
Sofia Loureiro agradecia? Cismei nisso algum tempo, mas distraiu-me dessa ideia
uma voz de mestre, grave, muito grossa, a ralhar. Percebi que era o mais novo
dos rapazes a dar lição. Como percebi isso, entendi que não era indiscrição
espreitar pelo buraco da fechadura. E vi a cara do rapaz triste de aborrecimento.
Lembrei-me de quando ele era muito pequenito, o meu pobre Tai; quando se agarrava
a mim a dizer que era meu. Chamava-me Tia Gi ...
Ao principio cuidei que ele recitava
alguma passagem dos Lusíadas. Recitação exagerada com a intonação quase do Luís
Osório declamando .... Escutei melhor. Ouvi distintamente:
" ... Mas, sem lhes poder chegar
disse:
estão verdes não prestam
só os cães as podem tragar. .."
Senti um trem. Fui à janela ver: era o médico que voltava da quinta. Trazia a receita na
esperança de me encontrar ainda e de eu poder levar os remédios. Viu o meu
carro à porta do barão, parou e entrou. Sufoquei-o de perguntas sobre o estado
da minha prima. Ele não é homem que fale sem fazer um discurso; e tão
embrulhado foi o tal discurso desta vez que não percebi nada.
Pouco tempo depois
chegou finalmente a Cristina. Julguei que tencionava deixar-me a apodrecer naquela
casa! ... O tempo de virem os remédios da botica e vamos nós a caminho da
quinta, a toda a pressa.»
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.....era o médico que voltava da quinta. |
Notas: Fotografias, e extractos de fotografias, de Silva Magalhães, excepto a da escola de Conde Ferreira cuja autoria não consegui identificar e a do ciclista em Lisboa.
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A casa dos Barões de Alvaiázere na actualidade. Aqui se fundou a Fábrica de Fiação em 1789; em 1869 o edificio foi vendido a Manuel Vieira da Silva Borges e Abreu, primeiro Barâo de Alvaiázere; a partir de 1911 foi Quartel General da Região Militar, mas um incêndio em 1975 destruiu todo o interior; a parte restaurada acolhe, actualmente, os Serviços de Registo e Notariado e o Juízo de Trabalho de Tomar (Tribunal).
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