Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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21 de outubro de 2013

A Prima Marquinhas e o Arroz Doce



Um membro da família, que era sobrinho, casou. A mãe e as tias haviam preparado as sobremesas: pão de ló e arroz doce. Os cozinhados com os produtos da capoeira, do ovil ou do cabril, eram da responsabilidade duma conceituada cozinheira vinda dos arredores.
Factos consumados, almoço servido, ingerido e cada qual serviu-se do pão de ló e do arroz doce decorado com canela, dispersos pela mesa em pequenos pratos. Toda a gente lhe prestou a devida homenagem. Os bis e os tris não precisam ser rogados. A mãe do noivo, como anfitriã e briosa em receber os seus convidados, deu conta que os pratos de arroz doce que se haviam preparado, não estavam todos na mesa. Há que traze-los. Na cozinha não estão. Abre a porta dum quarto e sente o aroma da canela. Espreita por baixo da cama que lá estava e...eureka! Quem os levou para lá, para o quarto dos noivos? Tinha sido a prima Marquinhas com a sua tão característica e obstinada ideia da poupança demasiada ou, talvez, para proporcionar aos noivos, antes de adormecerem, noites plenas de doçuras.
O arroz doce continuou, na mira da prima Marquinhas, a ser um manjar só para degustar. Para satisfazer o apetite, havia outras coisas mais económicas, tais como: batatas, feijão, couves mas com pouco azeite. Uns anos mais tarde, depois do casamento do sobrinho, aconteceu um episodio de pouca relevância mas que foi aproveitado durante alguns anos para complemento de apartes de alguns dichotes.
A prima Marquinhas festejava um aniversario na companhia duma irmã, duma cunhada, filho, sobrinhos e primos, numa estancia balnear onde foram veranear durante 15 dias. Depois da simples refeição do almoço, a prima Mariquinhas coloca na mesa uns tantos pratos com arroz doce e deles serve, com conto e medida, os participantes na refeição. Não houve os "parabéns a você" porque no meio social em que se vivia, a cantiga era desconhecida, a não ser os fados do Estêvão Amarante ou as cantigas da Mirita Casimiro. Os pratos onde o arroz foi servido, vão ficando vazios. A prima Marquinhas que tinha sentado a seu lado o sobrinho mais novo, pergunta-lhe em voz audível:
 - Queres mais?
E de imediato, em voz baixa:
-  Diz que não, diz que não, diz que não!
Continuando e memorizar a nossa querida prima e tia Marquinhas, que há muitos anos está com Deus, como era seu ardente desejo, e que me levava na charrete quando eu ia a pé com minha mãe a caminho de Cem Soldos para assistirmos à missa.
Não é uma memória de enaltecimento. É uma memória para caracterizar. E... assim, quando algum mendigo batia ao portão da casa e lhe parecia que era pessoa ainda com bastante capacidade para o trabalho, entregava-lhe uma vassoura rústica (vassoura feita de galhos) e mandava-o varrer todo o pátio. Depois do trabalho feito e inspeccionado, dava-lhe a moeda ou o  óbolo.(Ilídio Mota Teixeira)


As Contas, de José de Brito (1855-1946)



* Era minha tia-avó, irmã da outra,  e igualmente bem viva e muito presente na minha breve passagem por Porto da Lage, em criança.

É verdade tudo o que Ilídio diz, aliás, creio que não haverá na memória de todos os maiores de cinquenta anos, que alguma vez privaram com a tia, prima ou apenas sª D. Maria Mota, ser menos controverso do que a própria. Na sua definição entram unanimemente dois conceitos (as palavras variarão consoante a literacia e a delicadeza de quem as profere): parcimónia e fervor religioso.

Fui, como todos, vítima dos seus interrogatórios acerca do cumprimento das obrigações do culto católico, as confissões e comunhões em dia, as orações ao deitar e levantar, os jejuns dos dias obrigatórios, tudo era questionado quando não era observado ou sabido de fonte segura. Vi uma vez um congénere meu (também sobrinho-neto) rapaz espigadote, de cabelos compridos e calças à boca-de-sino, e em quem todas estes assuntos estavam tão presentes como a água no deserto, ser torturado (não, não ponho aspas, foi mesmo) por, às cinco da tarde de um domingo ter confessado (coitado, foi-lhe perguntado e era um inocente) “ainda” não ter ido à missa!

As hipóteses de “ainda” recuperar do delito foram-lhe apresentadas num raio de vinte quilómetros, a tia sabia os horários de todas as missas nos três concelhos limítrofes! É verdade que os transportes eram inexistentes, o que pouco importava pois o menino tinha boas pernas, ainda faltavam duas horas para a última missa, o sacrifício era bem visto aos olhos do Senhor e Ele havia de o ajudar!

Valeu ao pobre não se pôr a caminho de nenhures (ela dispunha-se a acompanhá-lo) ao fim de tarde de rigoroso domingo de Inverno, o meu avô, que, não obstante não ser menos rígido que a irmã na observância dos ritos religiosos, era pessoa prática e razoável – Chega Maria, já não há nada a fazer! O rapaz terá prometido não faltar a mais nenhuma missa o resto da sua vida (acredito que, pelo menos a uma foi, agradecer a Deus por ter sobrevivido) e deixaram-no ir. Mais tarde partiu para os Estados Unidos. Ainda hoje lá está. Penso que este episódio não terá nada a ver com isso.

Mas não são só estas as recordações que tenho da tia, melhor, estas são as minoritárias.

Recordo a ternura que sempre me demonstrou. Quando a avó adoecia e a tia Alice não se encontrava por perto, era ela que atravessava, de noite, a pontesinha de madeira e a horta, escuras, de lanterna na mão, e me vinha aconchegar à cama. Me dava um beijo de boa noite e me recomendava ao meu anjo da guarda. De manhã quando acordava, já lá a encontrava em casa, na cozinha, à minha espera de caneca de leite com café de cevada e pão com manteiga na mesa. Quando a garganta ou as dores nas pernas me afligiam, impunha-se o seu remédio de eleição: algodão encharcado em álcool! Para a primeira, o dito envolto num pano era amarrado ao meu pescoço e, imediatamente, a cabeça enfiada debaixo dos quilogramas dos cobertores de papa, “para não evaporar”. Funcionava “como a graça de Deus”. Quanto às pernas, friccionava-mas com toda a força com o bendito álcool, tapava-as, também de repente, com as calças de flanela do pijama e ala, cobertores de papa para cima! Parece que o álcool, os cobertores de papa e a rapidez de movimentos, eram, para a tia, o segredo da cura!

Duas ou três vezes fui mesmo “transferida” para casa da tia. E aí a coisa era bem mais divertida. Não havia escadas e a casa cheirava a cera e a flores. E lá existia a Anunciação, sua companheira de muitos anos, pessoa conversadora e simples, que limitava os rigores de culto ao mínimo exigido pela patroa, a quem contrariava e confrontava sem grandes cerimónias num tom de voz meio gritante a que a tia respondia sempre calmamente, baixinho. A disparidade do tom de vozes, aliado ao facto da tia, como todos os Mota, ser surda, tornava aqueles diálogos deliciosos de ouvir. Agora que penso nisso, recordo que assim como eram (e são, incluo-me) surdos, os Mota falavam baixo, com calma, sem exaltações mesmo quando indignados ou até encolerizados.

Quando fiz o meu exame da 4.ª classe, em Tomar na escola da Várzea Grande, foi também a tia que me acompanhou. Lá fomos, de carro com motorista, cortesia das ligações familiares da tia, enquanto as minhas colegas iam de camioneta da carreira. Recordo-me das suas palavas de incentivo antes de entrar na sala, eu deveria, claro, em primeiro lugar “confiar em Deus” mas também lembrar-me que “era muito inteligente”, portanto tudo correria bem.

Poucos elogios calaram tão fundo em mim como este, em toda a minha vida nunca me esqueci. Assim como sempre me lembrarei da merenda que a tia  me trouxe depois e que comi sentada num banco de pedra no recreio da escola, pão-de-leite com fiambre, um verdadeiro luxo à época.
Terá sido esta uma das últimas vezes que privei com ela. Depois de sair de PL via-a esporadicamente. Já adulta, visitei-a quando estava muito doente, dias antes de falecer. Voltei então a entrar na casa dos meus encantos de criança, o cheiro ainda lá estava à minha espera. E recordo a tia a dormir, com a cabeça descansada numa bela almofada branca bordejada com largas rendas engomadas, a face visível muito rosada e um enorme sorriso que só podia ser de felicidade. O mesmo sorriso que vi na cara do meu avô no momento que partiu.  De certeza que foram, os dois, para onde sempre aspiraram ir. (MFM)

2 comentários:

  1. É um bonita e comovente homenagem à memória da tia Mariquinhas, que fiz questão de ler de viva voz ao meu pai Ilídio.
    luísa mt

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  2. Também eu e a minha mulher Ró, podemos atestar das características da Tia Maria era avara e pródiga ao mesmo tempo.

    Quando tinha pessoal a trabalhar no campo, não queria cantorias pois estas impediam a concentração que o trabalho requeria. Porém, nas vindimas, temendo que o pessoal se tentasse pelas uvas, ela sempre dizia: “Cantem, meninas, cantem!”

    Tal como acontecia com a Filomena, também eu quando estava doente, tinha como certa a visita da Tia Maria. Vinha, rezava, e à saída aconchegava-me a roupa de modo a não ter frio nos ombros… Ainda hoje, não consigo dormir a preceito se não tiver a roupa bem aconchegada ao jeito da Tia Maria!

    Uma vez por outra, nas raras ausências dos Pais, ficávamos ao seu cuidado. A Tia Maria, que só tinha tido um filho, não sabia que nós éramos malta de porta aberta. Lembro-me de seis maneiras de sair do nosso quintal: dois portões, raramente fechados ou trancados, a saída pelo Consultório, outra saída pela sala de visitas, outra ainda pela casa da Tia Soledade e ainda por uma brecha dum muro que dava para a Serração… Assim em casa da Tia Maria, com tudo fechado às sete chaves era difícil respirar. O Tio Augusto Rosa era mais cordial – mostrava-nos o lagar de azeite, que era digno de ser visto - e a Lúcia – predecessora e irmã da Anunciação – é que era a nossa melhor aliada.

    Naquela casa, havia a tradição de sopas espessas quase de comer com garfo. Raramente deparo com sopas semelhantes, quando isso acontece recordo-me sempre dos Tios Augusto & Maria.

    Do Primo Manuel Rosa tinha pena, pois fora filho único e naquela casa teria tido pouca liberdade, não teria sido criança como os demais e desconhecia o humor das brincadeiras e desatinos dos jovens.

    Recordo uma vez – entregues ao cuidado da Avó – que o Henrique e eu saímos com o “Austin” MN-36-95 a dar uma volta. A gasolina acabou e regressámos atrelados a uma carroça. O tal Primo Manuel “Sisudo” resolveu confiscar-nos o veículo e guardou-o na sua garagem, mesmo a meio do quintal. Mais, mandou entregar a chave à nossa Avó!

    O Henrique e eu, com a ajuda do outro Henrique, Artur, Luís e julgo que Virgílio, resolvemos subtrair o “Austin” da garagem alheia mesmo com o Primo Manuel e a Tia Maria, na saleta donde se poderia ver o carro. Munido duma corda, entrei sorrateiramente, amarrei a ponta ao para choques e dei o sinal para que puxassem.

    Eu ao volante e de marcha atrás, negociei a curva à volta do poço onde havia uma nora , e silenciosamente saí do quintal com o “Austin” que regressou à nossa garagem, onde aguardou a chegada dos meus Pais… Tudo voltara à normalidade!
    ………..

    A Ró – curiosamente Rosa Mota – também tem ternas recordações da Tia Maria. Era Inverno na sua primeira visita a Porto da Lage. Vinha de Angola com um calor de rachar, e com dois filhos pequenos enfrentou o Inverno em Porto da Lage. Tive que levar os meus Pais a Soutelo da Gamoeda/Bragança e lá ficou ela a tomar conta do casarão… A Tia Maria apareceu quase logo, a oferecer os seus préstimos e a insistir que ia dormir lá “porque a Menina não pode ficar cá sozinha com os seus bebés”.

    Ainda bem que ficou pois a Ró sentiu-se indisposta – azeite mais forte ou o fumo da lareira? – e a boa da Tia Maria lá estava a olhar por ela.

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