Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

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16 de maio de 2012

Paixões Funestas em Porto da Lage

Casa onde morava Maria da Purificação, com a mãe e o irmão Francisco
                                                                                                    


- Amanhã vais à missa?
- Vou, porquê? – respondeu Maria da Purificação a  Francisco, estranhando a pergunta. Há dias já que não se falavam, desde que ela terminara o namoro.
- Por nada!

Foi a última vez nesta vida que cruzaram palavras aquelas duas almas. Tinham-se entendido, trocado promessas e feito projectos. Tudo até que o irmão dela se inteirara, dissera à mãe e os dois tinham acabado com o sonho dos namorados. Ele não estava à altura da soberba da mãe nem da ambição do irmão, disseram as gentes depois da tragédia, um pobre funileiro, estabelecido na pequena loja arrendada à família dela. A herança que herdara do pai não era para ser repartida com um pobre diabo, antes para ser acrescentada com os bens de alguém, pelo menos, igual a ela.

No dia seguinte, domingo, pela manhã, Francisco Silva esperava, na estrada à saída do Paço, para consumar o que tinha andado a congeminar desde a hora fatídica em que ela o procurara “não vale a pena, a mãe e o Francisco são contra, não posso ser ingrata e fazer a infelicidade de quem tem vivido só para nós, os filhos”. Não a conseguira demover, a vontade da mãe ou, cria agora, o pouco poder do amor, que ele imaginara um dia igualar a força do seu, tinham desfeito a mais linda quimera que alguma vez nascera no seu coração triste e na sua vida solitária. Ela fora implacável, não quisera saber da sua dor, embora pugnasse também sofrer, e cortara cerce todo o alento que ele ainda suplicara.

A dureza dela e o malogro de tantas ilusões perdidas tinham feito nascer naquele dia o funesto propósito que concretizava agora. Lá vinham todos, observava ele de onde se encontrava, ela acompanhada da família, corja de gente arrogante, vinham da missa em S.Silvestre. Aproximavam-se, parecia contente ela, destacava-se dos outros, sorriu-se quando o viu. Agora! Viu-a cair, surpresa, o peito empapado em sangue. Chegavam duas vidas ao fim, pensou quando se sentiu manietado. No final o mesmo destino! Como ambos tinham planeado em dias felizes.

E  assim Maria da Purificação, nascida em Porto da Lage em 11 de Junho de 1902, perdeu a vida com um tiro de espingarda, às onze horas do dia 5 de Dezembro de 1926. Era filha de Ana de Jesus Sousa Rosa e de Manuel Escudeiro. No dia seguinte, o primo António Motta vai a Tomar fazer a competente declaração ao registo civil para que possa ser sepultada no cemitério de Cem Soldos. No assento de óbito é dada como Purificação de Jesus Rosa, a causa da morte está em branco.

Consta que, no velório, a mãe chorosa murmurava - antes assim.

Francisco Silva fora imediatamente agarrado pelos homens presentes e preso na loja da casa de Manuel Augusto Motta, em Porto da Lage, aguardando a vinda das autoridades. Depois de julgado foi condenado a degredo em Africa.(MFM*)


A capa do semanário "O Domingo Ilustrado" do domingo  seguinte 12 de Dezembro,
reproduz fantasiosamente o crime, com a seguinte legenda Em Tomar, um tresloucado, Francisco
Silva assassina sem mais nem mais, à saída da missa, a sua ex-namorada, Maria da Purificação.
Tragédia passional  intensa, apaixonou a opinião pública, pela sem razão do crime
que arrebatou uma mulher honesta, na plena força da vida.



     No local em que caiu o corpo de Maria da Purificação, erigiu a população uma cruz de ferro sobre uma base de pedra. Já só resta a base.

                                          Casa em cujo r/c esteve preso Francisco Silva,  antes de ser
                                                       levado pelas autoridades.






*- À memória da minha avó Maria José, testemunha presencial dos acontecimentos, que condenava, sem conseguir esconder a simpatia que lhe inspirara o “pobre infeliz”, que fora visitar e ouvir depois da tragédia, o qual considerava "vítima de paixões funestas e das tentações do inimigo". Livrai-nos Senhor de ambas, Amen.
*-Com os meus agradecimentos à Dulcinda Teixeira, que me recontou a história e “escarafunchou” testemunhas para conseguir arranjar datas aproximadas (1927), e também ao Registo Civil de Tomar que depois de muitas tentativas próprias, goradas, permitiu que eu procurasse directamente a data do óbito.