Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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18 de fevereiro de 2021

Memórias - A Tagarela

 

                                                                               A Tagarela


Era muito animada aquela estrada. Passava e passava-se, sempre, muita gente e muita coisa  por ali. Automóveis, era raro, a estrada era de terra, com fundas poças no Inverno e muito pó no Verão, mas os tractores já eram comuns por lá e as carroças e bicicletas então, era um virote, já para não falar de gente a pé a caminho dos seus trabalhos no campo. Eu costumava imaginar o que haveria lá para o fundo, da estrada, onde eu nunca fora, que arrastaria tanta gente. No Verão, quando o milho e o tomate cresciam, ouviam-se, mal rompia o dia, os motores de rega, sinal da modernidade, ou o chiar das noras puxadas por mulas ou burros, a providenciarem a água que os ajudaria a suportar o calor infernal da tarde. Naquela várzea ao longo da ribeira, as pequenas propriedades, as fazendas, sucediam-se em fatias, paralelas umas às outras, cada uma com o seu poço, algumas com grandes tanques, outras nem tanto, mas todas verdejantes, todas prósperas, com horta, milho e pomar. Isto de ambos os lados da estrada, embora do lado direito, ao longo da ribeira, as hortas predominassem, Do outro, as vinhas estendiam-se, à medida que o vale acabava para a esquerda, para a encosta, e entremeavam com os campos de oliveiras e figueiras, semeados de cereal seco que se colheria no pico da estação.

Ao fim do dia, eu punha-me com a cabeça enfiada nas grades do portão ou ao cimo das escadas, com a tia Alice, a minha madrinha, quando ela estava connosco, a ver a retirada do campo. Vejo agora que este seria (será que já é?) um bom nome para um quadro naturalista, uma estrada à luz estreita quase de crepúsculo por onde rodam pessoas e animais alquebrados, a caminho do merecido descanso nocturno. Os boas tardes, até amanhã se Deus quiser, o vá com Deus ecoavam no silêncio do final do dia e faziam sombras no portão, na estrada, em todos os corpos, de tal forma que aqueles sons se corporizavam e existiam, ainda existem e me correm no sangue.
Umas figuras patuscas que passavam todos os dias pela estrada eram uns pais e uma filha, eles de meia idade, ela pelos vinte anos, muito alta, mais alta do que qualquer rapariga que eu já tivesse visto, esgalgada e ossuda. Iam os três sempre de manhã, de carroça, a cuidar do amanho da terra; ao cair da noite, à volta para casa, quando traziam muito carrego, vinham apeados, quanto muito arranjava-se um lugarzinho na carroça, no meio do feno, das hortaliças ou da lenha, para a mãe, a mais fraca de todos.


Mas, invariavelmente, a pé ou sentada na tábua da carroça, pela manhã, ou ao cair da noite, sempre, sempre, a rapariga ia a falar animadíssima. Estou a vê-la, a pé, a figura alta e magra de saia rodada de flores, e botas grossas, sempre a esbracejar e a atirar com as pernas, entusiasmadíssima com as próprias palavras. Chamávamos-lhe lá em casa a máquina falante.
Nunca percebi nada do que dizia, parece que ninguém percebia. 
A minha madrinha dizia que gabava a paciência dos pais por estarem constantemente a ouvi-la, eu achava que eles tinham muita sorte em tê-la, pois não era a vida deles animadíssima com uma filha daquelas?
Mas a madrinha também tinha pena dela, dizia, embora não explicasse porquê, que ela tinha uma história triste, estava condenada a viver para sempre aquela vida, sempre para cá e para lá com os pais a tratar da sua fazenda, sem vida de rapariga, sem ir passear com as outras, ao café ou aos bailes ao domingo à tarde, sem ter namorado nem casar, e um dia, depois, a ficar definitivamente sozinha. Valia-lhe a sua alegria. 
E eu, conquanto fingisse que não e não fizesse perguntas, sabia o motivo da compaixão por ela, conhecia, através das minhas fontes habituais, as minhas colegas de escola, um pormenor íntimo sobre a rapariga do qual, parecia, toda a gente das redondezas estava inteirada. Eu ouvira-as perplexa - a pobre da tagarela tinha nascido homem e mulher ao mesmo tempo, diziam, e tinham sido os pais a escolher que ficasse com sexo feminino! Eu acreditara, mas não compreendera, nem como se processava fisicamente um fenómeno daqueles, nem, muito menos, porque é que isso a afastava do convívio dos demais!(MFM)

Luigi Gioli ( 1854-1947) Ritorno dai campi 1912

 NOTA: Outras imagens de pinturas: Van Gogh (1853-1890) e Tomás de Anunciação (1818-1879)


17 de fevereiro de 2021

Memórias - A Anita

 

A Anita era uma amiga de sempre da avó. Tinham sido vizinhas em Tomar e tinha-se aproximado e aprofundado amizade com a nossa família,  especialmente com a avó apesar de alguns anos mais nova do que esta, depois de ter perdido os pais muito jovem 

Era uma senhora alta, com porte distinto, modos sofisticados, muito alegre e simpática, sempre muito bem vestida e de cabelo arranjado, visita regular lá nos Olivais, algumas vezes acompanhada do filho.

A história da vida da Anita era surpreendente. Ela própria ma contou, já eu era crescida, mas, antes, quando vivera em Porto da Lage já eu tivera ocasião de embasbacar, não era para menos, ao saber o modo peculiar como a Anita regulava, digamos assim, a sua vida.

A Anita vivia em Lisboa* quando ficara viúva de um militar de baixa patente que a deixara com fracos recursos e um filho pequeno, um rapazinho atrasado mental de menos de dez anos de idade. Contava ela que tinha passado dias de desespero, sozinha sem família que a apoiasse, sem saber como havia de prosseguir a sua vida, pois sentia-se obrigada a trabalhar para sobreviver mas não via como o fazer, por não ter a quem deixar o filho, criança com comportamento difícil e que não aceitava estranhos.

Aqui interrompo para contar o conto de outro ponto, vivia eu em Porto da Lage e já tinha conhecido a Anita que se correspondia muito com a avó. Num dia em que se recebeu carta e, à hora de almoço, a avó a leu em voz alta ao avô e à tia Alice, eu ouvi, ao contrário do que era costume. Acho que se terão esquecido que eu estava por ali. Eram cartas pormenorizadas, as daquele tempo, depois de se perguntar pela saude e informar da própria, recomeçava-se onde se tinha terminado a anterior missiva, contando-se todas as peripécias ocorridas entretanto, ...tinha-se ido ali, ...fulano dissera, ...cicrano acontecera. Mas reparei durante a leitura na referência sistemática a um mesmo nome de que eu nunca tinha ouvido falar, quase em todos os assuntos tratados, que dissera, que aconselhara, o que me intrigou. Claro que eu não tinha direito a meter o bedelho, primeiro porque não, a gente não se metia nos assuntos dos adultos enquanto eles falavam ou tratavam do que fosse lá deles, segundo porque intuía que estava ali por engano e o que eu menos queria era que dessem por mim. Pretendia ouvir o final, mas, chegado a ele, fiquei na mesma sem saber quem seria o tal.
Mas não esqueci. Confiante no efeito surpresa e na salvaguarda da tia Alice, sempre pronta a defender-me, assim que achei oportuno perguntei- Avó, quem é o Víctor? – Qual Víctor, filha? – Ora, aquele de que a Anita falava na carta? E a tia Alice deu uma gargalhada – Descalça lá agora essa bota, Maria José! A avó acabou de lavar a loiça, sentou-se. A avó tinha uma maneira particular de estar sentada, com as costas muito direitas e as mãos cruzadas deitadas com as palmas para cima,  sobre o regaço, penso que deveria ter os braços muito compridos para conseguir aquela posição, e disse – Olha filha, tu já és crescida – o que para mim antecipava a vinda de coisa séria. E lá informou, com um suspiro, que o Víctor era o marido da Anita. E o que é que isso tinha? Casou-se outra vez, pronto! Tanta coisa para isto! -Não filha, é o mesmo marido. – O mesmo, mas não tinha morrido? – Morreu sim!

Regresso dois parágrafos atrás, estava a Anita sem saber o que fazer à sua vida de viúva sem rendimentos quando, uma noite estando a dormir, se sente abanada na cama, acorda e quem é que vê? O falecido marido, que a conforta, lhe diz que tudo vai correr bem e lhe dá um endereço de um local onde ela deverá ir pedir que lhe acolham o filho. Ela assim faz, lá chegada sabe que era uma instituição dirigida por frades que educavam crianças com problemas da natureza dos do filho. O rapaz ali ficou até ser um homem, sempre acompanhado pelo pai que o vigiava e ia dando notícias à mãe, quando acontecia estar doente ou ser menos bem tratado lá se punha ela a caminho e chegava, para surpresa dos frades, para o acarinhar e  regularizar as coisas.  
Quando os conheci era contínuo num escritório de advogados, cargo que levava muito a sério, usando sempre fato e gravata além da inseparável pasta, onde, orgulhoso, levava os preciosos documentos ao tribunal ou onde fosse.  

E muitas noites se seguiram, depois, a esta de reencontro da Anita com o marido, nada era decidido, nada era feito sem o acordo do Víctor, muitas vezes era ele a propor iniciativas que conduziriam a melhorias na família. Por conselho dele, passara ela a ser membro de uma igreja espírita qualquer de onde trazia sempre livros e algum proselitismo, a única conversa da querida Anita para que não havia ouvidos nem retorno. Ninguém por ali estava interessado em conhecer a raíz da sua crença, em questioná-la ou contrariá-la.Nunca ouvi o avô falar sobre isso, mas tenho a certeza que sustentaria que seria aquele o modo que Deus arranjara para a ajudar a vencer a prova que a vida lhe enviara. Os restantes, embora não se atrevessem a envolver o Senhor em matéria tão sensível, pensavam o mesmo. Ela era nossa amiga e aquilo, fosse o que fosse, ajudava-a. Seguia-se no assunto o lema da tia Alice "cada um era feliz à sua maneira".

Entretanto, depois de ver o  filho entregue em boas mãos, passara ela a ser costureira de dentro. Trabalhava em casa de senhoras das quais retirava o seu rendimento e também, parecia-me, aquela desenvoltura e aquele gosto em se vestir.

Depois de, em miúda, ter passado a saber deste “segredo”, que só o seria para nós pois a Anita não tinha pejo nenhum em falar dele (havia sempre muito cuidado com os encontros entre ela e a tia Maria**, apesar da Anita estar avisada, a avó não confiava e procurava que estivessem juntas o menos tempo possível), pelo contrário, aquilo era a sua vida, passei, já mais velha, a pedir à avó para ler as cartas. Sozinha dissecava aquelas descrições de conversas com o Victor, que era, como lhe hei-de chamar? um ser sensato, inteligente, que se exprimia bem.

Eu adorava conversar com a Anita, sempre que sabia que ela estava em Porto da Lage arranjava maneira de também lá ir, para além da alusão por tudo e por nada ao Victor, o que me deliciava (era da gente se esquecer que ele não estava no mundo dos vivos) e a Anita sabia tudo sobre moda, trazia revistas, conhecia intrigas sobre os artistas da televisão. Trabalhava na Lapa, em casa da marquesa de …  prima de …. que tinha muitas filhas, meninas que se davam, namoravam algumas até, com actores e cantores e lhe contavam tudo sobre aquelas vidas  divertidas, modernas, libertas, tão diferentes da minha, provinciana.

A última vez que me lembro de falar com ela, em 1975 ou 1976, estava ela empenhadíssima na construção de uma casinha em área protegida na Fonte da Telha ou Lagoa de Albufeiranão sei bem, motivo pelo que se fizera sócia de uma cooperativa. Dizia ela que tudo estava encaminhado para ser  legalizado. Não foi. Enganou-se o Víctor, ou ela não lhe deu ouvidos. Quando eu soube da noticia da demolição daquele bairro, lembrei-me dela e desejei que já cá não estivesse, pelo menos fisicamente, para ver. (MFM)


* Numa rua linda, na Madragoa, muito perto do palácio de S.Bento. Rua, onde eu, mais tarde também vivi sem saber que tinha sido a dela. Quando finalmente fiz a ligação (através do remetente de uma carta dela, já todos tinham morrido) interroguei-me sobre a forma como ela explicaria isto.

** Já aqui falei nela, católica apostólica romana com tolerância não incluída, nunca aceitaria nem a Anita nem que ela fosse recebida lá em casa.

16 de fevereiro de 2021

Memórias- A Casa (cont)

 

Aquela casa solitária, no meio de olivais e com difíceis acessos, nunca estava sozinha. Havia sempre os empregados, quem vinha buscar e trazer produtos, fazer negócios com o avô, e as visitas.

As visitas, quer fossem as de média ou curta duração, como primas e amigas da avó e a Augusta que vinham para ficar pelo menos uma semana, quer as que vinham por um dia ou até por momentos como a tia Maria, eram habituais.

A tia Maria chegava a vir várias vezes por dia, muito diligente e prestável, lá vinha de sua casa, atravessava a ponte e a horta trazendo sempre alguma coisa ou disposta a ajudar em algo. A doença cardíaca da avó era o pretexto, embora a ajuda fosse recebida pela beneficiária não sem alguma impaciência. Para a tia a ajuda não se oferecia, impunha-se. Mas gostava de mim, era meiga e atenciosa, muito atenta ao meu bem-estar. Só uma vez nos zangámos. Sabendo, num domingo qualquer, que, por uma alteração inesperada eu, para não ficar sem missa, teria que ir com o avô a pé a Cem Soldos, ela achou mal, não concordou e impôs-se “a menina não pode fazer esse caminho todo a pé, não está habituada”, enfrentou o avô, aparelhou a sua mula à carroça e lá fomos.


O avô amuou e foi a pé. Íamos as duas sentadas na tábua da carroça devidamente tapada com uma manta quando a tia reparou no tamanho da minha saia e não gostou. Por duas vezes ma puxou para baixo. Pretendia tapar-me as pernas, processo impossível, o vestido era curtíssimo como todos os daquele tempo, e mais curto ficava por eu ir sentada. Farta da insistência, não arranjei melhor para dizer do que a expressão um tudo vulgarucha (teria a avó razão ao proibir-me certas companhias?!) então em uso na minha escola – Mas o que é que tem? Isto não é nada do outro mundo! Ela olhou-me, surpreendida com o despropósito nada habitual em mim e disse- Pois não, não é do outro mundo! E aí é que reside o mal! Eu esbugalhei os olhos à resposta a tentar perceber, olhando para a sua cara acusadora. Quando compreendi, morri de vergonha das minhas escanzeladas e brancas pernas e só desejei ter ali um longo hábito, como os usados pelas santas dos altares, para tapar aquelas pecadoras.

Aguarela de Roque Gameiro

Uma constante na frequência diária de gente lá em casa, eram os jornaleiros, aqueles que chegavam de manhã, habituais nas tarefas de todos os dias que trabalhavam juntamente com o avô, iam com ele para as fazendas ou ficavam por ali, entre os quais se incluíam mulheres que, sendo preciso, também ajudavam em tarefas domésticas. Faziam limpeza, amassavam o pão e lavavam a roupa.  Lavavam-na no tanque ou na ribeira em certas épocas. Uma destas era uma prima em segundo grau do avô, filha de um primo direito. Vinha sempre com uma filha adolescente para a ajudar. Era uma pessoa que caía ou batia frequentemente em coisas, das escadas ou no que fosse, pois a cara andava sempre esmurrada, às vezes mesmo ferida. Eu gostava muito de estar com elas, de encher de sabão os lenços, ou outras pequenas peças de roupa,  previamente molhados e esticados, esfregá-los com determinação na pedra e, depois, enxaguar na água limpa, a avó deixava, elas eram educadas, falavam bem, não diziam palavrões. Diferente era quando a lavagem tinha lugar na ribeira, ao fundo da horta, nas brancas pedras seculares. Aí chegavam a juntar-se muitas mulheres, provenientes de várias casas da família e de quem pedisse para ir ali lavar, o sitio era propício, a água limpa, e o espaço contíguo de erva baixa indicado para pôr a roupa a corar. Então a conversa era outra. Elas falavam livremente entre si e pouco se importavam com uma miúda que andava por ali, a passear de pés dentro de água, a jusante das lavagens, para não a sujar. Contavam das suas alegrias e tristezas, lamentavam as alheias como ainda pior que as suas. Foi destas conversas que eu percebi que a prima não devia a sua cara esmurraçada a quedas nem a encontrões, ela, como outras cujos episódios de vida eram ali contados, era vítima de uma violência que eu não imaginava existir.

Madonna, Munck

Dentro do meu assombro com esta novidade brutal juntava-se o estilhaçar da imagem que eu tinha de maridos e pais, dos que eu conhecia realmente e da dos livros, e a profunda pena por aquelas mulheres e crianças espancadas pelo poder caprichoso de quem tinha força, o que me magoava e não me deixou sossegar por muito tempo. Tanto mais que não havia ninguém para me acalmar, como noutros casos, não era suposto eu conhecer nada disto, eu sabia que "não eram coisas para a minha idade", não havia, portanto, razão para conversa. Apenas na escola, onde me fui apercebendo da banalidade do fenómeno. Os pais assíduos das tabernas, bêbados ao entrar em casa noite fora pondo toda a família em sobressalto, espancando a mãe e os filhos que intervinham, por vezes a fuga para casa de vizinhos e parentes, eram a triste rotina de muitos dos da minha idade.
Mas até esta infeliz matéria, servia de tema à avó para uma das suas mise-en-scène habituais como contarei a seguir. Embora não com muita frequência, apareciam por vezes ao portão, os “pobres de pedir”. Pediam por amor de Deus algo para comer e, fugindo ao lema da família do marido, em que tudo tinha que ser merecido, senão de outra forma, através do trabalho, a avó dava sempre, sem exigir nada em troca. Dava sempre, pelo menos, uma mão-cheia de azeitonas ou de passas, passas de figo que havia sempre de sobra.

A Caravana Cigana, Van Gogh
Uma “pobre” que aparecia uma vez por ano era uma cigana. Fazia parte de uma caravana, composta por várias carroças puxadas por tristes e famélicos cavalos ou mulas, que atracava anualmente em Porto da Lage e por ali ficava uns dias.

Do lado de fora do portão, agarrando-se às grades chamava ela pela avó. Oh minha amiga, minha amiga! A avó aproximava-se e lá ficavam, a avó no pátio, a outra na estrada, separadas pelo portão fechado, falando longamente por entre as grades. Nestas conversas contavam coisas das vidas e famílias respectivas das quais nunca se saberá qual a mais fantasiosa. A avó inventava coisas pois "não convinha que ela soubesse da nossa vida” sem quaisquer remorsos porque, segundo ela, a outra fazia precisamente a mesma coisa. Mantinham assim uma amizade de longos anos, na qual só este sentimento era verdadeiro, tudo o resto eram flores (expressão da avó quando se queria referir ao supérfluo) baseada numa hora de representação anual ao portão de uma casa em nenhures, em que ambas eram simultâneamente as actrizes e as espectadoras! Sessão acabada, antes de se despedirem, a avó ia buscar uma garrafa de azeite e dava-lho. O azeite não se dava a não ser para fazer um agrado a quem se estimava ou se devia favores. De resto, destinava-se, por exemplo, para a candeia da Senhora da Piedade (costume tomarense) mas esse era do velho, dos anos transactos. Este era azeite do bom, do ano, que a cigana escondia debaixo das saias, enquanto agradecia muito, a recomendava muito a Deus para que lhe desse saúde e paciência, lembrando-lhe que Ele um dia havia de a recompensar. E ia-se. Se, por acaso lobrigava o avô, longe ou perto, imprecava-o sempre – O diabo te arrenegue homem maldito. Que vás parar às profundas do inferno. Homem maldito! repetia bem alto, levantando os braços com os punhos fechados unidos, enquanto a vista o alcançasse. O avô era surdo, quando se lhe gritava era pior, e neste caso, mesmo que ouvisse levaria tudo em conta das excentricidades de uma cigana, e não ligaria. Mas a coisa tinha sentido e era séria. No papel que lhe coubera na farsa arranjada na sua imaginação, a avó era uma vítima espancada constantemente pelo marido, o qual seria capaz de a matar se soubesse que tinha tirado um litro de azeite da talha. (MFM)

   

15 de fevereiro de 2021

Memórias - A Casa (cont)

 

Naquelas casas naquele tempo não havia “lixo”, aquilo a que hoje em dia se chama lixo doméstico  que é escolhido cuidadosamente atendendo à origem, e com todo o empenho colocado em inúmeros compartimentos diferentes “para reciclar”. É claro que haveria o equivalente, proveniente das limpezas e da cozinha mas não se chamava lixo, agora que penso nisso, nem sei se teria algum nome particular. Havia os “restos” da preparação da comida, o que estava cru, cascas de batata, legumes, etc., e os “restos dos pratos”, coisa quase inexistente pois a gente só se servia da quantidade que pensava ir comer e havia que ter sempre presente aqueles que queriam comer e não o tinham e por isso teríamos que comer tuuuuudo o que estava no prato (confesso que a causalidade entre os dois fenómeno me escapava quando era muito pequena, mas tinha tanta pena dos meninos que me contavam que tinham fome que, apesar de não perceber como, para não lhes piorar a situação, obedecia e comia- -assim nos era inculcado o sentimento de culpa  desde a infância, pena foi que, em vez de ser só para nosso beneficio o não fizessem também para intervir e procurar o dos outros).

Mas, enfim, como não eramos obrigados a comer ossos, espinhas, ou quejandos, sempre sobraria qualquer coisa para o Liró e para o Preto. Outros habitantes lá de casa, o primeiro gozando do previlégio de ter uma identidade, graças ao meu irmão que o baptizara, o outro, que não tivera essa sorte, era apenas nomeado pelo que a natureza o distinguira, sendo os dois considerados seres assim a meio caminho entre os cristãos o gado e a criação. A criação compunha-se de tudo o que tinha pena e mais os coelhos (estes nunca lá os conheci, parece que ficara toda a gente com repugnância dos ditos, depois da chegada da grande praga da mixomatose nos anos cinquenta), o gado eram os outros animais, e os cristãos seriam os sobrantes quer o fossem ou não (ali, como é sabido, eram, de grande qualidade).

Era doutrina vigente, tudo e todos terem a sua função e o seu dever a cumprir. Até eu, a mais protegida, tinha responsabilidades, ia à escola e fazia recados. Quanto aos animais, com excepção da mula, que fazia pela vida puxando a carroça e o engenho, os outros, cumprida a sua missão de pôr ovos, dar leite e reproduzir-se, mais tarde ou mais cedo obedeciam ao seu destino e iriam parar à panela, à nossa ou à alheia. No cumprimento daquele preceito, os dois gatos, ao contrário do que é habitual num pet doméstico (já naquele tempo o era), não eram apaparicados nem senhores de lugar de cadeirão nem mantinha, tão pouco estavam autorizados a pôr  as patitas dentro de casa. Não tinham, portanto, direito a pertencer à classe inactiva, como ninguém por ali tinha. Também eram obrigados a dar o seu contributo para o bem comum. Utilizando as suas competências, obviamente, para o que era mister (o que eu gosto desta expressão!) incentivá-los não lhes dando de comer. Só assim se entusiasmariam a atacar a rataria. Daqui se depreende que nem eles eram estúpidos para fazerem esse trabalho por puro prazer (dizer-se que gostam só pode ser calúnia, logo eles, tão amigos da limpeza, gostar de tarefa tão asquerosa?) nem, muito menos, a avó que lhes conhecia de ginjeira a manha e sabia do que eram capazes. E assim, mesmo que houvesse pratos a transbordar de espinhas de pescada cozida ou carapau grelhado, aqueles trabalhadores incansáveis não tinham direito a refeição completa, fossem buscar o segundo prato aos sótãos e lugares recônditos como era de sua obrigação! Acho que a avó nunca soube que parte da minha tigela de leite (coisa longe do meu agrado desde sempre) do pequeno almoço e do lanche tendia a contrariar, na medida do que me era possível, esta estratégia tão bem delineada.


Mas, voltando aos restos, os provenientes da confecção da comida eram encaminhados directamente para os consumidores seguintes, naquele nosso ciclo de vida. As galinhas, embora estas com direito ainda ao seu capricho, não adianta, acabam por estragar, mais vale ir já para os porcos e estes últimos com quem não se fazia cerimónia nenhuma, até porque não se davam ao respeito e não desdenhavam absolutamente nada. Criaturas absolutamente sôfregas, incapazes de parar de comer fosse o que fosse, viesse de onde viesse, mesmo as ricas espinhas de carapau esbulhadas ao Liró e ao Preto. Recordando aquela avidez cúpida, não posso deixar de compreender aqueles povos nossos conhecidos que rejeitam esta carne por impura. 
De facto!!! Mas, pensando melhor, antes assim, a bela costeleta do cachaço e a orelha de coentrada, o que é que têm a ver com o caso, se a gente não pensar nisso? Onde é que já vai o pecado original da coisa? Ser cristão é muito libertador.

Haveria também os desperdicios provenientes do que não vinha da horta ou dos nossos animais e se adquiria na mercearia ou drogaria, que muitas vezes era um único local. 
Nas mercearias não existiam produtos empacotados como agora, tinham elas tulhas de onde nos miravam e rescendiam os mais variados produtos, que eram daí retirado com uma pá, colocados em cartuxos de papel, caso do grão e feijão, arroz, massa de meada, levados à balança e aí ajustado o peso desejadoEm grosso papel pardo embrulhava-se a manteiga e o atum de conserva, por exemplo. Também assim era embalado o sabão, o azul e branco e o amarelo. O  papel dos cartuxos e o dos embrulhos, era guardado para embeber o azeite dos fritos, peixe, batatas fritas, croquetes e, quando já não tinha utilidade, queimado para ajudar a atear o lume. Tudo era aproveitado. Não havia plástico, pelo menos não embalagens. Já apareciam sacos desse material, verdadeiros tesouros, lavados e postos a secar para voltarem a ser usados. Os únicos materiais não orgânicos que poderiam ser dispensados seriam o vidro ou as embalagens de lata, mas nunca, serviriam para colocar coisas, por exemplo, para o avô dividir os pregos por tamanhos ou pôr os mais variados liquidos ou compotas.
Lembro agora as lojas dos meus encantos, as drogarias, lugar paradisiaco de cor, confusão e cheiro. O cheiro daqueles sítios era único, e para mim  completamente perdido no passado. Até que, há algum tempo, em Viseu, o reencontrei. Numa rua estreita e bonita, que depois passou a ser maravilhosa, entrei numa daquelas lojas, que reconheci por toda a parafernália que se alcandora pela porta e se estende sempre pela rua, para procurar um produto que procurava há anos. Encontrei-o claro, e reencontrei o cheiro. Ele provirá, no mundo real, de um produto ou de vários mas, para mim, cá no meu mundo de Dorothy Gale, ele surge, o cheiro nasce da visão louca de mil e uma cores e coisas desencontradas, do pente vermelho, do escadote, do alicate azul e da sertã cor de burro quando foge enfiada no cabo da vassoura laranja, da rede da capoeira e do shampoo que representa as últimas tendências em encaracolamento de cabelo! Nesta confusão de sentidos, os meus olhos cheiraram na primeira drogaria, depois noutra, mais outra, de tal forma que Viseu ficou, para sempre, a ser uma terra querida devido às suas drogarias encantadas.  (MFM)

(continua)

12 de fevereiro de 2021

Memórias - A Casa

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O meu desejo, bem egoísta reconheço, de ter netos*, consiste, além das outras razões igualmente egoístas que faz com que a maioria das pessoas com filhos os queira ter, consiste, dizia, em encontrar sentido para as minhas memórias. Para que as quero eu se não tenho a quem as deixar?
São um património que só pode encaminhar-se para quem o entenda. Eu sei que é assim porque foi assim que sucedeu comigo.
Os meus netos viverão num mundo novo, o tal admirável, cujos contornos não consigo imaginar.
Eu também já nasci num mundo diferente do anterior, no qual já havia automóveis, aviões, cinema, televisão, telefones, aparelhos elétricos que apoiavam a cozinha e a vida doméstica em geral e, durante a minha vida, assisti ao desenvolvimento de tudo isso e à chegada do computador pessoal e da internet. Além disso, aquele era um mundo onde tudo, ao princípio estava organizado em dois lados, o bom e o mau, havia as democracias e as ditaduras, a guerra era fria e a gente conhecia muito bem o mapa da Europa. 
Depois tudo mudou, foi posta em causa a ideologia que arrastara gerações, substituída por fanatismos religiosos e outros, os costumes mudaram, a guerra voltou, países brotaram e o velho continente ficou com mapa irreconhecível e ultrapassado por outros.

Mas não é desse mundo que retiro as memórias que quero transmitir, é de outro, de outro tempo, quiçá de outra dimensão, que passou fortuitamente por mim em criança e cuja lembrança me assalta agora num fundo agridoce de dor e de maravilha. E, como recordações de criança que são, entendo que apenas outras crianças parecidas comigo, como terão de ser forçosamente os meus netos, as compreenderão.


Vivi uns tempos numa aldeia que pertencia ao presente daquele tempo, tempo de transição que se encaminhava para um futuro que traria progresso e melhores condições de vida; conheci uma família alargada que se amava entre si, mas que fora disso não parecia ter particulares estimas no lugar, que tinha fumos de grandeza que se sustentavam no facto de os restantes, muito pobres, os considerarem ricos; e habitei numa casa com dois avós que pertenciam, eles e a casa,  à categoria do mundo encantado.
É dessa terra, dessa famíla e dessa casa enfeitiçada, cujo sortilégio me acompanha os sonhos e desses dois velhos fascinantes, ele cismador, devoto e trabalhador, ela inteligente, fantasiosa e de humor corrosivo, que eu hei-de, um dia, falar aos meus netos. 

Crianças que, pertencentes a outro mundo, hão-de apreciar conhecer este outro, que era triste e alegre, justo e injusto, rico e pobre, como o deles, como o de todos os tempos, mas onde as pessoas iguais às de sempre, viviam de outra forma, tinham outros hábitos, usavam outros objectos e, sobretudo, tinham outros sonhos. E onde, bem no centro desse mundo, para mim, estava a casa dos avós. Começarei por ela.

Era uma casa de lavoura. Sede da agricultura praticada em menos de uma dúzia de parcelas de terra, que por ali se chamam fazendas, dispersas pela freguesia, algumas, mas a maioria próxima da casa. Nas fazendas  mantinham-se, desde que havia memória, oliveiras centenárias, vinhas e figueiras e plantavam-se cereais na época própria. Em frente à casa, atravessada a estrada de terra, havia a “horta”, perpendicular  
à ribeira lá ao fundo, e sobre esta, uma pontesinha aparentemente frágil permitia a ligação rápida da casa ao centro da povoação. Na horta medravam as árvores de fruta e os legumes de época, destinados à família, regados pela água do poço que tinha fama de ser a melhor nascente daquela várzea, talvez mesmo da região, nunca secava. Nos anos em que a secura apertava era ver os vizinhos virem abastecer-se de água ao nosso poço, o único que permitia, ainda, que os alcatruzes a transportassem fresca e transparente, das suas profundezas, puxados pela nora que a mula fazia movimentar.
Logo à entrado de casa, à direita do pátio, ficava a casa de habitação no andar superior, a adega no piso térreo, com o competente lagar de vinho, de pedra, contiguo à única janela estreita, no meio do qual estava disposta uma prensa, destinada a espremer o mosto do bagaço das uvas. No resto do espaço, sempre fresco na calma do Verão, ficavam as alfaias agrícolas, a carroça e a charrete que em tempos servira para levar a avó às compras a Tomar, e, viam-se com dificuldade lá ao fundo, no meio da escuridão, encostados às paredes barris de madeira de vários tamanhos desde os gigantescos até aos pequenitos que hoje se vêm a servir de decoração nas casas típicas. Mas tudo isso, lagar e barris, já não tinha uso no meu tempo, apenas as grandes dornas entravam ao serviço uma vez por ano para transportarem as uvas, na carroça ou num tractor emprestado, até à adega cooperativa em Tomar, durante a vindima.
As acomodações, destinadas aos animais e a diversos arrumos, sucediam-se lá para dentro, separadas em lojas, quando no piso térreo, ou sótãos, quando no de cima. Havia o sótão das batatas e das cebolas, onde estas se dispunham em réstias e as outras se espalhavam pelo chão sobre sacas de sarapilheira. O "palheiro" ficava igualmente num sótão, localizado numa grande arrecadação de passagem, de alto pé direito onde, em cima, se colocavam os fardos de palha ou erva seca e por baixo residia a pobre mula, quase às escuras, por vezes acompanhada de uma vaca ou boi quando, não sei porquê, passavam acidentalmente lá por casa

Mas havia também um sótão como todos os que conhecemos, onde se guardavam as velharias, móveis antigos, alguns bons demais para estarem a uso, argumento formidável que só poderia vir da boca da avó (não era ironia,os móveis eram de facto bons) objectos de uso pessoal, espelhos e quadros provenientes de um primo de um bisavô de Tomar, que fora criado de quarto do rei D.Luís, o qual lhe teria dado aquelas prendas – a importância que se dava aquilo era nenhuma!, uma pequena arca encoirada a que eu sempre aspirei e que os deuses, invejosos, mais tarde terão desviado para o Olimpo, e outras coisas consideradas sem préstimo de momento, tudo envolto nos competentes reposteiros tecidos pelas aranhas, mas que eu não hesitava em transpor para entrar naquele mundo maravilhoso, onde havia, entre outros tesouros uma arca cheia de revistas de moda dos anos trinta e quarenta e de livros antigos, alguns escolares, que eu adorava folhear.


Por baixo existia o celeiro, onde, dentro de grandes arcas de madeiras repousavam o milho e o feijão, que se mediam através de caixas de madeira – “os alqueires” - cada uma com seu tamanho correspondente a determinada capacidade que se media precisamente em alqueires. Já o azeite, ali também guardado em talhas de barro, media-se em almudes e, talvez por isso, as bilhas de latão com tampa, de diversos tamanhos, nas quais também se colocava o azeite, se designavam genericamente por “almudes”. Mas estas antigas unidades de medida, o alqueire e o almude, seriam só usadas por hábito e para uso doméstico, já tinham sido ultrapassados, oficialmente,  pelo litro e pelo quilograma, pois também existiam uma balança e um "litro" se a intenção fosse vender.
O pátio lá atrás, onde também havia um poço com nora e um tanque, onde a prima Anita lavava a roupa, estava rodeado de alpendres, um aberto com gamelas baixas onde se avistavam as cabeças dos porcos sempre ocupados a comer, e onde, mesmo ao lado, descansavam há décadas as enormes galeras cheias de pó, antigos carros puxados por bois que tinham servido para transporte de mercadorias entre a estação local de caminhos de ferro e Tomar. Nos alpendres fechados, situava-se, num, o forno onde, depois de amassado pela Celeste, se fazia o pão ao sábado, no outro, ao lado, era o local onde se preparavam os alimentos que requeriam mais espaço e provocavam sujidade, se matavam e depenavam as galinhas, se faziam as compotas, as caldas de tomate e pimento para todo o ano, a avó fazia queijo fresco quando havia leite de cabra ou ovelha, apertando com as duas mãos a coalhada até sair o soro e colocando-a depois em cinchos de aluminio, se retalhavam azeitonas e cortavam finas as couves incapazes para a cozinha, misturando-as com farelo para dar às galinhas. 
Quando passaram a ser servidas à mesa dos restaurantes as migas com couve como fazendo parte da “cozinha tradicional portuguesa”, não pude deixar de recordar em como era percursor e requintado o menu das galinhas de Porto da Lage. Aliás, eram mesmo bem tratadas, aquelas galinhas. Passavam o dia numa capoeira grande e arejada neste pátio e, quando se punha o sol, abria-se-lhes a porta e elas iam sozinhas, atravessando o redil das cabras e ovelhas e o palheiro da mula, até ao pátio da frente onde se situava o seu dormitório todo emparedado, que as mantinha fora do alcance dos predadores. 
Por essa hora, também os pombos estavam de regresso de um longo dia fora de casa e aguardavam que lhes fosse aberta uma guarita no mesmo local para, um a um, por uma ordem que só eles saberiam, se instalarem para dormir.
Era aquele o último, talvez único, acto que, a avó ou eu, estávamos obrigadas antes de “ir para cima”, fechar a porta do galinheiro e a guarita dos pombos. O que não queria dizer que o avô não fosse, depois, confirmar quando “fechasse tudo”.


Já há muito que o pessoal se fôra, viera das fazendas, deixara o que trouxera, colheitas, mato, erva, e o material, a enxada, a forquilha, o que fosse, se despedira “até amanhã se Deus quiser” e partiam para suas casas levando fruta se a havia ou lenha se fosse Inverno, “Vá com Deus, primo” respondia o avô. Muitos dos trabalhadores, gente muito pobre, do Paço da Comenda, eram família, povo sem sorte que ficara pelo caminho, mas não deixavam de ser parentes e assim tratados. Agora restava ao avô tratar do gado, dar-lhes comida, “tratar das camas”
 era de manhã quando tivesse ajuda, percorrer todos os cantos com a lanterna acesa assegurando-se que tudo estava como deveria e voltar a ver se os portões, os três que franqueavam o seu forte ao exterior, estavam bem fechados. Só depois subia. Ao cimo das escadas, onde havia um lavatório, lavava as mãos, apagava a lanterna e deixava-a aí. “Boa noite se Deus quiser” dizia  entrando finalmente na cozinha alumiada pelo candeeiro a petróleo.(MFM)
     
(continua)






*Isto foi escrito antes de ter netos. Hoje a última coisa para que "os quero" é para lhes transmitir memórias, mas admito que já os levei a fazer "visita guiada" ao que aqui descrevo.

11 de fevereiro de 2021

Memórias - A Prima A.

 

A Prima A.

 

Ao lado da horta existia a fazenda da prima A. Tinha um pereiro, que deitava ramadas para a estrada, por cima do muro de pedras, foi o único pereiro que conheci na vida, nem sei se o nome será este, sei que se chama peros à fruta que dá. Considerando que as pereiras dão peras, concluo que se aquele dava peros, seria um... ou não? Também não interessa, os peros, verdes, pequeninos eram deliciosos, costumávamos apanhá-los da estrada, a prima não se importava, até fazia gosto. Ao lado, ainda lá está bem maltratada, uma roseira de Santa Teresinha, de florinhas eternas, na minha imaginação estarão sempre lá, pequeninas e perfumadas, cheirando a rosas como era de obrigação delas antigamente. A minha madrinha Alice, amiga de flores, ao contrário da minha avó, ia lá por vezes apanhar uns raminhos, colocava-os depois numa jarrinha em cima da cómoda. As rosas, os cheiros da cera dos móveis e do chão, do calor seco na penumbra das portadas das janelas fechadas de Agosto, são estes os aromas sob os quais escrevo tudo o que me lembro


Pois a prima A. tinha um burro, ia 
para a fazenda de burro, não morava longe, era logo depois da ponte, embora aos meus dez anos tudo fosse muito mais longe que hoje. Mas seria perto, tanto que ela, à volta, ia muitas vezes a pé, levando o burrinho à arreata. A razão da vinda do animal, era a rega e o transporte de produtos. Mal chegava, colocava o burrinho na nora, e ele ali passava a tarde, ou a manhã, a dar voltas ao poço, puxando os alcatruzes, cheiinhos da água transparente, as vezes parecia-me azul, e despejá-los no tanque. Daqui a água saía a correr, ia pelos regos, direita às hortaliças ou ao milho, ou, nas grandes calmas, às caldeiras das árvores, para que dessem bom fruto na época. A prima cuidava da rega, encaminhando a água, deixava-a entrar nos canteiros fechava as saídas com terra com ajuda da enxada, esperava que todo o canteiro ficasse encharcado, depois fechava o canteiro, a água corria outra vez livremente até ao próximo e o processo recomeçava.

Eu estou a inventar porque nunca vi de perto a prima A. a regar, mas vi muitas vezes outras gentes e tudo me diz que ela seguia este processo secular, quando eu a observava lá de casa, corcovada sobre a enxada no meio das couves e das abóboras. No Verão a prima ceifava, pequenas quantidades é certo, para levar para os coelhos lá para casa, para as grandes colheitas arranjava ajuda, mas tudo se completava num dia, a fazenda era pequena. Por vezes acompanhava-a uma sobrinha, era professora algures, solteirona, mas aquelas mulheres não encontravam par porquê, caramba? E vinha pelas férias, à tarde de sábado ou no Domingo, aqui só para colher qualquer repolho ou pé de alface, que em dia santo não se trabalhava. Ao fim do dia a prima carregava os seirões com produtos da sua horta e lá ia ela, de chapéu de palha, a pé, mais o burrinho, estrada fora, quando a melancolia já descia por cima da nossa casa e se trocavam as boas noites prima, até amanha se Deus quiser.
Agora que olho para trás e tento recordar a sua figura, imagino que talvez ela fosse uma excêntrica, uma velha hippie de 70 anos, afinal aquele era o tempo deles, e não o soubesse. Não era uma camponesa, vestia roupas simples, saias estreitas de fazenda, blusas de algodão, sapatos de grosso cabedal, casaco comprido de lã no Inverno, nada de tamancos ou lenços na cabeça, dir-se-ia uma modesta senhora da cidade, talvez mesmo uma estrangeira, uma country woman inglesa.

Era interessante de ver, aquela velha magra, morena de sobrancelhas carregadas, cabelos ainda pretos puxados atrás num toutiço, um pouco alquebrada dos ombros, de lenço de seda ao pescoço no Verão e xaile de malha castanha no Inverno, sentada de lado encima do seu burrinho ou com ele a pé pela mão. Mantinha sempre uma cara séria, nunca a vi sorrir, também a ouvi falar poucas vezes, mas era solícita e disponível, sempre pronta a ajudar, sobretudo, muito trabalhadeira, a minha avó admirava-a muito. Curioso que a minha avó, que nunca pisou a terra para a cultivar, raramente para apanhar alguma coisa da horta, que se achava superior e olhava com condescendência para quem o fazia, tinha consideração pela prima A. A ponto de lhe conceder a honra de sua sucessora.

Metera a avó na cabeça que morreria antes do marido e preocupava-se com quem tomaria conta dele depois da sua partida. Dedicava-se por isso, com muita seriedade, coisa que os adultos conhecedores da coisa achavam, alguns mórbido, outros uma brincadeira ou mesmo loucura, mas que eu, com o meu pragmatismo da adolescência até nem achava mal (atendendo a que ele não sabia escolher a roupa que vestia, nem que era preciso aquecer água para fazer chá ou café) a seleccionar, a partir de solteiras e viúvas conhecidas, a futura companheira certa para o seu marido. Depois de criteriosa escolha entre candidatas que nunca imaginaram terem estado sujeitas a semelhante apuramento, foi eleita a prima A. como a herdeira ideal.
E a avó tratou de o comunicar ao interessado. Procedeu como sempre que pretendia apresentar-lhe uma questão séria, na convicção que ele reagiria como era habitual. Passavam-se assim os interlocutórios entre o casal: quando a  refeição (o almoço a que eles ainda chamavam jantar, a noite não era ajeitada para se discutir coisa nenhuma) já se aproximava do fim, ela dizia: - Olha João, estive a pensar numa coisa, vê lá o que te parece ….Ele continuava a comer sem olhar, enquanto ela ia falando. Se a ideia exposta lhe agradava, interrompia rápido e dizia – Muito bem… e seguia-se a escalpelização do assunto. Se não lhe agradava, deixava-a acabar, nunca a interrompia, terminava a refeição com calma, arrumava os talheres no prato e levantava-se da mesa. Sem dizer uma palavra. Chegado à porta da cozinha, procedia conforme o costume diário, virava-se e informava-a sobre o que iria fazer e onde estaria, de tarde. Estava dado o sinal de que o assunto não devia voltar a ser falado (antes que se levante por aí a gritaria  em uso sobre a condenação retroactiva do machismo, diga-se, neste caso, em defesa do avô,  que ela, por vezes, tinha ideias de tal forma mirabolantes, de irritar um santo, comentava a nora e minha mãe -esta que vos conto perto de outras é pacifica- que ele, ao fim de cinquenta anos tinha mesmo que ter arranjado uma estratégia de sobrevivência).
Desta feita, porém, depois de a ouvir,  reagiu -Não serve, é muito negra!- continuou a comer.
Agora sim! Já pode começar a desanca que eu acompanho! Homens! Insensibilidade masculina no seu melhor, só pensam neles! Pobre avó, tão empenhada no bem-estar dele! Pobre prima, preterida por não se encaixar no seu ideal de beleza, não obstante as suas inúmeras qualidades!
(MFM)

 

Pintura exibida na imagem  - Mulher de vestido vermelho e chapéu de palha -1937, Picasso (1881-1973)