Si hortum in biblioteca habes deerit nihil

Si hortum in biblioteca habes deerit nihil
Todos os textos aqui publicados podem ser utilizados desde que se mencione a sua origem.

14 de janeiro de 2015

Um, brevemente, por favor

Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), Chávena de Chá, 1898,
Museu Nacional de Arte Contemporânea


Das  diligências pertencentes ao chamado "secretariado da existência"* todas elas árduas e responsáveis por retirar anos à dita, poucas há mais penosas do que a necessidade de recurso aos "call center". E é que é uma necessidade cada vez mais frequente. Tirando o santo estado que ainda nos vai atendendo ao balcão, quase sempre tesourarias, pois tirando isso, lá temos nós que recorrer ao telefonesinho para resolver as questões comezinhas da vida.
E já não falo no tempo que se perde em esperas, em repetir inúmeras vezes ao que se vem, o número de contribuinte e do telefone, ou do local, ou da apólice, ou do diabo que os carregue, eu já nem falo disso, eu já só falo do modo como falam comigo! Que, reparem, eu até gosto de ser Maria, assim gostasse do segundo nome com o qual a minha relação pouquíssimo santificada, com esta idade, ainda não se pacificou, mas caramba, de "Maria" a "senhora Maria" vão quilómetros, séculos, sei lá quantas unidades mais de distância multidimensional entre uma e outra denominação. Separam-nas a delicadeza, a educação, conceitos e (porque não?) preconceitos, que  a nossa vida social estabeleceu e que deveriam ser respeitados mas que, por pura ignorância, são desprezados.
Quando o ouvinte é um homem a coisa piora, convenho, o sr. Fernandes da tabacaria, que toda a vida ouviu a clientela   a chamá-lo respeitosamente de  sr. Fernandes, passa de repente, ao telefone, sem fazer mal a ninguém, a ser o sr. Alberto para a menina da TV cabo! Calculo que deva custar.
E a questão não está na menina da TV cabo nem no rapazinho que há pouco me atendeu mas no facto de serem todos assim. Os desgraçados que se vêm obrigados a aceitarem estes "postos de trabalho", como se diz, aceitam, além de remunerações vergonhosas e horários de trabalho ainda piores,  "formações" onde aprendem a "relacionarem-se" com os clientes. Da forma em que a etiqueta é o que se vê, pior, se ouve.
As empresas que fornecem estas "formações", altamente cotadas em comunicação e relações públicas, serão do melhor que há, não duvido, eu que não percebo nada do assunto, mas sabem muito pouco de língua e cultura portuguesas, digo eu, que, como milhões, sempre sabemos mais um bocadinho que eles e agradecíamos que nos respeitassem a identidade.
No tempo das vacas gordas, em que a formação era uma das bem anafadinhas, mandaram-me uma vez, uma de bastantes, fazer uma formação sobre relacionamento interpessoal. Para que não pensem que seria alguma espécie de castigo por eu me andar a dar mal com os outros, sempre direi que não, não era, pelo menos eu pensava que não, até lá chegar! Eu e os meus colegas "de turma" provenientes de vários sectores da administração pública tínhamos em comum fazermos auditorias e entenderam, por aquele tempo, as chefias,  que estaríamos a precisar de melhorar as nossas relações com os ditos "auditados", o que até seria verdade, chefe sabe, sempre,  e lá fomos todos para o palácio onde costumavam ocorrer estes "eventos" . Belo sitio. Bons almoços. O palácio, digno de se ver, belos painéis de azulejos, tectos de caixão pintados, e o belo e afamado jardim. Mais nada que possa interessar à humanidade me ocorre dizer mais daqueles cinco dias ali passados. A minha memória recorda um período da maior imbecilidade a que uma mente humana pode estar sujeita! Desde mandarem-nos, sim, ali mandava-se, era-se "assertivo", nada de titubeações, pois mandavam-nos esquecer tudo o que tínhamos feito até aquele dia de renascimento e toca de nos dizerem que e como tínhamos de cumprimentar, com exercícios e tudo (ah, porque era tudo muito prático), as nossas mãesinhas morreriam de vergonha, caso um mau filho lhe contasse que ali tinha posto os pés, ao saber que tudo o que elas prezavam como a boa educação que nos tinham fornecido, estava, afinal, ou em desuso ou desajustado! E a língua portuguesa?! Oh desgraçada, que só serves para os Lusíadas, que tão desadequada és para   te entenderes nestas coisas do management! Não se diz obrigada, porque não se está a obrigar ninguém, agradece-se! E diz-se sempre "eu", não se omite portuguesmente o pronome,  não vá o nosso interlocutor pensar que está a falar, pela nossa boca, outra alma qualquer. A minha querida colega R. que já está a esta hora livre destas frioleiras (boa reforma e um grande beijinho R.), senhora da sua alta formação em linguística e sempre generosa, bem tentou, sou testemunha do seu esforço, pôr algum bom-senso na cabeça da nossa "formadora", bem bramou a favor do não torcimento da língua, da não interpretação literal do que é falado, mas qual? Nada a fazer! Quer dizer, fez-se! Muito! Desde os bancos do liceu que nenhum de nós se divertia assim. Quero querer que alguns foi a primeira vez na vida que "se portaram mal" numa sala de aula. Lembro-me de um angolano que o seu governo terá com certeza mandado à Europa também aprender a relacionar-se, que só se ria. O rosto negro envolto no colarinho branco engravatado, quando não estava tapado com as mãos, exibia sempre grossas e translucidas lágrimas de riso a escorrerem-lhe pela cara abaixo. O homem, com o português mais clássico e sólido de todos nós, sempre que falava era corrigido. Seguia-se a gargalhada  geral. Apenas a formadora não percebia que não nos riamos dele.
E assim alguém ganhava dinheiro com a "formação de altos quadros"! É verdade que o erário público perdia, mas garanto-vos que nós não ganhámos nada com isso, continuámos a ser cordiais e a comunicar sofrivelmente, não completamente mal, com os nossos interlocutores.
Mas o jovens dos call center infelizmente ganham. Sem capacidades culturais e financeiras capazes de fazerem frente a estas "formações", assimilam-nas e reproduzem-nas para mal da nossa língua e costumes e, pior, para mal da nossa paciência.
E, para terminar, cá vai a "joia" responsável por este imenso desabafo. O rapazinho das avarias do MEO (passe a publicidade mas eles até precisam, ou vão precisar) lá me diz da necessidade de proceder a uns testes pelo que pede "um brevemente". Deixo passar, sou surda, ouvi mal. Mais uns segundos - Senhora Maria, mais um brevemente por favor. Arrepio-me, um brevemente? Mais um tempinho- Está?? - Só um brevemente! - Desculpe, repita o que disse! - Estou a proceder a uns testes Senhora Maria! - Não, o que disse depois! - É só mais um brevemente. -Um brevemente!?, você disse um brevemente??? - Sim, um brevemente, acabo já! - Oh criatura - enfureci-me - não diga disparates, isso não se diz, pelo menos não se diz neste contexto, não quererá dizer "breve momento"?- Sim, senhora Maria, um brevemente. Olhe, já terminei. Lamento mas nada posso fazer, vou mandar aí a casa o técnico.
Uma hora depois, muito brevemente portanto (afinal acaba  tudo por fazer sentido) um par de brasileiros procede aos devidos arranjos e um deles, pede-me, já que fiquei satisfeita, que lhes atribua um 9 (nove) quando me ligarem para a avaliação do trabalho. Respondo que até lhes dou o dez, a nota máxima.  - Por favor dez não, o dez está com um probleminha e a gente acaba sempre ficando com um um!- lamenta-se ele. Então era isso. Um, brevemente. Está tudo explicado. (MFM)

*Ouvi esta expressão outro dia na tv, à escritora Rita Ferro e tratei logo de a roubar. Traduz exactamente o espírito do que é.