Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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12 de outubro de 2016

Quinta de Porto da Lage II

Mas, e a estação? A estação estava "lá" desde 1864, não mexia, não tinha casas, gente?

Aparentemente, nos primeiros anos os funcionários dos caminhos de ferro ou não se radicaram em Porto da Lage ou não se fizeram acompanhar pelas famílias, pois só a partir de 1875 os registos paroquiais (o ultimo registo tinha ocorrido em 1819, em "Moinhos de Porto da Lage") nos dão conta de nascimentos de crianças relacionadas com trabalhadores de caminhos de ferro. Estes viveriam em casas anexas à estação ou nas casinhas das passagens de nível, sendo que em Dezembro de 1877, Mathilde vê a luz do dia  no edifício da estação, enquanto que apenas dois irmãosinhos, filhos de um casal de "fazendeiros", nascem na mesma década (ver quadro abaixo). Quanto às duas mortes ocorridas desde a inauguração da estação até 1880 trata-se de uma mulher guarda da passagem de nível e de uma criada da quinta. Na década seguinte nota-se já o contributo dos descendentes Sousa Rosa para o crescimento da população local e a ajuda que uma via de comunicação rápida e moderna traz aos pecados deste mundo: dois inocentes abandonados! Nas últimas décadas do século é nítido o acréscimo de nascimentos de ambos os lados, embora se comece a verificar o aumento dos habitantes "civis" face aos "ferroviários". Nota curiosa quanto às últimas mortes do século XIX em PL, todas elas violentas: a do chefe da estação atropelado por uma máquina descarrilada, a do guarda do Km 120 igualmente vítima de um comboio e a de Manuel Sousa Rosa Júnior, também atropelado mas por uma carroça, numa corrida destas, quando tentava saltar de uma carroça para outra (as famosas quadrigas de Porto da Lage e o Ben-Hur de Assentis! que segredos me reservas mais,terra do meu avô?).


Fonte: Registos Paroquiais da Freguesia da Madalena, Tomar, A.N.T.T.
                                   
 Da leitura dos registos paroquiais, duas situações, desde logo, se evidenciam. A primeira é a relação que se estabelece entre estes dois grupos populacionais. Observa-se que os "lavradores" ou os seus filhos são padrinhos dos filhos dos ferroviários mas o contrário não se verifica, o que significa que as pessoas se davam e procuravam estabelecer laços, embora não de forma igual, reproduzindo as relações tradicionais de quem tinha menos poder, económico ou social, procurar, junto dos grupos sociais "acima",  o apoio e o patrocínio para os seus filhos no caso de os pais lhes faltarem ou mesmo de ajuda para a sua educação ou empregos futuros. A outra situação observada é, com a entrada do novo século, o aparecimento de "pobres". Os assentos de baptismo tinham afixadas estampilhas de valor diferente, supondo-se que este variava de acordo com o rendimento familiar, e, no caso de não as terem, referia-se à margem - não paga por ser pobre ou, simplesmente, é pobre. Estas situações começam a verificar-se em Porto da Lage em assentos em que os sobrenomes não são hoje conhecidos e em que o pai é referido como jornaleiro ou fazendeiro. Serão portanto os novos pobres aqueles que trabalham na agricultura mas não detêm terra, trabalham por conta de outrem e usufruem de salários menores que os dos ferroviários, pois estes continuam a ter o selo aposto no assento de baptismo dos filhos.


Porto da Lage desempenhou, através da estação de caminhos de ferro, durante mais de sessenta anos, o papel importantíssimo de porta de entrada,  na cidade de Tomar e no interior centro do país, do que de novo acontecia pelo mundo em todos os aspectos. Por ela passaram as mercadorias e equipamentos destinados às novas indústrias, ao comércio, à agricultura, bem como as personalidades e as novidades culturais e científicas. De uns e outras fomos dando conta neste blog, com recurso às notícias existentes nos arquivos da imprensa local. Estou certa que pesquisas na imprensa nacional e em espólios fotográficos da época trarão acréscimos riquíssimos ao conhecimento do papel da Estação de Paialvo na vida económica-social da região de Tomar. Aos jovens estudantes de História, Sociologia,enfim Ciências Sociais em  geral que se interessam por história contemporânea e têm de apresentar a sua dissertação de final de curso, podem crer que tema mais inédito, inexplorado e com mais potencialidades é difícil de encontrar! Fica a ideia, completamente free!!
Mas Porto da Lage é mais do que "a estação". Esta é um capítulo da sua vida, mais um que se enquadra no seu nome - Porto- ponto de encontro de uma estrada com um curso de água. Este ponto de encontro e descanso de viajantes da estrada real, antes a estrada medieval, antes ainda a via romana, com a vetusta ribeira da Beselga, é o seu destino. 
Os estudiosos das vias de comunicação dizem que há locais que, pelas razões imperiosas da geografia-  localização, relevo, cursos de água,clima,etc, proporcionam e fazem confluir para si diversas vias tornando-os centros viários de pequenas áreas, regiões, países.  

Sem qualquer base científica, atrevo-me a especular que PL é um desses locais. Ao longo de séculos não se tornou uma verdadeira povoação,como as vizinhas Vales, Casal da Fonte, Paço, Porto Mendo, Cem Soldos.
Foi um local de passagem durante séculos, com habitantes residuais. Tornou-se maior durante um período de tempo, graças a uma família com muitos filhos que lá construiu casas para a maioria dos filhos mas que, quando estes partiram ficou, novamente, com  população residual.
Mas, repito,  Porto da Lage manteve, mantém, sempre a sua matriz: lugar de passagem.
Repare-se na actual bomba de combustível, com café, e no lugar de venda que se instalou ao lado! O centro de Porto da Lage deslocalizou-se (odeio esta palavra, mas cadê outra?) para aqui. De novo, toda a região vem comprar o pão,o leite, as sementes, os alfobres,  a Porto da Lage. Vem, sinal dos novos tempos, buscar dinheiro, pôr gasolina. Esperemos pelo sapateiro (com costureira, engomadeira, tatuador, tudo incluído como agora se usa), que funileiros parece que já não há em lado nenhum! Porto da Lage continua a ser central, um ponto de encontro. As outras, as aldeias, continuam lá, onde os antigos as puseram, Deus saberá porquê, mas os seus povos continuam a vir, abastecer-se, tomar café, beber um copo, trocar impressões, aqui, em Porto da Lage, onde não vive ninguém. (MFM)