Há cem anos, a Ilustração Portuguesa agoirava desta forma o novo ano de 1920 que se aproximava. Fazendo as devidas adaptações no saco das desgraças, seria caso para ...mas não, não vamos fazer o mesmo, antes vamos esperar, mas temos que esperar com muita força, que o nosso Ano Novo de 2020 seja um bocadinho menos feio do que o pai 2019!
Esta água foi nascer/Naquela encosta do monte/Para vir dar de beber/A quem passar pela fonte
Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
29 de dezembro de 2019
26 de dezembro de 2019
Da "Estalagem do Com Ovos" a " A Primorosa"
João de Deus (1830-1896) grande poeta lirico e pedadogo, autor da Cartilha Maternal, estudou em Coimbra, primeiro no Seminário e depois na Universidade, onde se formou em Direito em 1859.
O Coronel Vasco da Costa Salema no seu livrinho "Coisas e Loisas de Tomar", conta que aquele poeta, uma vez vindo de Coimbra de férias, com destino à sua terra natal, S. Bartolomeu de Messines, passando por Tomar, ao sair da ponte "vê a tabuleta de uma hospedaria, existente à época numa casa já hoje desaparecida e que ficava à entrada da Corredora, do lado norte, e mesmo em frente da dita ponte. Escarranchado na mula do almocreve, João de Deus atenta na tabuleta, «Estalagem do Com Ovos», e maliciosamente lê para os companheiros «Estalagem do Comovos", logo acrescentando: Nesta não fico eu."
Essa casa, já desaparecida, foi sofrendo alterações, bem como o edificado à sua volta, até aos dias de hoje. Pelo meio, o edificio que a substituiu em 1922, também sofreu a degradação do tempo, com menos de cinquenta anos de vida já estava condenado à morte, conseguindo, porém, sobreviver e ser hoje quase um dos ícones da cidade - denominado Casa Vieira Guimarães. Nele funcionou, no piso térreo, durante décadas, um café - A Primorosa, o qual, à semelhança do sucedido com a sua antecessora "Com Ovos" também já se vai perdendo na memória tomarense.(MFM)
Essa casa, já desaparecida, foi sofrendo alterações, bem como o edificado à sua volta, até aos dias de hoje. Pelo meio, o edificio que a substituiu em 1922, também sofreu a degradação do tempo, com menos de cinquenta anos de vida já estava condenado à morte, conseguindo, porém, sobreviver e ser hoje quase um dos ícones da cidade - denominado Casa Vieira Guimarães. Nele funcionou, no piso térreo, durante décadas, um café - A Primorosa, o qual, à semelhança do sucedido com a sua antecessora "Com Ovos" também já se vai perdendo na memória tomarense.(MFM)
"...A tabuleta de uma hospedaria, existente à época numa casa já hoje desaparecida e que ficava à entrada da Corredora, do lado norte, e mesmo em frente da dita ponte." |
Repare-se no anúncio a "Auto Gazo Mobiloil" apesar de toda a gente andar a pé ou de burro. |
A "nossa" casa já não tem lá muito bom aspecto. |
|
Nota: Cerca de cem anos mediarão entre a primeira e a última fotografia.
Abril de 1952 |
1955 |
Fotografias retiradas de diversos locais não identificados na net e em Memória Digital de Tomar, nesta última também os quatro recortes da imprensa. A última publicação foi retirado da página de facebook de "Gabinete de Curiosidades de Tomar".
21 de dezembro de 2019
BOM NATAL
A todos os que tiveram a atenção de nos acompanhar durante esta ano, desejamos, como sempre
Boas Festas!
Alegrem-se céus e terra
Cantemos com alegria
Já nasceu o Deus Menino
Filho da Virgem Maria*
«Até fim do Natal
Crescem os dias um saltinho de pardal»*
*Fonte: "Cantares de Todo o Ano"(selecção de cantigas populares portuguesas), 2.ª edição, Colecção Educativa, Série F, número 6, Ministério da Educação Nacional, Direcção Geral do Ensino Primário, 1971.)
17 de dezembro de 2019
A Gente Fina Tomarense do Final de XIX
O Serão, Columbano Bordalo Pinheiro c.1880 |
As duas últimas publicações, na companhia de Virginia de Castro e Almeida, transportaram-nos ao fim de século XIX. Aproveitando a maré, lembrei-me, recorrendo ainda ao resto das cartas da nossa amiga, de procurar, na imprensa e em fotos, mostras da forma como a burguesia de Tomar passava o seu tempo de lazer (ou seria o seu tempo?). De dia faziam-se pic-nics, passeava-se de barco no rio. À noite davam-se festas, saraus musicais, nos quais se tocava piano, bandolina e cantava, como já vimos acontecer em casa das senhoras Mouzinho, jogava-se, ria-se conversava-se ao luar. Ia-se a bailes, ao teatro, organizavam-se récitas para financiar obras de caridade, às quais se tinha de assistir....Enfim, para alguns era uma estopada e um calor!
Pela imprensa temos notícia de um exemplo, o"esplêndido baile" realizado no Grémio de Ensino e Recreio Tomarense, que durou até às cinco da manhã, onde "muitas e formosas damas" formaram "pares alegres e gentis, cheios de vida e de alegria" com a "flor da mocidade máscula" local, dançando quadrilhas, lanceiros, valsas e polcas, enquanto trocavam " bastos e agradáveis tiroteios de amabilidades e ditos espirituosos". Entretanto, seriam servidos bons e delicados serviços de chá e doces, mais tarde sandwiches e vinho do porto, e depois doces e o dito Portwine e, por fim chocolate e [adivinhem!] doces (outra vez!, oh belos tempos sem preocupações saudáveis!). Mas nem tudo era comportadinho, havia também lugar a exibições mais ou menos brejeiras, como a do sr. Dr. João do Valle (que já conhecemos das relações na nossa heroína) que apareceu vestido de "donzela um tanto durázia, de modos delambidos" e declamou um "monólogo bem apimentado, dito com todo o chiste " que arrancou muitas gargalhadas e muitas palmas "aos presentes.(MFM)
....Numa ilha que temos no meio do Nabão. (Cipriano Martins ) |
«Na quinta-feira fizemos um pic nic com as tomares numa ilha que temos no meio do Nabão, perto do Moinho Novo. Depois do Jantar entre os choupos, que esteve animadíssimo, fomos dar um belíssimo passaio de barco pelo rio.
.......Depois do Jantar entre os choupos, que esteve animadissimo.....(1) |
.......fomos dar um belíssimo passaio de barco pelo rio |
Estava uma tarde encantadora. Depois viemos todos para a quinta onde passámos o resto do tempo até à meia noite, na varanda, ao luar, a jogarmos jogos, a rir e a conversar.»
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Serenata Thomarense |
«Hoje vamos ao teatro
a Tomar. Récita de amadores em beneficio do asilo de crianças cegas em que te
tenho falado.
Entra o João do
Valle e a menina Petrony e não sei quem mais; e um homenzinho muito janota, o Vizeu
Pinheiro, que é escrivão e recita uma poesia que inventou de propósito. O teatro esta enfeitado com flores e leques e parece que as meninas Tomarzinhas vão decotadas e de manga curta etc. ... Imagina a estopada e o calor! Eu mandei pedir
ao João do Valle que nos arranjasse um camarote com o dos Charruadas. Se ao
menos assim for não é mau de todo ...»
Nota: As tomares ou meninas tomarzinhas referem-se às filhas do conde de Tomar.
Nota: As tomares ou meninas tomarzinhas referem-se às filhas do conde de Tomar.
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Fevereiro 1896 |
"Excursão do Grupo Dramático de Silva Magalhães a Cernache".Este grupo, que adivinho republicano, também actuaria
nas récitas, destinadas a obras de caridade, para a assistência acima? |
Fontes:
(1) Imagem do quadro "Hip Hip Hurrah, 1888", de Peter Severin Kroyer (1851-1909).
- Fotografias Fundo Silva Magalhães.
- Recorte da imprenda de Memória Digital de Tomar.
13 de dezembro de 2019
Virginia de Castro e Almeida, o Nabão e a Ribeira da Beselga
Continuação das cartas de Virginia de Castro e Almeida, desta feita com a acção a passar-se em localidades junto à quinta, Santa Cita, Asseiceira, e, sobretudo, nas margens do Nabão. E, como estamos em Porto da Lage, vemos, com agrado, que a nossa ribeira da Beselga também foi imortalizda pela pena desta escritora (MFM).
.....e ali, naquele cantinho de terra à beira do rio, podíamos bem julgar-nos as únicas criaturas vivas no mundo inteiro....(1) |
...Ontem meti-me no meu carro com a Cristina e abalei, para Santa Cita.Levava uma saqueta de bolos para os meus fregueses que os comeram todos que foi um regalo.
Antigo convento e igreja de Santa Cita, existenes à época |
E de Santa Cita fui
ao Moinho Novo onde ambas nos apeámos atravessando o Rio sobre uma ponte
carunchosa e embrenhando-nos depois no choupal que se estende pela margem fora.
Andámos, andámos até chegar a um ponto onde o Nabão é cortado por um grande açude
de pedra e cal, já antigo, de muitos e muitos anos e sentámo-nos ali no chão
muito caladas.
Porque o silencio e sossego à roda de nós era absoluto, e ali, naquele cantinho de terra à beira do rio, podíamos bem julgar-nos as únicas criaturas vivas no mundo inteiro. Por diante de nós o rio estendia-se tão sereno que parecia nem ter corrente e perdia-se lá muito longe, entre as suas margens verdes riquíssimas, que àquela hora o cobriam de sombra.
......até chegar a um ponto onde o Nabão é cortado por um grande açude (5) |
Porque o silencio e sossego à roda de nós era absoluto, e ali, naquele cantinho de terra à beira do rio, podíamos bem julgar-nos as únicas criaturas vivas no mundo inteiro. Por diante de nós o rio estendia-se tão sereno que parecia nem ter corrente e perdia-se lá muito longe, entre as suas margens verdes riquíssimas, que àquela hora o cobriam de sombra.
.......diante de nós o rio estendia-se tão sereno que parecia nem ter corrente e perdia-se.... |
E os choupos
levantavam-se orgulhosamente, e o sol quase escondido, doirava-lhes ainda os
ramos mais altos enquanto os chorões tristíssimos mergulhavam desalentados os
seus braços no Rio. Perto das margens saíam da água juncos e outras plantas de folhas
largas, muito verdes, onde uns tiraolhos pequenitos e azuis gostavam de poisar. Por trás de nós estava um choupo onde há 3
anos, de uma vez que ali fizemos um picnic, o Bartolomeu escreveu o meu nome.
Em três anos o choupo e o meu nome está lá muito alto e tão marcado que a mais
do 6 metros se pode ler. Desde esse dia eu nunca mais ali tinha tornado. Três
anos! Estive para riscar aquelas letras, depois, deixei ficar! Mas a este tempo
o sol escondera-se de todo e a tristeza serena da paisagem que uma roda aumentava
gemendo lamentavelmente a meio quilómetro talvez, a baixo no rio, ia pouco a
pouco, descendo em mim.
A Cristina estava
entregue aos seus pensamentos e não falava. E eu, por um momento, entreguei-me
também aos meus que não me largavam.
.....e a tristeza serena da paisagem que uma roda aumentava gemendo lamentavelmente a meio quilómetro talvez ..... (6)
|
………………………………....................................................................................................
Fomos, eu e a
Cristina dar um passeio lindo. Fomos a Santa Cita e depois pela estrada de Tomar,
até Marianaia, onde nos apeámos. Atravessamos a pé a ponte sobre o Nabão e por
tal maneira nos encantou a serenidade das suas margens lindas e a poesia dos
seus juncos nascendo à sombra dos
A Fábrica de papel de Marianaia na época da autora |
tristes chorões e a roda da fábrica e o barco amarrado no fim de uma vereda misteriosa, tanto e por tal maneira nos encantou tudo isso que, esquecidas do tempo, nos deixámos ficar um grande bocado encostadas ao parapeito da ponte sem falar a ver no fundo do rio a areia muito clara e os seixos polidos da água e as sombras cada vez maiores que o pôr do sol dava à paisagem. Senti-me tão bem, tão descansada, tão feliz! Uma paz absoluta e profunda. Como se respirava ali bem a felicidade serena que, no fim de contas, é a melhor, e a maior de todas….
……………………………………............................................................................................................
Está hoje um dia
lindo, o céu azul e o sol tão brilhante. Já quase ao sol posto apareceu-me cá a
Luiza Quintela e o irmão. Saí com eles no carro. Daqui à Asseiceira pelo
pinhal. Íamos a descer a azinhaga quando vimos passar em baixo na estrada, como
um raio, o tibury do Frank Quintela e
com ele um tenente Pessoa de Tomar. Chegando ao fim da azinhaga toquei o Ali e
durante uns 5 minutos voamos positivamente.
...A tarde estava encantadora.(2) |
Alcançámos o tibury e fomos um pedacito a par pela estrada fora a meio trote, de conversa. A tarde estava encantadora.
Era já muito depois do sol posto e fomos encontrando muitos rebanhos que recolhiam e grupos de gente do serviço que voltava a suas casas. Uma rapariga ia a cantar! e que bem se respirava!
... fomos encontrando muitos rebanhos que recolhiam e grupos de gente do serviço que voltava a suas casas.(3) |
Depois segui pela estrada até Santa Cita e o Frank voltou para a Quinta do Valle. Ainda andámos um pedaço no pinhal a passo; era já escurito e os pinheiros tinham um aspecto todo solene! Afinal fui deixar os meus companheiros no pateo de sua casa e voltei para a Quinta a toda a pressa por já ser noite.
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Esta manhã fui à horta dar um passeio. À ida para baixo comemos amoras apanhadas "a dente" da própria árvore. Não imaginas como sabem bem assim.
Fica a gente com os beiços ensanguentados e a cara marcada como se se tivesse morto alguém à dentada ... Eu gosto muito de ir à horta num dia de calor. As ruas muito sombrias cobertas com arvores de frutas, os encaniçados de feijões em flor, as latadas de aboboras e até as melancias à torreira do sol têm um aspecto fresco.
Eu gosto muito de ir à horta num dia de calor....(4) |
Sente-se correr a água das biqueiras para os tanques das regas e as regueiras cheias de água muito clara correndo entre as bordas batidas da enxada fazem sede. Depois o Luís e a Rosa foram apanhar morangos e trouxeram-nos numa folha de couve que puseram num instante dentro de agua. Por isso vinham entre os morangos gotinhas que pareciam de orvalho e que eram como brilhantes. E os morangos souberam-nos pela vida ..
E fomos até à ribeira [da Beselga] dar banho ao Tritão [cão] e sentámo-nos a sombra de uma azinheira ao pé do açude a escutar os gemidos e as lamentações do engenho. Estava tao bom! Para baixo do açude andam os patos num cerrado que se lhes armou com mato. E a ribeira ali leva a agua tão clara que se lhe podem contar os seixos do fundo e é toda assombreada pelos choupos e freixos que lhe crescem pelas margens.
Fontes:-Imagens de pinturas de Maria de Lurdes de Mello e Castro (1e2), Silva Lopes (3) e Malhoa (4);
-Imagens do livro Coisas Simples da Terra Tomarense O Rio, os Açudes e as Rodas, Fernando Ferreira, edição da junta Distrital de Santarém, 1976-5 e 6;
- Imagem do livro Tomar, pag.123, José - Augusto França, Editorial Presença, Lda, Lisboa, 1994.-7
-Outras - Fotos do blog e retiradas da net, sem identificação.
E fomos até à ribeira [da Beselga] dar banho ao Tritão [cão] e sentámo-nos a sombra de uma azinheira ao pé do açude a escutar os gemidos e as lamentações do engenho. Estava tao bom! Para baixo do açude andam os patos num cerrado que se lhes armou com mato. E a ribeira ali leva a agua tão clara que se lhe podem contar os seixos do fundo e é toda assombreada pelos choupos e freixos que lhe crescem pelas margens.
e é toda assombreada pelos choupos e freixos que lhe crescem pelas margens |
-Imagens do livro Coisas Simples da Terra Tomarense O Rio, os Açudes e as Rodas, Fernando Ferreira, edição da junta Distrital de Santarém, 1976-5 e 6;
- Imagem do livro Tomar, pag.123, José - Augusto França, Editorial Presença, Lda, Lisboa, 1994.-7
-Outras - Fotos do blog e retiradas da net, sem identificação.
9 de dezembro de 2019
Um dia em Tomar em 1893
Foi escritora, autora de livros infantis, dos quais ainda hoje se publicam História de Dona Redonda e da sua Gente e Aventuras de Dona Redonda e produtora de cinema. Produziu a A Sereia de Pedra, adaptado de um conto seu intitulado A Obra do Demónio, realizado por Roger Lion, com exteriores rodados no Convento de Cristo, em Tomar, o qual estreia em Paris, onde obteve elogios por parte da crítica.
" ... Mas, sem lhes poder chegar disse:
Notas: Fotografias, e extractos de fotografias, de Silva Magalhães, excepto a da escola de Conde Ferreira cuja autoria não consegui identificar e a do ciclista em Lisboa.
Virgínia de Castro e Almeida (1874-1945) foi uma intelectual
portuguesa que desenvolveu a sua obra e se notificou no primeiro quartel do sec.XX. Amiga de intelectuais e políticos de antes e depois do Estado Novo, viveu vários anos em Paris e Genebra, sendo nesta
cidade representante de Portugal na Sociedade
das Nações. Em Janeiro de 1926 assiste como delegada de Portugal às cerimónias de inauguração do Instituto
Internacional de Cooperação Intelectual, em Paris, sendo uma das quatro mulheres (uma delas Madame Curie) presentes entre os cinquenta convidados, no almoço oferecido pelo Presidente do Conselho e
Ministro da Instrução.
Apesar de todo o seu valor, o motivo pelo qual aqui a lembro hoje prende-se, tão só, com a sua ligação a Tomar. Filha do Conde de Nova-Goa, dono da quinta da Beselga, passava quando jovem largas temporadas pela quinta e convivia com a burguesia tomarense do tempo.
No Boletim Cultural da Câmara Municipal de Tomar n.º18, de Março de 1993, encontram-se duas cartas de Virgínia de Castro e Almeida, dirigidas à sua futura cunhada, nas quais aquela, numa linguagem cheia de vivacidade, conta o seu dia-a-dia passado na quinta. Na carta aqui reproduzida fala de uma ida a Tomar na companhia de uma amiga, Cristina. Na cidade encontra-se com amigos pertencentes à alta burguesia da terra: as Mouzinhos, a baronesa de Alvaiázere e a Senhora D. Maria Teresa de Vasconcelos. É de forma torcista que se refere a esta última, deixando perceber uma certa superioridade cosmopolita face aos costumes e presunções provincianas, como a ida de uma menina sozinha às compras e o rídiculo de um alferes, muito arrebicadinho e empomado, exibindo-se no seu velocipede, tentando impressioná-la, rodando com um pé só, de braços cruzados .
Esta carta encantadora remete-nos para um dia no tempo, há mais de 120 anos, em Novembro, em que na Várzea Grande, com as amoreiras de ramos meio-despidos, as crianças brincam, ao sair da escola, passam os ranchos de azeitona, prevendo a boa safra desse ano, transitam os trens e a nossa heroína, passeando o seu cavalo Ali, acompanhada do trintanário Rafael, se sente importunada com um modernaço ciclopedista que a tenta impressionar. Vamos ler que não perdemos o nosso tempo. (MFM)
Esta carta encantadora remete-nos para um dia no tempo, há mais de 120 anos, em Novembro, em que na Várzea Grande, com as amoreiras de ramos meio-despidos, as crianças brincam, ao sair da escola, passam os ranchos de azeitona, prevendo a boa safra desse ano, transitam os trens e a nossa heroína, passeando o seu cavalo Ali, acompanhada do trintanário Rafael, se sente importunada com um modernaço ciclopedista que a tenta impressionar. Vamos ler que não perdemos o nosso tempo. (MFM)
«Almocei com a
Cristina e abalámos para Tomar arrastando com os lameiros que estão de respeito
por estes caminhos fora.
Fomos para casa das
Mouzinhos de onde mandámos recado ao médico; e daí, depois do clássico lunch de pão com manteiga, queijo “cabreiro”
e doce de ginja, fomos pela Avenida fora. Deixei a Crista no princípio da
Corredoura e eu fui andando até á casa da baronesa de Alvaiázere que me tinha
mandado recado que me queria falar.
Achei os meus primos já a meterem-se no trem para irem a um magusto num casal que têm na estrada da fábrica, ia com eles a senhora D. Maria Tereza de Vasconcelos que toda se indignou quando eu lhe disse que a Cristina tinha ido sozinha fazer compras.
|
.....e eu fui andando até á casa da baronesa de Alvaiázere... |
Achei os meus primos já a meterem-se no trem para irem a um magusto num casal que têm na estrada da fábrica, ia com eles a senhora D. Maria Tereza de Vasconcelos que toda se indignou quando eu lhe disse que a Cristina tinha ido sozinha fazer compras.
- "Sozinha .... Ora essa! ...
"
Tratei de receber o recado da minha
prima, que por sinal, era um convite para lá irmos jantar no dia 7, e fi-los partir,apesar de todos os seus protestos.
- "Então hás-de ficar só à espera
da Cristina?!"
- "Não se incomodem. O Ali está com
alguma tosse. Não quero que ele fique aqui parado. Vou dar umas voltas pela
Várzea Grande".
- "Quer Vossa Ex.ª vir connosco ao
magusto, prima?"
- "Muito obrigada, primo.
Desejo-lhe alegria."
A Senhora D. Maria
Teresa de Vasconcelos não disse nada. Creio que ficou com a Cristina a fazer
compras sozinha atravessada na garganta. Quando te falo desta senhora, digo
sempre o nome e um dos apelidos, para te dar um pouco a ideia da sua majestade. É a senhora mais
majestosa de Tomar. Mas tem um cachet.
Ela, a sua casa, as suas maneiras, a sua dama de compagnie, as suas toilettes ... Verás. Tudo isso vale um dinheirão.
Foram-se e eu comecei o meu passeio pela Várzea que estava linda. Eu, o Ali e atrás, todo teso, o Rafael. Sempre a minha equipagem havia de fazer um vistão ....
Pelo menos um alferes que há em Tomar, muito arrebicadinho e empomado, velocipedista ainda por cima, assim achou. E começou a fazer-me tonturas na cabeça com círculos e mais círculos por aquela várzea e por diante de mim, que era mesmo uma coisa por demais.
Voltei a casa do barão, bati a porta, declarei a uma criada: que bem sabia que os senhores não estavam em casa. mas que eu ia para a sala porque esperava ali a minha prima Cristina. Assim foi. Mandei estender uma manta por cima do Ali e pus-me à janela.
Foram-se e eu comecei o meu passeio pela Várzea que estava linda. Eu, o Ali e atrás, todo teso, o Rafael. Sempre a minha equipagem havia de fazer um vistão ....
e eu comecei o meu passeio pela Várzea que estava linda |
Ciclopedista na Av. da Liberdade, Lisboa |
Pelo menos um alferes que há em Tomar, muito arrebicadinho e empomado, velocipedista ainda por cima, assim achou. E começou a fazer-me tonturas na cabeça com círculos e mais círculos por aquela várzea e por diante de mim, que era mesmo uma coisa por demais.
Ciclistas na Várzea Pequena c. 1876 |
Voltei a casa do barão, bati a porta, declarei a uma criada: que bem sabia que os senhores não estavam em casa. mas que eu ia para a sala porque esperava ali a minha prima Cristina. Assim foi. Mandei estender uma manta por cima do Ali e pus-me à janela.
.....e pus-me à janela.
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Passou uma carroça
de areia; depois um carro de bois com as trouxas de um rancho da azeitona. Depois
três barrosas a conversarem da safra que há-de ser boa.
Nisto saíram os rapazes da escola e durante alguns minutos toda a várzea se inundou das suas gargalhadas e dos seus gritos. Por entre os ramos meio despidos das amoreiras, vi-os passar lá em baixo correndo de uma banda para a' outra .
Rancho de azeitona em período de lazer |
Nisto saíram os rapazes da escola e durante alguns minutos toda a várzea se inundou das suas gargalhadas e dos seus gritos. Por entre os ramos meio despidos das amoreiras, vi-os passar lá em baixo correndo de uma banda para a' outra .
- "He, Manel!!"
- "Ladrão do diabo!" ...
- "Malandro" …
Pedrada para aqui,
pedrada para ali ...o Rafael, defronte do Ali, de mãos nas algibeiras,
superior, olhava para eles e ria-se.
Cada palavrão que eu
ouvi! ... Falem-me da inocência dos meninos de escola ...
Nisto saíram os rapazes da escola ... (A escola Conde de Ferreira, existente à época na Varzea Grande, construída entre 1864-1874, com o donativo do referido Conde) |
A localização da escola Conde de Ferreira na Várzea Grande |
Vai senão quando, quem
havia de passar? O alferesinho empomadado. A fazer círculos, a andar com um pé
só, de braços cruzados ... um nojo! Vim para dentro já se vê. Sentei-me.
Para passar o tempo, nem
um recurso. Nem um livro, nem um jornal, nem uma gravura sequer. Sala nua; pior
do que a sala de espera de um dentista. Alguns bilhetes de visita. Li-os uma
vez; duas vezes; aprendi-os de cor: Sofia Loureiro Vizeu Pinheiro, a agradecer;
Maria Augusta de Freitas; Bebiana Correia.
E mais ainda. Muitos, muitos ...
O que seria que a
Sofia Loureiro agradecia? Cismei nisso algum tempo, mas distraiu-me dessa ideia
uma voz de mestre, grave, muito grossa, a ralhar. Percebi que era o mais novo
dos rapazes a dar lição. Como percebi isso, entendi que não era indiscrição
espreitar pelo buraco da fechadura. E vi a cara do rapaz triste de aborrecimento.
Lembrei-me de quando ele era muito pequenito, o meu pobre Tai; quando se agarrava
a mim a dizer que era meu. Chamava-me Tia Gi ...
Ao principio cuidei que ele recitava
alguma passagem dos Lusíadas. Recitação exagerada com a intonação quase do Luís
Osório declamando .... Escutei melhor. Ouvi distintamente:
" ... Mas, sem lhes poder chegar disse:
estão verdes não prestam
só os cães as podem tragar. .."
Senti um trem. Fui à janela ver: era o médico que voltava da quinta. Trazia a receita na
esperança de me encontrar ainda e de eu poder levar os remédios. Viu o meu
carro à porta do barão, parou e entrou. Sufoquei-o de perguntas sobre o estado
da minha prima. Ele não é homem que fale sem fazer um discurso; e tão
embrulhado foi o tal discurso desta vez que não percebi nada.
Pouco tempo depois
chegou finalmente a Cristina. Julguei que tencionava deixar-me a apodrecer naquela
casa! ... O tempo de virem os remédios da botica e vamos nós a caminho da
quinta, a toda a pressa.»
Notas: Fotografias, e extractos de fotografias, de Silva Magalhães, excepto a da escola de Conde Ferreira cuja autoria não consegui identificar e a do ciclista em Lisboa.
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