Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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9 de julho de 2012

Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?


Finalistas do Jardim Infantil de Porto da Lage, exibindo as
 suas fitas, no final de três anos lectivos. Foto roubada  do seu blog


Não é costume deste blog deter-se nas frivolidades deste mundo.
Porém, até os santos (mesmo os de pés de barro, como é o caso de "Porto da Lage") no limbo etéreo dos altares onde se alcandoram  (ou escondem) não conseguem manter-se cegos e surdos ao sortilégio dos grandes e poderosos que nos rodeiam, quando estes persistem em envolver-nos sistematicamente nas mesmas estuchas. E a actual, a desta semana, é aquela em que eles se lembram de obter  (obter - os sinónimos que esta palavra tem, Deus meu!, desde abichar, adquirir, papar, credo, que aflição, são dicionário nos valha!), dizia eu, de cada vez que se lembram de querer (que é isso mesmo, eles querem!) um diploma!
 De tão monótona, a coisa está a tornar-se enjoativa! Do fundo da sua desgraça e vendo que já não vale a pena desejar melhoras, qualquer dia veremos os portugueses a rogar, desesperados, variedade na trafulhice- o limite da nossa paciência é o tédio!,dirão; Tirem-nos tudo, mas deixem-nos a imaginação, clamará este povo também de poetas! É que já estamos diplomados (não nos livramos desta) nos estratagemas que os nossos mais variados governantes arranjam para obter o famigerado Dr. !
Mas, "Porto da Lage" observa, não comenta, muito menos conclui.
Limita-se a procurar algumas frases de grandes pensadores que, pensamos (só um bocadinho, mas pensamos), ilustram o rescaldo do acontecido:

O homem costuma entregar a vida pela bolsa, mas entrega a bolsa pela vaidade."
Miguel de Unamuno
Pieter Claesz, Vanitas, 1634

"A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto, e que mais facilmente engana os homens."
Padre António Vieira

"Não existe vaidade inteligente."
 Viagem ao Fim da Noite, Celine



"Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?"
Padre António Vieira

Nota: não encontrei nada que mereça ser repetido sobre parolice, saloice, provincianismo, etc.
Sobre gostar de aprender e reconhecer a importância de estudar encontrei muito, mas era tudo virtual.

7 de julho de 2012

A Procissão

Tocam os sinos da torre da igreja                                   
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.                             
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.
Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Imagem retirado da net
Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas! Ai, que bonitos que vão os anjinhos!             
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.
Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!               
Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!
Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.
António Lopes Ribeiro, 1908, 1995

6 de julho de 2012

Paixões Funestas II - Palavras do Assassino, em rigoroso exclusivo.

Sei o que é uma paixão

Falámos hoje com o criminoso  Francisco Jorge da Silva de 25 anos [filho de Júlio Jorge da Silva e de Maria da Conceição, natural de Paços, concelho de Torres Novas], que nos afirmou que usava a arma, da qual tem a respectiva licença em virtude de andar constantemente ameaçado por um ex-sócio, José Anastácio Henriques, que o Francisco Silva acusa de o ter burlado.
- Esse homem anda sempre armado de pistola, diz a toda a gente que me há-de dar um tiro e mais: - quando me encontra na estrada e vem a cavalo, atravessa o animal no meio do caminho, dirigindo-me os maiores insultos;
"tudo se podia ter evitar, se não fosse a teimosia da mãe da Purificação. Lamento muito o que se passou tanto mais que pertenço a uma família honesta que nunca soube o que era uma cadeia. Quando disparei os tiros fui tomado de uma loucura que não sei nem posso descrever. Quis suicidar-me e lamento bastante que no carregador não tivesse, pelo menos, uma bala, para assim acabar com a vida. Sempre era uma coisa mais limpa. Ao menos dava uma prova que sei o que é uma paixão!...
Eu era provocado até pelo cunhado da Purificação*, que me tinha um ódio de morte, a pontos mesmo de me ter agredido há tempos".

In Diário de Notícias, 8.12.1926, pag.2 (títulos da responsabilidades deste blog)

Capela de S.Silvestre onde Maria da Purificação ouviu missa pela última vez.
*Francisco Rosa, casado com a irmã Maria e também primo, filho de um irmão da mãe, António Sousa Rosa.

Vintenas outra vez

Na sessão de 11 de Abril de 1786, o Juíz-Presidente disse que se deviam eleger para Juízes de Vintenas e Escrivães das  mesmas, das freguesias deste Termo; e todos, uniformemente, votaram nas pessoas seguintes:
.......

Desenho de Domingos Sequeira (1768, 1837)
Freguesia da Madalena:                                                    
......
-Vintena dos Casais
Juíz, Luís António
Escrivão, João Pereira do Caniçal*

- Vintena do Paço
Juíz, Manuel António
Escrivão, António Gonçalves, do Porto da Lage
.......



* Muito me apraz saber que este meu quinto avô (n. 15.11.1758) sabia escrever.
Viera Portuense (1765,1805), Cena Campestre

Fonte: A.M.T, 1771-1800, pag. 211

5 de julho de 2012

Mistérios da Madalena



Dois jovens portugueses conhecem-se em Amesterdão. Donde és, donde vens?
- De Tomar,
- De Lisboa. De Tomar mesmo?
- Não exactamente, de uma aldeia perto, Cem Soldos!
- Cem Soldos? Sério! ? Conheço, a família da minha mãe é de lá perto, Porto da Lage, sabes?
- Tás a gozar!
- Pois, tás a ver a estrada da bomba da gasolina que vai para o Paço, é a única casa velha que lá está!
- O quê, a casa da nespereira é tua?
- É da minha família, sim.
- Oh pá, não inventes!
E o natural de Cem Soldos voltou costas indignado. E, apesar de frequentarem os dois os mesmos círculos durante alguns dias, nunca mais falou ao outro. Que não percebeu a razão. Nem eu.

4 de julho de 2012

Dia da Rainha Santa

Isabel, Rainha de Portugal, Francisco Zurbaran, 1640
Pois que Deus vos fez, Senhora,
Fazer do bem sempre o melhor                                                        
E de ser tão sabedora,
Em verdade vos direi:
Érades boa para Rei!


E pois sabedes entender
Sempre o melhor e bem escolher,
Verdade vos quero dizer,
- Senhor que sirvo e servirei:
- Pois Deus assim o quis fazer,
Érades boa para Rei!


Pois sois de Deus obra sem par
No bem sentir; no bem falar
Nem outra igual se pode achar.
Meu bem, Senhora, vos direi:
Se Deus quisesse assim mandar,
Érades boa para Rei!
 
D.Diniz (1261,1325) *

Foi o nosso rei trovador, escreveu inúmeras cantigas de amor e de amigo dedicadas às inúmeras, ilustres e não tão ilustres, amadas. À sua mulher (a rainha santa), a quem, parece, não o ligavam sentimentos capazes de inspirarem poemas daquele tipo  dedicou os versos acima que, pelo menos, revelam respeito e grande admiração.Ter-lhe-à bastado a ela? Ainda que santa? Ou foi santa (também) por causa disso?

Nau Catrineta










Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.
"Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar."
"Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar.
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar."
"Deitaram sortes ao fundo,
qual se havia de matar.
Logo a sorte foi cair
no capitão general"
- "Sobe, sobe, marujinho,
àquele mastro real,
vê se vês terras de Espanha,
ou praias de Portugal."
- "Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas,
que estão para te matar."
- "Acima, acima, gajeiro,
acima ao tope real!
Olha se vês minhas terras,
ou reinos de Portugal."
"Alvíssaras, senhor alvissaras,
meu capitão general!
Que eu já vejo tuas terra

e reinos de Portugal.
Se não nos faltar o vento,
a terra iremos jantar,
Lá vejo muitas ribeiras,
lavadeiras a lavar;
vejo muito forno aceso,
padeiras a padejar,
e vejo muitos açougues,
carniceiros a matar
 







 
Antes a estação

Agora engaiolada


Também vejo três meninas,
debaixo de um laranjal.
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,

A mais formosa de todas,
está no meio a chorar."
- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar"
- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
Que eu tenho mulher em França,
filhinhos de sustentar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar."
- "A Nau Catrineta, amigo,
eu não te posso dar;
assim que chegar a terra,
logo ela vai a queimar.
- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."
- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."
- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar"
- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar.
Que assim como escapou desta,
doutra ainda há-de escapar"

Lá vai a Nau Catrineta,
leva muito que contar.
Estava a noite a cair,
e ela em terra a varar.

(Popular)

2 de julho de 2012

Quando


Quando o meu corpo apodrecer e
eu for morta 
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de
bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.




Sofia de Melo Breyner (1919,2004)

Tinha uma pedra

Antes
No meio do Caminho                                                    

No meio do caminho tinha uma pedra                                       
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra

Agora
Carlos Drummond de Andrade (1902,1987)          

28 de junho de 2012

São Pedro

Não é poema simpático, não senhor, mas é com boa vontade, no dia do santo, e é de Poeta.

S.Pedro

Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos trez que traz velhice   
Ás festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um phenomeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho d'essas chaves —
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquelle passo do Evangelho
Do "Tu és Pedro" etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.

Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso — fecharem-me — não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
                                                                         

            
                                                                        
                                                                     Que o estar fechado faz-me mal
                                                                                      Até na beatitude do teu céu,
                                                                                      Entre os santos do paraíso,
                                                                                      (A liberdade — Deus dá a Deus —
                                                                                      Um Deus que não sei se é o teu),
                                                                                      O estar fechado, aqui ou alli, dizia eu
                                                                                      Faz-me terríveis cócegas no juizo.



Grão Vasco (1475,1542) São Pedro


Enfim, que direi eu de ti,amigo
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongorica,
Por fruste deselegante,
Como de quem. sem saber nada. exhausto,      
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.
 Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O peor é que nada d'isso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandies cinicos desdens.
Que diabo, és uma série de ninguens.
        O Santo são as chaves,e não tu.
                                                       
                                                      

                                                        
                                                       Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
                                                       Para outros as barbas já citadas,
                                                       Para uns o tal fatidico chaveiro
                                                      Que fecha à chave as almas sublimadas.
                                                      Para uns tu fundaste a Roma do Papado
                                                      (Andavas bêbado ou enganado
                                                      Ou esqueceste
                                                      O teu posto quando o fizeste)
                                                      E para outros enfim, como é o povo
                                                      E segundo as ideas que elle faz,
                                                      És quem lhe não vem dar nada de novo —
                                                      Umas barbas com S. Pedro lá por traz.

                                                      É difficil tratar-te em verso ou prosa,
                                                      Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
                                                      Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
                                                      E a alma mais humilde é clamorosa
                                                      De qualquer coisa que se possa ver,
                                                      Em sonho até, qual se estivesse perto.

                                                      Olha, eu confesso
                                                      Que nunca escreveria
                                                      Este vago poema, em que me apresso
                                                      Só para me ver livre do teu nada,
                                                      Se não fosse para dar um cunho
                                                      A este livro da triologia
                                                      (Santo António, S. João, S. Pedro —
                                                      De popular, que bem que soa!)

                                                      Mas porque diabo de intuição errada
                                                      E que vieste parar a Junho
                                                      E a Lisboa?

                                                      Isto aqui ainda tem
                                                      Um sorriso que lhe fica bem,
                                                      Que até, até
                                                      No teu dia,
                                                     (O estupor velho
                                                     Como um chavelho,)
                                                     Nas ruas
                                                     O povo anda com alegria,
                                                     É fé,
                                                     Não em ti nem nas barbas tuas
                                                     Mas no que a alegria é.

                                                     Olha, acabei.
                                                     Que mais dizer-te, não sei.
                                                     Espera lá, olha
                                                     Roma, fingindo que viceja,
                                                     Lentamente se desfolha.
                                                     Teu ultimo gesto seja
                                                     Um gesto volvente e mudo.
                                                     Se tens poder milagroso,
                                                     Se essas chaves abrem tudo,
                                                     Deixa esse céu lastimoso.
                                                     Deixa de vez esse céu,
                                                     Desce até à humanidade
                                                     E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
                                                     As portas do Inferno, e da Verdade.

                                                  Fernando Pessoa, Os Santos Populares



27 de junho de 2012

Leituras de Verão






Não resisti a roubar  daqui http://diasquevoam.blogspot.pt/ . Senhores, o que eu li disto!
Metida dentro de antiga  arca de guardar cereais, na penumbra de um  celeiro, durante um Verão escaldante em Porto da Lage! Em dias iguais aqueles que, calculo, se fazem sentir hoje por lá!

25 de junho de 2012

SEC.XVIII

                                        

O  ouro do Brasil; o esbanjamento de D.João V; os coches doirados enviados ao Papa; as casacas de brocado e cetim bordados a ouro; Mafra e as procissões. O Marquês e o suposto desenvolvimento; o "meter na ordem" o jesuíta e o nobre incapaz. A rainha louca e o "reviralho".

Eis os clichés do século XVIII. Todos criados no século que se seguiu pela classe que se seguiu - a burguesia engrandecida naquele século, que tratou de acabar com um mundo, separarando eficientemente cabeças dos respectivos corpos, produzindo brutalmente, com carvão, vapor e milhões de horas de trabalho de ex-camponeses, outro mundo. O que conhecemos. Com cidadãos nascidos iguais, com os mesmos direitos, com bem estar. Por quanto tempo? 

A burguesia, a fonte maligna da riqueza e de todos os males e a fonte benigna dos nossos princípios e da nossa democracia, dependendo da ideologia de quem vê, foi sempre incipiente em Portugal, tal a vontade que sempre teve de subir ao patamar seguinte. Era a forma de se sentir respeitada, pois parece que o tuga teve sempre o seu fraquinho pela fidalguia e vontade de ridicularizar quem se queria "agigantar" através do subir na vida por meio do trabalho.
Eis um exemplo, da "middle-class" achincalhada nos seus hábitos de imitação da nobreza:




                                              O colchão dentro do toucado
                                          
                                           Chaves na mão, melena desgrenhada,
                                           Batendo o pé na casa, a Mãe ordena
                                           Que o furtado colchão, fofo e de pena,
                                           A filha o ponha ali ou a criada.

                                           A filha, moça esbelta e aperaltada
                                           Lhe diz co´a doce voz que o ar serena:
                                           “Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
                                           Olhe não fique a casa arruinada …”

                                          “Tu respondes assim? Tu zombas disto?
                                            Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
                                             Já a mãe não tem mãos?” E dizendo isto,

                                            Arremete-lhe á cara e ao penteado.
                                            Eis senão quando (caso nunca visto)
                                            Sai-lhe o colchão de dentro do toucado.

                                           Nicolau Tolentino de Almeida (1741-1811)

 

23 de junho de 2012

Noite de S.João







Na noite de S. João                                     
Há fogueiras e folias
Gozam uns e outros não
Tal como nos outros dias


Fernando Pessoa

20 de junho de 2012

Chamavamos-lhe um figo ...

Estudo para uma figueira, John Singer Sargent (1856, 1925)

Quando tiraste da cesta
Os figos que prometeste
Foi em mim dia de festa
Mas foi a todos que os deste

 Fernando Pessoa


Acerca da origem da figueira não costuma haver dúvidas - a gente lembra-se do Adão e da Eva e da maçã (ora aí está outra arvore coeva - a macieira) e tal e tal, e lá aparecem as folhas da dita agregadas à grande transgressão original e às consequentes agruras desta vida.  
Mais tarde, não lhe bastando ser velhinha como o pecado, a pobre figueira foi amaldiçoada,  só porque outro infeliz   não conseguiu, também, fugir ao seu destino e à tentação e se lembrou, depois,  de pôr termo à vida pendurado num dos seus braços.
Pobre figueira que, sem ter culpa nenhuma, anda tão mal falada e, sobretudo, tão mal associada às maldades e aos fados destes pobres mortais que, parece, também não têm culpa nenhuma do que os deuses e os seus caprichos querem fazer com eles! 
Pois a figueira é velha, era isto que eu queria dizer, terá vindo das ásias há milhares de anos, fixou-se no Mediterrâneo (estão a ver os posts turisticos, com tâmaras, e mar azul e Capri, e o Tibério, etc, etc, e estão também a ver no cinema a família do imperador a matar-se toda entre si, com figos envenenados?, pois é esse Mediterrâneo!). Por essa época já haveria figueiras no território que é hoje Portugal. Mas não há muitas notícias disso. As caravelas transportavam frutos secos, entre eles os figos, e os frescos deviam ser de causar inveja, como anuncia o personagem de Gil Vicente em 1519:

Olhade mulher de bem
Dizem qu’em tempo de figos
Não há hi nenhuns amigos
Nem os busque então ninguém
E diz o exemplo dioso,
Que bem passa de guloso
O que come o que não tem
Muita água há em Boratem
E no poço do tinhoso



E em Porto da Lage, quando começaram as figueiras? Não sei, mas gostaria de saber. Alguém sabe?

No sec.XVIII, data em que há documentos referentes às culturas existentes na zona, o figo não teria valor comestível significativo, pois não figura como doce ou fruta de eleição, como a romã e o marmelo, por exemplo. Muito menos seria um bem capaz de produzir rendimento, pois não era taxado como o eram as vinhas, as oliveiras ou o trigo.

No sec.XIX há muitas referências à existência de alambiques no concelho de Tomar, a freguesia da Madalena é a que apresenta maior número, logo a seguir à sede de concelho. Estará isso relacionado com a produção de figos?
É claro que  a produção de figos vindimos destinados ao mercado do figo passado, para consumo humano, animal e para a industria, teve o seu auge durante quase todo o século XX e Porto da Lage esteve no centro de toda aquela produção,


Esta pintura de uma artista contemporânea Trudi Doyle, intitula-se "Figueiras e
 Oliveiras num jardim da Toscânea". Onde está a diferença com os campos de
Torres Novas, os que se avistam da A1, por exemplo?


No fim dos anos sessenta a figueira ainda ocupava lugar considerável na sua economia agrícola. E, há falta de dados, correctos e rigorosos sobre esta produção, socorro-me da memória, fugidia e, se calhar, fantasiosa, tanto mais que se trata de lembranças de criança. Não peço desculpa por isso, só ajuda, se acharem importante corrigir-me e acrescentar o que aqui vai.
Lembro-me de se fazerem os terreiros, círculos quase perfeitos de terreno limpo, com o tronco da figueira ao centro, destinados a facilitar a apanha dos figos.
Apanhar as passas [de figo] era trabalho duro, não tão duro quanto o apanhar da azeitona por fugir aos rigores do frio e da chuva, dizia quem o fazia, mas que a mim me parecia igual pois o dobrar da espinha nos calores ferozes de Agosto para apanhar do chão as pequenas passas pretas não era castigo que se desejasse a ninguém.
Os figos caídos no chão eram assim apanhados e colocados em cestas de vime, por vezes já em modernos baldes de plástico, e depois transferidos para os tabuleiros de madeira para secarem. Os tabuleiros com os figos expostos circulavam de forma a apanharem luz, de feição que nunca percebi, talvez se evitasse o sol directo, não sei.
As passas eram regularmente mexidas, retiradas as melhores e as piores. Foi este o único trabalho agrícola que alguma vez vi a minha avó fazer – escolher as passas. As com mais bom aspecto, lisas, secas e gordas eram postas em sacos de pano, destinadas ao consumo de casa ou para vender. As muito más iam para os porcos, as restantes eram o grosso, o negócio. Vendiam-se à arroba. Os preços eram tabelados de cima, todos os anos se esperava por saber “a como estariam este ano” e se discutia depois se tinha “dado” ou “não dado” atendendo “ao preço do pessoal” e a "estar tudo muito caro".


Jornal  Cidade de Tomar, 19.10.1947

Da época do figo  "ir para a fábrica" e do seu transporte, está registado no meu cérebro um cheiro intenso a um caldo fumegante, que atravessava a povoação e desaguava na ribeira em torrentes pastosas, castanhas, que se perdiam por entre os canaviais e impediam que a roupa continuasse a ser lavada nas margens baixas relvadas  do seu leito, onde um fio transparente tinha corrido durante todo o Verão.

Depois, seguia-se a corrida "ao destilado". Tractores, camionetas, carroças com velhas dornas de madeira ou  recipientes mais modernos, burros de albardas com baldes dentro (como o da minha invejada colega de escola Teresa - como eu gostaria de ir de burro, como a Teresa) transportavam em sentido inverso os despojos da destilação do figo, destinados à  alimentação dos animais.
Vivia-se ainda o tempo do contínuo e ininterrupto circulo alimentar. Nada se perdia! 

Em Outubro, passava-se pela feira "das passas" na Rua dos Arcos, pela Feira de Sta Iria. Só se passava mesmo! Nunca se comprava nada, acho que só se cirandava  por lá para os adultos se inteirarem dos preços, e para nos encurtarem o tempo da estada na feira propriamente dita, a que interessava, pois então (acreditávamos nós, aborrecidos, as crianças)!

Mas não era por isso que nos faltavam durante o resto do Outono, e no Inverno, as deliciosas "sanduiches" das passas de figo recheadas de nozes, as minhas preferidas, e de amêndoas. Tudo acompanhado de passas de uva.
Não havia preocupações calóricas, havia caloroso mimo de avó.
  Onde quer que esteja, a avó desculpa este trocadilho pindérico, não desculpa? Não herdei aquele talento fabuloso de dizer graças e fazer quadras, como a avó!  

19 de junho de 2012

No entardecer da terra


No entardecer da terra
O sopro do longo Outono                                              
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.


Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
O vento lívido volve
E expira na lividez.




Fotografias de J.Alegria

Eu já não não sou quem era;              
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

Fernando Pessoa, in Poesias





18 de junho de 2012

Ponte



"Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.                                 
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar á sua beira...
...

- Por sôbre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um outro que eu não posso acorrentar..."

  Mário de Sá-Carneiro, in 'Indícios de Oiro'


17 de junho de 2012

Flor da Murta



D.JoãoV, 1689-1750
Oh! flor da murta
Raminho de freixo



Deixar d'amar-te
É que t'eu não deixo.
Morrer sim

Mas deixar-te não
Oh! flor da murta
Amor do meu coração.
Oh! flor da murta
Do meu coração
Deixar d'amar-te
Ai não deixo, não





Estes são os versos de uma cantiga do sec. XVIII supostamente alusivos aos amores de D.João V com D.Luisa Clara de Portugal, cognominada Flor da Murta. Estes dramas amorosos e, neste caso, indutores de casos trágico-cómicos, como aquele em que o Duque de Lafões foi salvo de um destino pior do que a morte graças à miraculosa frase de  Frei Gaspar da Encarnação "Não queira meter-se Vossa Magestade no inferno !"podem ler-se na nova literatura portuguesa, que anda agora muito interessada nas novelas históricas, ou, para facilitar, num destes blogs



Mas é a flor da murta, literalmenta a flor que o arbusto murta (Myrtus communis, gentileza da wiquipédia) oferece, que nos faz continuar no século XVIII. Sabiam que nesta época, Tomar e arredores (quem sabe Porto da Lage) eram um grande produtor da água odorífica criada a partir daquela flor?  Vejamos o que conta sobre isso, a propósito da produção alimentar local, como agora se diz, o Padre António Carvalho da Costa:



É esta vila[Tomar] e todo o seu termo copiosamente abundante de azeite, bastante pão e bons vinhos, regaladas frutas, em que se singularizam as gamboas, marmelos, e romãs, que se produzem pelas hortas e pomares e quintas, de que há muita quantidade, de recreação e rendimento, com fontes, tanques e alegretes de muito custo e muito aprazíveis. Os valados dos olivais e matos são pela maior parte de murta, cujas flores destiladas dão tanta cópia de água hodorífica que não se pode crer a quantidade de almudes, que desta vila se mandam para a corte, de que se faz grande estimação. É também fértil de coelhos, lebres, perdizes e em extremo tordos. Bem provida de carne com cinco açougues, e de peixe, por ficar catorze léguas da costa da Pederneira, donde vem fresquíssimo, e três do Tejo, que a provê de mugens, fataças, sáveis, sabogas e lampreias, e do Zezere, ainda mais vizinha, com que participa de todo o pescado da água salgada e doce(1).



A colheita da flor da murta já não seria coisa
pouca cem anos antes, seria já então um bem com algum valor e sofreria protecção comercial, pois  nas Posturas camarárias de 1607, de que já se falou neste blog, se determinava o seguinte - "toda a pessoa que for à flor da murta a não poderá apanhar em valados de vinhas, hortas, cerradas, tapadas semeadas, pela banda de dentro, com pena de 500 réis, e só a poderá apanhar pela banda de fora, e subindo aos ditos valados ou destapando-os pagará a dita pena".(2)




1- Corografia Portuguesa e Descrição Topográfica do Famoso Reino de Portugal, do Padre António Carvalho da Costa, 1717, pag.162.

2- A.M.T pag. 62, vol. 1581-1700
Imagens retiradas da net