Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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13 de maio de 2023

O Artigo 62.º na Freguesia da Madalena

Nota prévia: A 24 de Dezembro último o Pai Natal (eu, o menino Jesus da minha infância não me atrevo a chamar aqui) pôs uma prenda no sapatinho deste blog (por meio de um comentário) a qual, depois de devidamente desembrulhada, ainda não tinha tido, até hoje, oportunidade de ser mostrada. Cá vai agora, espero que o resultado agrade e aí chegue, à Lapónia ouço dizer, em condições.(MFM)


A 21 de Abril de 1911 o Governo Provisório da República Portuguesa publica a Lei da Separação do Estado e das Igrejas. Definia esta nos seus primeiros artigos os principios  da liberdade de consciência e liberdade religiosa para todos os cidadãos, determinava o fim do Catolicismo como religião oficial do Estado, explicitando que "A República não reconhece, não subsidia nem custeia culto algum" colocando em pé de igualdade todos os credos e todas as igrejas. Apartava, deste modo, a organização do Estado e a política do campo de atuação próprio das organizações religiosas, quaisquer que elas fossem. 
 Os louváveis avanços civilizacionais preconizados  nos principios da Lei  acabaram por não ter os significado e resultado relevantes que mereceriam devido ao restanto articulado daquela e, sobretudo, à sua execução, que conduziram à  despropositada, selvagem e carnicenta perseguição de que a Igreja Católica foi alvo depois.
Pois que esta medida de Afonso Costa, suportada no Republicanismo anti-clerical que  culpava a influência da Igreja Católica de todos os males da vida social portuguesa, visando  assim restringi-la, acabou por não trazer nenhum bem nem à República nem, como é costume, a Portugal. A proibição do ensino religioso a um povo maioritariamente católico assim como das ordens religiosas, que na época se dedicavam sobretudo à providência social a um povo também faminto, a fiscalização do culto religioso (o culto público necessitava de prévia autorização, foram proibidos o uso de hábitos ou vestes talares fora dos templos, bem como as procissões religiosas e o toque de sinos nas igrejas), a nacionalização de todos os bens e rendimentos da Igreja deram origem ao descontentamento de grande parte do país. 
A esta decisão peregrina o partido no poder  juntou outras duas de igual vulto, mandar milhares de jovens camponeses analfabetos serem assassinados na Flandres e não atender as reivindicações e reprimir violentamente as lutas do operariado urbano. Foram estas, em suma, cumulativamente, as três principais razões que levaram o movimento republicano a perder toda a sua base de apoio e a tornar bem vindo o regime que lhe sucedeu.
Mas não é para discutir a bondade ou falta dela da primeira República que este post se destina. Desculpem o desvio da conversa. Voltemos à  Lei da Separação do Estado e das Igrejas e a um artigo da mesma que está relacionado, já adivinharam claro, com o que a dita prenda nos trouxe. Trata-se do famoso artigo 62.º que determinava que todos os bens até aí afectos à Igreja Católica passariam a ser pertença do Estado e como tal deveriam ser arrolados e inventariados, sem necessidade de avaliação remetendo-se os bens móveis de valor "cujo extravio se recear" ou às Juntas da Paróquia ou a museus. Com vista a essa inventariação o diploma prevê a criação em cada Concelho de uma Comissão Concelhia de Inventário.


  

Artigo 62.º da Lei da Separação do Estado e das Igrejas

E chegamos finalmente ao momento, que já tarda, de abrirmos a nossa prenda. Consiste esta nos documentos que comprovam o inventário e arrolamento feitos ao abrigo do dito Artigo 62.º na freguesia da Madalena.

Referem aqueles que a 13 de Outubro de 1911, os cidadãos António Mathias de Araújo, administrador do Concelho de Tomar, José Gomes dos Santos Regueira membro da Junta da Paróquia e José da Silva Pereira d'Albuquerque, Secretário da Comissão Concelhia de Inventário para os fins previstos no Artigo 62.º, compareceram "nos edificios denominados" Igreja de Santa Maria Madalena, Capela de Santa Marta e Capela de Santa Margarida, principiaram e arrolaram "o inventário da forma seguinte" ...

 Descrevem depois todos os bens móveis existentes dentro dos tais "edifícios" e que constam das imagens abaixo (a abertura do link proporciona melhor leitura).

         

Igreja da Madalena









Capela de Santa Marta - Marmeleiro






Imagem de Sta Margarida.






Como podem ler, do inventário consta além do edificio de cada templo com as respectivas confrontações, todos os bens supostamente encontrados no interior, sendo naturalmente os da igreja matriz em maior número, e que variam desde as imagens dos santos, aos quadros com pinturas sem autor, até aos paramentos clericais, casulas, alvas e estolas, etc. passando pelas 17 copas da irmandade e acabando nos panos môscas de cobrir os santos. Tudo foi arrolado, pelos vistos bem guardado e conservado a ponto de ser impecavelmente devolvido  em 28 de Agosto do ano da Graça de Nosso Senhor de 1942. Afinal tudo acabou em bem, embora pela minhas contas um pouco tarde. Não acham? 1942, só? O homem era mesmo cuidadoso, safa!!
Esta devolução deve ter sido formal pois a própria Lei deixava, salvo excepções, à guarda de Confrarias, Irmandades,  Fábricas da Igreja, quer os templos usados em culto quer o que constava no interior.
O Inventário faz ainda menção aos rendimentos da Igreja católica provenientes da freguesia: terrenos arrendados ou aforados, os quais são depois vendidos, sendo-o também alguns foros, e às "oliveiras em terra", distribuídas por 196 parcelas de terra de particulares, numa média de uma a três oliveiras por parcela. Estas oliveiras serão também vendidas por grosso em hasta pública. "Puxando a brasa à nossa sardinha" verifiquei que Porto da Lage é mencionada através de dois proprietários, Augusto Pereira da Motta que tinha sete oliveiras nas suas terras que teriam pertencido anteriormente à Igreja, uma no Casal dos Pretos, três na Fonte do Picoto, duas no Casal do Negro e uma em Porto da Lage, enquanto que a viúva de Manuel de Sousa Rosa, também moradora em Porto da Lage, tinha três em Porto da Lage e uma na Ribeira (?). 

Por último, tenho de referir ainda a estranheza por não fazerem parte deste inventário as capelas de Cem Soldos e  de Porto Mendo. Ou houve extravio dos respectivos documentos ou seriam capelas cuja propriedade não era do patriarcado de Lisboa (então a autoridade eclesiastica local), situação que o artigo 62.º excepcionava da nacionalização. (MFM)



Capela de S.Sebastião, Cem Soldos
Capela da Senhora da Saúde - Porto Mendo